I - INTRODUÇÃO
Reveste-se de inequívoca atualidade e relevância o estudo da necessária e tensa convivência entre os direitos próprios e indissociáveis da personalidade e a liberdade de informação, vista sob os dois prismas a ela inerentes, ou seja, tanto sob o viés do direito de informar, quanto sob a ótica do direito difuso de acesso à informação.
Com o evidente recrudescimento do alcance e da velocidade dos meios tecnológicos de divulgação das informações, tornam-se cada vez mais freqüentes os pontos de atrito entre a liberdade de exercício dos direitos pessoais, notadamente na esfera típica da vida privada (direito de estar só e de não ser incomodado em sua privacidade) e o direito de informar, constitucionalmente assegurado e exercido, por vezes, até as últimas e imponderáveis conseqüências, pelos meios de comunicação de massa, movidos pela busca incessante de fatos novos, escândalos ou crises, que precisam ser diariamente renovados, para que possam alimentar a audiência e a curiosidade dos destinatários da notícia.
A imprensa, com sua função jornalística e informativa, desempenha papel fundamental e infungível, sendo a liberdade e a amplitude do seu exercício valores tutelados com inegável relevo pelo Estado democraticamente constituído, que, ao longo da história, aprendeu a respeitá-la como imprescindível instrumento de formação da consciência social e democrática de um povo, tendo participação decisiva e comprovada, consoante assevera GODOY [01], no desdobramento de acontecimentos recentes, de depuração política e moral do próprio Estado Brasileiro.
A liberdade de imprensa e informação, tão valorizada em um Estado que já esteve submetido a um regime de censura e restrições, encontra arrimo constitucional seguro no artigo 220 da Carta Política, ao asseverar que "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, X, XIII e XIV."
Os direitos da personalidade, por sua vez, desde os tempos da actio injuriarum romana, vêm recebendo tratamento e proteção por parte do Estado, passando pelos ideais iluministas e liberais ventilados nos séculos XVIII e XIX, e, mais recentemente, após a Segunda Grande Guerra, materializando-se com nitidez na Constituição alemã de 1949, que, já no seu capitulo primeiro, estatuía ser dever de todas as autoridades do Estado o respeito e a proteção à dignidade do homem.
Cita a doutrina ainda, como marco expressivo de afirmação dos direitos da personalidade, notadamente no aspecto diretamente ligado ao direito da privacy, o caso Brandeis e Warren, surgido em Boston, e que teria dado origem ao célebre ensaio de 1890, publicado pela Faculdade de Harvard, e que, segundo TEPEDINO [02], teria marcado uma nova fase na defesa do direito à intimidade.
Representam tais direitos, que mereceram capítulo próprio no Código Civil de 2002, o núcleo essencial de atributos indissociáveis da condição humana digna, sendo inatos e personalíssimos, vez que dizem respeito à própria integridade física, moral e intelectual do seu titular, sendo a dignidade, segundo JORGE MIRANDA [03], de forma direta e evidente, a fonte ética dos direitos da personalidade, que, na Constituição Federal de 1988, encontraram, principalmente em seu artigo 5º, expressa e segura acolhida.
O exercício da liberdade de imprensa encontra, por vezes, dificuldades de convivência com alguns direitos da personalidade, principalmente quando se manifesta pela veiculação de informações que possam tangenciar a honra, a privacidade e a imagem do titular dos direitos supostamente vergastados, reclamando, em tais hipóteses de crise, solução judicial capaz de harmonizar e permitir a coexistência de dois valores com estatura constitucional, realizando-se a ponderação exigida no caso concreto, de modo a evitar que a proteção legada a um deles possa ser entendida como anulação do outro direito em apreciação.
II – A PRIVACIDADE E O DIREITO À INFORMAÇÃO
Segundo o escólio de LUÍS ROBERTO BARROSO [04], a intimidade e a vida privada estariam representadas em esferas distintas, compreendidas no conceito mais amplo de direito de privacidade, sendo a intimidade um círculo mais restrito de fatos relacionados exclusivamente ao indivíduo, ao passo que a vida privada diria respeito a um espaço mais amplo e abrangente das relações sociais.
Do referido direito de privacidade adviria, segundo o autor citado, "o reconhecimento da existência, na vida das pessoas, de espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia, por envolverem o modo de ser de cada um, as suas particularidades."
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, Inciso X, outorgou a condição de invioláveis à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Uma exegese mais simplória ou insipiente do texto referido, mormente quando cotejado tal dispositivo com aquele que assegura a liberdade de imprensa (artigo 220 da Carta Maior), poderia propiciar, consoante advertiu GILMAR MENDES [05], uma leitura equivocada e insustentável de que, não sendo permitido qualquer tipo de censura à liberdade de expressão, eventual ofensa, ainda que atual, aos direitos da personalidade, estaria imune a uma atuação jurisdicional preventiva e de cunho inibitório, de tal modo que a proteção a tais direitos, não obstante a força da norma protetiva, estaria, desde logo, a remeter para a ulterior solução em perdas e danos.
