Resumo: O presente artigo analisa o conceito da “cidade de 15 minutos”, formulado pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno, sob a perspectiva das políticas de mitigação das mudanças climáticas e do debate internacional que se intensifica com a COP 30, realizada em Belém, no Pará. Examina-se a viabilidade desse modelo urbano no contexto brasileiro, marcado por desigualdade territorial, segregação espacial e déficit de infraestrutura. Discute-se se a proposta representa uma solução prática ou uma utopia distante, destacando-se seu potencial como horizonte regulador para políticas públicas urbanas sustentáveis e justas. A pesquisa apoia-se em fontes normativas, dados oficiais e relatórios internacionais, em estrita observância às metas do Acordo de Paris e às diretrizes do Estatuto da Cidade e da Política Nacional sobre Mudança do Clima.
Palavras-chave: Cidade de 15 minutos. Mudança climática. COP 30. Planejamento urbano. Sustentabilidade.
Sumário: 1. Introdução. 2. O conceito da cidade de 15 minutos. 3. Urbanismo e mudança climática: cidades como espaços de solução. 4. O desafio brasileiro: desigualdade territorial e urbanismo sustentável. 5. O caso das megacidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. 6. Entre o ideal e o possível: utopia ou horizonte regulador? 7. Conclusão. Referências.
1. Introdução
A crise climática deixou de ser uma previsão científica para tornar-se uma evidência empírica e cotidiana. Ondas de calor extremo, enchentes, secas prolongadas e perda de biodiversidade compõem o cenário de uma nova era geológica marcada pela ação humana: o Antropoceno. Nesse contexto, as cidades, responsáveis por cerca de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa, tornam-se simultaneamente parte do problema e da solução.
Diante dessa realidade, surge o conceito da “cidade de 15 minutos”, formulado pelo urbanista Carlos Moreno, propondo um redesenho do espaço urbano em que todos os serviços essenciais — moradia, trabalho, educação, saúde, lazer e comércio — estejam acessíveis em até quinze minutos a pé ou de bicicleta. A ideia, adotada em metrópoles como Paris, Melbourne e Bogotá, foi saudada como uma das estratégias urbanas mais promissoras para a mitigação das mudanças climáticas e a melhoria da qualidade de vida.
Contudo, no contexto do Sul Global — e particularmente no Brasil —, marcado por desigualdades territoriais, segregação socioespacial e infraestrutura urbana precária, surge o questionamento: a cidade de 15 minutos é um ideal possível ou uma utopia inalcançável?
Com a COP 30, o debate sobre a compatibilização entre urbanismo sustentável, justiça social e mitigação climática torna-se ainda mais relevante. É sobre essa confluência entre ideal e realidade, entre discurso global e prática local, que o presente estudo se debruça.
2. O conceito da cidade de 15 minutos
A proposta de Carlos Moreno baseia-se em quatro princípios fundamentais: proximidade, diversidade, densidade e digitalização. O modelo busca substituir a expansão urbana horizontal por uma estrutura policêntrica, em que bairros autossuficientes concentrem serviços e infraestrutura essenciais.
Nessa lógica, cada bairro se transforma em uma célula urbana completa, diminuindo a dependência do automóvel e fortalecendo laços comunitários. A redução das emissões, o incentivo à mobilidade ativa e a valorização do tempo cotidiano são benefícios diretos.
Todavia, há críticas consistentes: o modelo pode gerar gentrificação verde, valorizando áreas centrais e deslocando populações vulneráveis para regiões periféricas, reforçando desigualdades. A proposta, portanto, deve ser interpretada como paradigma adaptável e não como modelo uniforme.
3. Urbanismo e mudança climática: cidades como espaços de solução
Conforme o Relatório de Síntese do IPCC (2023), as cidades têm papel determinante na mitigação das emissões globais, sobretudo nos setores de transporte e uso do solo. Políticas urbanas inteligentes podem reduzir em até 25% as emissões até 2050.
A COP 30, sediada na Amazônia brasileira, simboliza um marco de reposicionamento: o Brasil assume protagonismo em discutir o futuro climático do planeta a partir de uma região que é vital para a regulação do clima global. O evento impõe, contudo, a necessidade de coerência entre compromissos internacionais e práticas locais.
O Acordo de Paris, incorporado pelo Decreto nº 9.073/2017, estabelece metas nacionais de redução de emissões. No plano interno, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009) fornecem base normativa para políticas urbanas sustentáveis. O desafio é torná-las efetivas.
4. O desafio brasileiro: desigualdade territorial e urbanismo sustentável
A estrutura urbana brasileira é marcada por um histórico de desigualdade e segregação. O crescimento periférico e o transporte público ineficiente tornam os deslocamentos longos e dispendiosos. Segundo o IBGE, o brasileiro médio gasta cerca de duas horas por dia no trajeto casa-trabalho-casa.
