Capa da publicação Racismo e demissão por justa causa da torcedora do Avaí
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O caso da torcedora do Avaí: a possibilidade de justa causa diante de atos discriminatórios

20/11/2025 às 16:20

Resumo:


  • A demissão por atos públicos de racismo e xenofobia é respaldada pela legislação trabalhista e constitucional.

  • A gravidade da conduta pode caracterizar a quebra de confiança e a incompatibilidade ética com os valores do empregador.

  • A jurisprudência e os protocolos atuais reforçam a inadmissibilidade de atos discriminatórios no ambiente de trabalho.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A justa causa por racismo extralaboral surge quando o ato discrimina e rompe a fidúcia contratual. Como enquadrar a injúria racial, imprescritível, na relação de emprego?

Introdução

O combate ao racismo e à xenofobia representam um imperativo constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, refletindo-se diretamente nas relações laborais. O vínculo empregatício, fundado na confiança e na boa-fé, exige dos contratantes um comportamento que transcenda as obrigações meramente técnicas, demandando conduta compatível com os valores sociais e éticos da sociedade e da empresa.

Recentemente, a demissão de uma colaboradora do Grupo Orbenk, após ela ter proferido ofensas de cunho racista e xenofóbico contra torcedores do Clube do Remo durante uma partida de futebol em Santa Catarina, levantou a discussão sobre a legalidade e a justificação de um desligamento por condutas extralaborais de natureza discriminatória1. O Grupo Orbenk comunicou o desligamento afirmando que "comportamentos discriminatórios, dentro ou fora do ambiente de trabalho, são absolutamente incompatíveis com os valores" da companhia, que mantém uma "política inegociável de tolerância zero ao racismo, à xenofobia e a qualquer forma de violência ou discriminação", envolvendo todos os seus colaboradores2.

A análise deste caso, à luz da jurisprudência histórica, permite fundamentar a tese de que atos públicos de racismo e xenofobia, dada a sua gravidade, que os qualificam como crime imprescritível e inafiançável3, configuram justa causa para a rescisão contratual, seja por quebra de fidúcia, seja pela violação de normas de conduta interna e legal.


1. O Precedente Histórico da Eletrosul (1995)

A análise da demissão por justa causa em decorrência de atos discriminatórios é profundamente influenciada pelo histórico de enfrentamento ao racismo na Justiça do Trabalho, sendo o caso recente da torcedora do Avaí um reflexo direto da consolidação desse entendimento.

O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, de Santa Catarina, marcou a história do direito laboral brasileiro ao proferir, em 1995, uma decisão emblemática contra a discriminação racial que se tornou o primeiro processo no Brasil envolvendo denúncia de racismo a chegar ao Tribunal Superior do Trabalho3.

O caso envolveu Vicente Francisco do Espírito Santo, um assistente técnico da Eletrosul, admitido em 1º de janeiro de 1975 e dispensado sem justa causa em 1992, após 17 anos de serviço. O ato discriminatório foi evidenciado quando o superior hierárquico, ao comentar a demissão do trabalhador, teria questionado: "O que este crioulo quer, agora que conseguimos clarear o departamento?”. Este relato foi decisivo para que o juiz concluísse que a Eletrosul havia praticado ato discriminatório vedado pela Constituição Federal.

A sentença, assinada pelo juiz Alexandre Luiz Ramos (hoje ministro do TST), reconheceu o ato como discriminatório e determinou a reintegração imediata do trabalhador ao antigo posto, bem como o recebimento retroativo pelos três anos em que ficou afastado da empresa. O magistrado sublinhou a natureza destrutiva do preconceito, observando que o racismo “corrói silenciosamente o tecido social” e que o “racismo silencioso é o mais devastador e perverso”.

A decisão foi mantida pelo TRT em 1996, quando o relator, juiz togado Antônio Carlos Facioli Chedid, classificou a dispensa como “odiosa, ilegal, antiética, imoral e criminosa”. O caso chegou ao TST ainda em 1996 por meio de um mandado de segurança e foi confirmado em 1998 pela 3ª Turma do TST. Esta trajetória consolidou o entendimento de que a discriminação racial no ambiente de trabalho fere a Constituição e enseja reparação.


2. O ato discriminatório extralaboral como incompatibilidade de conduta

A possibilidade de aplicar justa causa por um ato ocorrido fora do ambiente de trabalho depende de sua gravidade e de sua repercussão na relação de emprego. No caso da torcedora, que era uma ex-conselheira do Avaí, a demissão foi realizada após uma “análise rigorosa, conduzida conforme o Código de Ética e Conduta e a legislação vigente”4, culminando no seu desligamento. As ofensas proferidas foram: “Olha a tua cor. Vão embora de jegue. O que tem no Pará? Seu feio. Gastou o salário para vir, vai ter que voltar a pé. Vão embora porque o prefeito não quer pobre aqui. Oh, pobre aqui não fica”.

A gravidade do racismo e da xenofobia transcende o mero desvio de conduta, atingindo a honra objetiva e subjetiva do empregador e sua imagem pública, especialmente quando a empresa adota publicamente uma "política inegociável de tolerância zero"5.