Mostra-se, nessa quadra, evidente que o texto constitucional, ao dispor e assegurar o livre exercício do direito de informar, não afastou a possibilidade de que fossem implementadas e observadas determinadas e justificáveis restrições, tendentes a permitir a convivência harmoniosa entre tal princípio (liberdade de informação) e os direitos da personalidade, tais como a honra, a privacidade e a imagem, também tutelados pelo diploma maior, trazendo a parte final do artigo 220, § 1º, da Constituição, hipótese doutrinariamente definida como reserva legal qualificada [06], que estaria a admitir o implemento de normas que possam disciplinar a liberdade de imprensa, de modo a assegurar que não se venha, sob seu manto, a malferir outros bens jurídicos igualmente protegidos.
A liberdade de expressão e informação, com assento constitucional, encontra, por conseguinte, limite imanente (imannente Begrenzung) nos próprios direitos da personalidade, também constitucionalmente assegurados.
No mesmo diapasão, em lapidar estudo sobre o tema, vaticina EDILSOM PEREIRA DE FARIAS [07], ao propugnar que "além da proteção positiva, enquanto direitos em si mesmos (CF, art. 5º, X), os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem estão protegidos, também, de forma negativa pela Constituição Federal de 1988. Esta, no seu artigo 220 § 1º, determina: ‘nenhuma lei conterá dispositivo que possa embaraçar a plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV’. É dizer: aqueles direitos da personalidade estão consagrados também como limites à liberdade de expressão e informação."
No contexto de tal reserva qualificada, insere-se o Código Civil de 2002, ao dedicar, pela primeira vez, capítulo especificamente destinado aos direitos da personalidade, assentando, em seus artigos 20 e 21, a inviolabilidade da vida privada e da imagem pessoal, assegurando o imediato recurso à tutela judicial de urgência, para fazer cessar, de plano, sem prejuízo da ulterior reparação dos danos experimentados, qualquer ameaça ou ofensa à honra, ao nome, à imagem ou à própria privacidade do indivíduo, trazendo, com isso, inequívoca limitação ao exercício amplo e irrestrito do direito de divulgar, através da imprensa, informações ou imagens que possam acarretar danos, ainda que imateriais, aos direitos da personalidade, ressalvadas, pela norma do digesto material civil, aquelas hipóteses em que o sacrifício do direito individual se justifica pela prevalência da ordem pública ou para a administração da justiça, tais como nos casos em que se tem como divulgada, sem prévio consentimento, a fotografia de criminoso foragido, ou nos casos de gestores da coisa pública, sujeitos à especial fiscalização de sua vida pessoal, quando houver indícios de conduta ou evolução patrimonial incompatível com a função exercida [08].
As Cortes vêm se deparando, ao longo dos tempos, com a constante necessidade de se explicitar critérios de resolução de conflitos, diante de determinadas situações de aparente colisão, submetidas à apreciação do Judiciário, objetivando prover a difícil harmonização entre o direito de informar e o direito à privacidade, enquanto direito insofismável da personalidade.
Quadra consignar, ab initio, que, conforme já assentou o Augusto Supremo Tribunal Federal [09], a colisão entre dois princípios deve ser resolvida sem que se admita a simples supressão de um em relação ao outro, passando a solução, ao revés, por um juízo de razoabilidade e ponderação diante do caso concreto e dos bens envolvidos.
Assim, verificada uma aparente colisão entre o direito de informar e o direito à privacidade da pessoa que seria o objeto da notícia, não haveria falar-se, de plano, em eventual preponderância de um princípio sobre o outro, vez que ambos devem subsistir, com igual valor, dentro da ordem constitucional, cabendo ao julgador o exame casuístico da hipótese submetida, realizada a necessária ponderação entre os interesses e valores em testilha, de modo a permitir que, mesmo com eventual e pontual mitigação do grau de abrangência de um deles, ambos sejam tutelados.
Na ponderação de tais direitos, segundo as lições de TEPEDINO [10], busca-se, fundamentalmente, verificar se é justificável, no caso concreto, eventual sacrifício do direito fundamental em exame, admitida a sua compressão quando esta for essencial e eficiente à tutela de outro direito fundamental, sendo imperioso, no entanto, compatibilizar a privacidade e outros interesses também merecedores de proteção. Nessa linha, arremata o eminente doutrinador carioca que "o desafio, como se vê, é a busca de um equilíbrio que não legitime o ataque injustificado à privacidade, e tampouco gere um conceito de ‘esfera privada’ inquebrantável, tutelado nos moldes do direito à propriedade nas codificações liberais."