Nesse cenário, implementar a cidade de 15 minutos requer reorganização territorial, redistribuição de investimentos e fortalecimento do planejamento metropolitano. Não basta promover mobilidade; é preciso aproximar as oportunidades das pessoas.
Experiências como o Plano Recife 500 Anos, o Plano de Ação Climática de São Paulo e os projetos de sustentabilidade de Curitiba representam avanços, mas ainda carecem de integração sistêmica e continuidade política.
A transposição de modelos do Norte Global exige adaptação às especificidades locais, considerando clima, renda, cultura e infraestrutura. Em Belém, por exemplo, as condições hidrográficas e sociais indicam a necessidade de uma versão regionalizada — talvez uma “cidade de 30 minutos” —, que valorize transporte fluvial, arborização urbana e economia solidária.
5. O caso das megacidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro
Entre os maiores desafios à implementação do conceito de cidade de 15 minutos estão as megacidades brasileiras, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, cuja estrutura urbana evidencia o grau de fragmentação e desigualdade do território nacional.
Em São Paulo, a dimensão territorial e a concentração de empregos no centro expandido tornam o ideal de proximidade praticamente inexequível. Segundo o Plano de Ação Climática de São Paulo (PlanClimaSP, 2020), cerca de 50% dos deslocamentos diários superam 30 minutos de duração, com significativa emissão de gases poluentes oriundos do transporte individual motorizado.
A cidade, embora disponha de uma das maiores redes de transporte público do país, ainda enfrenta mobilidade altamente desigual: moradores das periferias gastam, em média, o dobro do tempo de viagem em relação aos habitantes das regiões centrais.
O Rio de Janeiro, por sua vez, sofre com a combinação de topografia acidentada, ocupação irregular e déficit de integração entre modais de transporte. Apesar de iniciativas como o Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática (2021) e a expansão de ciclovias na zona sul, grande parte da população ainda vive em áreas com precário acesso a serviços públicos, emprego formal e infraestrutura básica.
Ambas as metrópoles demonstram que não há como importar linearmente o modelo europeu de cidade compacta para realidades metropolitanas latino-americanas, sem antes enfrentar as raízes históricas da segregação urbana.
Nessas condições, a “cidade de 15 minutos” deve ser reinterpretada não como um limite temporal fixo, mas como estratégia de reequilíbrio territorial: aproximar oportunidades, descentralizar políticas públicas e reduzir as desigualdades de tempo e espaço que estruturam a vida urbana no Brasil.
6. Entre o ideal e o possível: utopia ou horizonte regulador?
O conceito da cidade de 15 minutos é, antes de tudo, um ato político de reimaginação do urbano. Ele desafia a lógica que dominou o planejamento das cidades desde a revolução industrial — uma lógica de expansão periférica, dependência do automóvel, separação rígida de funções urbanas e priorização da produtividade sobre a convivência.
A proposta de Carlos Moreno devolve centralidade ao tempo humano e à escala do cotidiano, reinstaurando a cidade como espaço de vida, e não apenas de circulação ou consumo.
Contudo, a implementação dessa proposta em países desiguais como o Brasil revela uma tensão estrutural: como propor proximidade em cidades concebidas para a distância?
Nossas metrópoles nasceram sob o signo da exclusão espacial, que ainda se reproduz por meio do preço do solo, do transporte público insuficiente e da ausência de políticas de habitação integrada. Assim, enquanto as elites desfrutam de bairros autossuficientes, grande parte da população vive nas margens — geográficas e simbólicas — da cidade.
Diante desse cenário, afirmar que a cidade de 15 minutos é uma utopia não significa descartá-la, mas compreender seu papel como horizonte regulador: um ideal que, ainda que inatingível em sua plenitude, orienta o rumo da ação pública. A utopia, aqui, cumpre a função de projeto normativo — um “dever-ser” que move políticas e redefine prioridades.
O paradigma da proximidade propõe uma mudança epistemológica no planejamento urbano. Não se trata apenas de reduzir distâncias físicas, mas de reordenar o tempo social e redefinir a justiça urbana.
A democratização do acesso ao tempo — hoje um recurso tão desigual quanto a renda — passa a ser vista como dimensão de cidadania. Uma cidade sustentável não é apenas aquela que emite menos carbono, mas a que devolve tempo e dignidade às pessoas.
A COP 30, nesse contexto, não pode ser encarada apenas como mais uma conferência internacional, mas como um marco de reavaliação de modelos de desenvolvimento.