Embora a defesa da torcedora tenha alegado que o registro divulgado era um “recorte isolado e incompleto” decorrente de uma “agressão mútua e pontual”6 e que não refletia seus valores pessoais, o fato objetivo da manifestação pública de ódio e preconceito, que levou à investigação pela Polícia Civil de Santa Catarina e pelo Ministério Público de Santa Catarina, é incompatível com a manutenção do vínculo empregatício.

Dessa forma, a demissão, baseada em comportamentos discriminatórios que ferem o Código de Ética da companhia, cumpre o requisito de justa causa, inserindo-se na modalidade de mau procedimento (art. 482, "b", da CLT), ou, dependendo da repercussão e da natureza do cargo, ato lesivo da honra ou da boa fama (art. 482, "j", da CLT), quando tais atos são incompatíveis com o ambiente de trabalho e os valores corporativos.

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3. Consequências legais e protocolos atuais

Na esfera criminal, o ato praticado constitui injúria racial, que por lei inclui a xenofobia, com pena que varia de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa. Desde 2023, o crime é equiparado ao racismo, tornando-se imprescritível e inafiançável.

No âmbito desportivo, o Avaí Futebol Clube aplicou um procedimento interno que resultou na suspensão, por tempo indeterminado, da torcedora de suas dependências. O STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) está investigando o caso, o que pode levar o clube a perder mando de campo e pontos na disputa da Série B do Campeonato Brasileiro 2025.

Cumpre trazer à baila que a jurisprudência consolidada desde o caso Eletrosul ganhou um novo marco com a instituição do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial pelo Conselho Nacional de Justiça em 2024, que orienta magistrados a considerar os efeitos estruturais do racismo nas decisões judiciais.7

Já os Protocolos para atuação e julgamento na Justiça do Trabalho, organizados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho8, representam um conjunto de diretrizes essenciais para orientar a magistratura e o sistema de justiça trabalhista, que, embora tratem primariamente de litígios laborais, orientam a análise de condutas que, mesmo fora do ambiente de trabalho, refletem o racismo estrutural.

Se a Justiça do Trabalho garante a reintegração de um trabalhador demitido por ser vítima de racismo, é juridicamente coerente que sustente a justa causa de um empregado demitido por praticar racismo publicamente, em razão de flagrante violação aos princípios constitucionais e à fidúcia contratual.


Conclusão

A demissão motivada por atos públicos de racismo ou xenofobia encontra respaldo na legislação trabalhista e nos princípios constitucionais. A gravidade da conduta pode caracterizar a quebra imediata da confiança e a incompatibilidade ética do empregado com os valores do empregador, especialmente em empresas que adotam políticas de tolerância zero contra a discriminação.

A trajetória jurídica iniciada com decisões históricas e reforçada por protocolos recentes estabelece um ambiente legal onde atos discriminatórios são vistos como falhas gravíssimas que destroem o tecido social e, consequentemente, o vínculo laboral.

Em última análise, assim como uma demissão discriminatória corrói o tecido social e fere a Constituição, um ato público e criminoso de racismo por parte do empregado igualmente corrói a imagem e a ética da empresa, configurando justa causa e protegendo o ambiente de trabalho e a sociedade de formas intoleráveis de violência.


Notas

  1. CNN BRASIL. Investigada, torcedora do Avaí se manifesta após ofensas racistas em jogo. CNN Brasil, São Paulo, 19 nov. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/investigada-torcedora-do-avai-se-manifesta-apos-ofensas-racistas-em-jogo/. Acesso em: 19 nov. 2025.

  2. ND MAIS. Racismo em estádio: torcedora do Avaí é demitida após ofensas contra jogadoras do Remo. ND MAIS, Florianópolis, 19 nov. 2025. Disponível em: https://ndmais.com.br/futebol/racismo-em-estadio-torcedora-do-avai-e-demitida-apos-ofensas-contra-jogadoras-do-remo/. Acesso em: 19 nov. 2025.

  3. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 12ª REGIÃO. Caso de Santa Catarina que inaugurou julgamentos sobre racismo no TST completa 30 anos. Portal TRT 12ª Região, Florianópolis, 14 nov. 2025. Disponível em: https://portal.trt12.jus.br/noticias/caso-de-santa-catarina-que-inaugurou-julgamentos-sobre-racismo-no-tst-completa-30-anos. Acesso em: 19 nov. 2025.

  4. ND MAIS, Op. Cit.

  5. Ibid.

  6. Ibid.

  7. www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/11/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-racial-2.pdf.

  8. https://www.csjt.jus.br/documents/955023/0/Protocolos+de+Atua%C3%A7%C3%A3o+e+Julgamento+da+Justi%C3%A7a+do+Trabalho+%281%29.pdf/3a7256a6-2c97-22d7-a74e-bf607baf22ce?t=1724100057072.

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Sobre o autor
Elthon José Gusmão da Costa

Advogado trabalhista e desportivo. Master em International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía - ISDE). Professor. Palestrante. Organizador e autor de artigos e livros jurídicos. Membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Elthon José Gusmão. O caso da torcedora do Avaí: a possibilidade de justa causa diante de atos discriminatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8177, 20 nov. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116312. Acesso em: 5 dez. 2025.

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