Precedente emblemático da Corte Constitucional alemã, atualmente referido por grande parte da doutrina, e trazido a lume, pela primeira vez, por GILMAR FERREIRA MENDES [11], o "caso Lebach" trouxe à balha, no ano de 1973, a problemática discussão sobre o conflito entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade.
Na hipótese, discutia-se, fundamentalmente, a possibilidade de se obstar, por medida cautelar, a divulgação de um filme sobre fato pretérito, conhecido como o "assassinato dos soldados de Lebach", em face de haver citação nominal do postulante, já julgado e condenado por um crime de grave repercussão, quando já se encontrava prestes a receber um benefício no curso da execução penal, aduzindo, em síntese, que, além de malferir direito da personalidade, a exibição de tal documentário culminaria por dificultar, sobremaneira, a sua ressocialização.
Malograda, nas duas instâncias iniciais, a pretensão inibitória, chegou o caso à apreciação da Corte Constitucional alemã, que, fazendo alusão ao princípio da proporcionalidade, ponderou que, naquela hipótese específica, muito embora nenhum dos princípios em questão pudesse ser havido como superior ao outro, na impossibilidade de uma perfeita compatibilização, dever-se-ia apurar qual deles deveria ceder espaço, na espécie, para que houvesse a solução mais razoável a dirimir a colisão enfrentada.
Entendeu a Corte, ao conceder o provimento colimado, que, não obstante tenha a divulgação de crimes graves, via de regra, precedência sobre a proteção da personalidade, no "caso Lebach", um exame sob a ótica da proporcionalidade estaria a revelar, noutro viés, que a divulgação de fatos pretéritos, com alusão ao nome ou a outros elementos que pudessem permitir a identificação do autor, pouco antes da concessão do livramento condicional, mostrar-se-ia, naquele caso, ilegítima, pois, além de invadir a esfera dos direitos da personalidade, findaria por turbar a reinserção do apenado no seio da sociedade.
Evidente, pois, a lição exsurgida do precedente bávaro acima referido, no sentido de que, ao se proceder, diante do caso concreto, o juízo de ponderação para a solução do conflito, não se deve simplesmente anular um direito em face do outro, cabendo ao julgador preservar a aplicação concomitante dos direitos conflitantes, ainda que, para isso, tenha que ser atenuado, na hipótese, o campo de extensão ou eficácia de um desses direitos.
III – A PRIVACIDADE E A IMAGEM DAS "PESSOAS PÚBLICAS"
Aspecto interessante, e objeto de tormentosa discussão, é aquele referente ao resguardo do direito de privacidade das chamadas "pessoas públicas", ou seja, aquelas que gozam de certa notoriedade e de maior exposição em razão do próprio ofício exercido, ou mesmo em decorrência de alguma circunstância que as tenha tornado conhecidas, tais como os artistas, os atletas e os políticos, que passam a despertar, mesmo quando se encontram no âmbito de suas relações privadas, o interesse do público e de certos segmentos da imprensa especializada.
Aprioristicamente, impende consignar que a Constituição Federal e o próprio Código Civil em vigor não cuidaram de excepcionar a proteção conferida à privacidade dos indivíduos, resguardando a todos, independentemente da profissão ou da notoriedade, o direito de estar só e de ter preservado um núcleo essencial de intimidade, posto a salvo da curiosidade e da indevida e desautorizada divulgação da imprensa.
No entanto, não se pode desconhecer que o grau de exposição pública do titular do direito representa o principal elemento de determinação do próprio grau de intensidade da proteção conferida [12], estando certo que, muito embora tenha o direito de guardar seus momentos de introspecção e intimidade, estes se tornarão mais dificultados e restritos à medida em que a notoriedade e a popularidade, ainda que não desejadas, passam a atrair, pata o titular dos direitos, as atenções da imprensa e da própria coletividade.
Segundo as lições de BITTAR [13], "deve-se ter presente, a respeito, a predominância do interesse coletivo sobre o particular, cabendo verificar-se, em cada caso, o alcance respectivo, a fim de não se sacrificar, indevidamente, a pessoa, e, com isso, permitir-lhe a reação jurídica incompatível."
Assim, as chamadas "pessoas públicas", que, muitas vezes, se valem da própria imagem e da notoriedade para proveito profissional e econômico, passam, por isso mesmo, a usufruir de uma esfera mais reduzida de privacidade, que, no entanto, não pode ser havida como inexistente ou completamente suprimida pelo simples fato de ter uma pessoa optado por uma carreira, ou modo de vida, que enseja maior exposição ao público. Em qualquer hipótese, deve ser assegurado à pessoa, ainda que de forma mais restrita ou circunstancialmente limitada, o que o direito italiano chama de diritto alla riservatezza.