O Brasil, país urbano e desigual, tem a oportunidade de apresentar ao mundo um modelo de sustentabilidade que não seja apenas ecológico, mas também socialmente redistributivo.
Isso implica repensar o planejamento territorial à luz da justiça climática, conceito que vincula os efeitos da mudança do clima às desigualdades estruturais.
A partir desse enfoque, o ideal da cidade de 15 minutos pode e deve ser reinterpretado tropicalmente — uma “cidade do tempo humano”, adaptada à realidade brasileira, que reconheça as especificidades locais, valorize o transporte público, os circuitos curtos da economia e as relações comunitárias. Essa tradução contextualizada é o que pode transformar o ideal global em política pública nacional.
Em síntese, o que se propõe é uma leitura crítica e construtiva do conceito: não a cópia literal do modelo europeu, mas sua ressignificação no contexto latino-americano, onde a cidade não é apenas espaço físico, mas campo de disputa por direitos, reconhecimento e dignidade.
7. Conclusão
A cidade de 15 minutos é, no limite, uma metáfora para a reconstrução da relação entre o tempo, o território e a vida humana. No Brasil, essa reconstrução passa por enfrentar desigualdades históricas e por compreender que não há sustentabilidade possível sem equidade social.
Uma cidade ambientalmente eficiente, mas socialmente excludente, é um paradoxo que a realidade latino-americana não pode mais sustentar.
O debate sobre o clima não pode se limitar à redução de emissões. Ele exige mudanças de paradigma — na forma como produzimos, consumimos e, sobretudo, habitamos.
Cidades não são apenas emissores de carbono, mas sistemas vivos que espelham os valores e as prioridades de uma sociedade.
Se a cidade contemporânea é o palco da crise ambiental, também pode ser o espaço privilegiado de sua superação.
No horizonte da COP 30, realizada em Belém — cidade que simboliza a confluência entre biodiversidade, desigualdade e resistência —, o Brasil tem a chance histórica de demonstrar que o urbanismo pode ser instrumento de transformação e não de exclusão.
Transformar a utopia da cidade de 15 minutos em diretriz política não significa acreditar na imediata materialização desse modelo, mas reconhecer sua força pedagógica e simbólica: um ideal que inspira práticas de transição ecológica, inclusão social e governança participativa.
O futuro urbano, portanto, dependerá menos da importação de conceitos e mais da capacidade de traduzir princípios globais em soluções locais.
É preciso fazer com que o planejamento urbano dialogue com a realidade das favelas, das periferias e dos centros degradados, incorporando-os como protagonistas da transformação.
Em última análise, a pergunta que dá título a este artigo — “utopia inalcançável?” — deve ser respondida com uma provocação: as utopias são, precisamente, aquilo que nos impede de desistir.
A cidade de 15 minutos pode não ser plenamente realizável, mas é, sem dúvida, plenamente necessária.
Ela nos recorda que a verdadeira sustentabilidade não está apenas nos indicadores ambientais, mas no reencontro entre o humano e o urbano — entre o tempo da vida e o tempo do planeta.
Referências
ACORDO DE PARIS. Decreto nº 9.073, de 5 de junho de 2017. Promulga o Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 6 jun. 2017.
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182. e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências (Estatuto da Cidade). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul. 2001.
BRASIL. Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 30 dez. 2009.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE – IPCC. Synthesis Report of the Sixth Assessment Report (AR6). Geneva: IPCC, 2023.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Documentos preparatórios para a COP 30 – Belém 2025. Brasília: MMA, 2024.
MORENO, Carlos. La ville du quart d’heure: Pour un nouveau chronourbanisme. Paris: Éditions de l’Observatoire, 2020.
ONU-HABITAT. World Cities Report 2024: Urban Futures. Nairobi: United Nations Human Settlements Programme, 2024.
PREFEITURA DE SÃO PAULO. Plano de Ação Climática de São Paulo (PlanClimaSP). São Paulo: PMSP, 2020.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PCRJ, 2021.
Abstract: This article analyzes the concept of the “15-minute city,” developed by Franco-Colombian urbanist Carlos Moreno, within the framework of climate change mitigation policies and the international debate intensified by the upcoming COP 30, to be held in Belém, Pará. It examines the feasibility of this urban model in the Brazilian context, marked by territorial inequality, spatial segregation, and infrastructure deficits. The study discusses whether the proposal is a practical solution or a distant utopia, emphasizing its potential as a regulatory horizon for sustainable and equitable urban public policies. The research is based on normative sources, official data, and international reports, in strict compliance with the Paris Agreement, the City Statute, and the National Policy on Climate Change.
Key words : 15-minute city. Climate change. COP 30. Urban planning. Sustainability.