Chamado a intervir em eventual conflito entre a liberdade de informar e o direito de privacidade e imagem da pessoa famosa, deve o julgador, diante da situação especificamente trazida, ponderar os valores em apreciação, verificando, precipuamente, se o interesse no acesso àquela informação obstada deve atuar com prevalência, naquela hipótese específica, sobre o direito individual à privacidade, que, em tais hipóteses, se sacrifica em nome do interesse público prevalente.
Nesse sentido, pontifica TEPEDINO [14] que "mesmo o homem público tem o sagrado direito de ter resguardada sua vida sentimental ou sexual; a manter sigilo em relação a quem recebe ou freqüenta. O mesmo não mais se pode dizer, contudo, se ele professa um moralismo exasperado e é visto, pela imprensa, em situação que contradiga sua pregação e a de seu partido. É aí, interesse do público e do eleitor ser bem-informado."
Esclarece o Ilustre Professor TEPEDINO [15], em desfecho, que "a flexibilidade dos critérios, necessariamente maleáveis, em função das peculiaridades e das circunstâncias que envolvem cada caso, deverá, de toda sorte, ter pontos de referência implacáveis: a dignidade humana e o respeito á personalidade de cada indivíduo servem de guia, como valores constitucionais primordiais e unificadores de todo o sistema."
Em sede de estudo da colisão entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, notadamente no campo da privacidade assegurada às pessoas conhecidas, cita a doutrina, como exemplo de solução pela ponderação, o chamado "Caso Caroline de Mônaco", no qual teria o Tribunal Constitucional Alemão rechaçado a pretensão da princesa, que, pretendendo ter uma vida normal, afastada dos holofotes e voltada para a família, teria postulado a proibição da publicação, em determinados veículos da imprensa escrita, de fotografias tiradas em momentos privados, ainda que fossem obtidas em locais freqüentados e abertos ao público.
Revendo a decisão da Corte Alemã, decidiu a Corte Européia de Direitos Humanos sufragar o pleito, reconhecendo, na hipótese, a prevalência do direito de privacidade sobre a alegada liberdade de informação e de imprensa, mesmo em se tratando de pessoa conhecida.
O fenômeno de proliferação dos chamados paparazzi, que, objetivando exclusivamente o proveito econômico, perseguem, fotografam, investigam e atormentam, em momentos de lazer e privacidade, artistas e famosos, tem gerado o aumento de demandas tendentes a salvaguardar o direito à esfera privada, sendo que, em tais situações, mostra-se reiterada e usual a objeção de que se acham tais profissionais no exercício da liberdade de imprensa constitucionalmente assegurada.
Tal argumentação, no entanto, não encontra arrimo, vez que, na grande maioria das vezes, realizado o exame ponderado dos valores envolvidos, não se mostra, à luz da razoabilidade, justificável o sacrifício do direito à privacidade do indivíduo, sem qualquer cunho jornalístico, para a satisfação de interesses exclusivamente econômicos ou sensacionalistas.
Nesse sentido, a lição de GODOY [16], ao preconizar que "o sensacionalismo, com efeito, não se amolda ao fim informativo, à natureza institucional da atividade de comunicação, justamente o que autoriza, por vezes, cedam, diante desta, os direitos da personalidade."
Recentemente, ao examinar, em sede de antecipação de tutela, o pedido de um casal de atores famosos, perseguido e filmado, durante várias semanas, por um programa humorístico de grande audiência, decidiu a Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Juíza Mirella Letizia Guimarães Vizzini, da 26ª Vara Cível da Capital [17], deferir a antecipação dos efeitos da tutela de mérito vindicada, para determinar que a ré, emissora de televisão responsável pelo programa, se abstivesse de perseguir os autores, ou mesmo de exibir imagens ou fazer referências a seus nomes, respeitando a sua privacidade e o desejo de não participar de sua programação, sendo fixada, para a hipótese de descumprimento, multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
No bojo da decisão referida, ao fundamentar o seu entendimento, em sede de ponderação entre os direitos contrapostos e alegados, consignou a Magistrada de primeiro grau:
"(...) Assim, temos aqui o confronto de dois princípios fundamentais, o direito à privacidade (art. 5º, X, da CRFB/88) e a liberdade de expressão artística (art. 5º, IX, da Carta Magna). Como ambos são princípios fundamentais, não há que se falar em hierarquia. Porém, quando dois direitos fundamentais colidem, gerando o ajuizamento de ação, visando resguardar um deles, cabe ao Poder Judiciário, no caso concreto, verificar, qual deles deve ser mitigado para que o princípio maior da Constituição da República e do Estado Democrático de Direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana, seja protegido e respeitado.(...)" [18]
Especificamente no que toca à desautorizada utilização da imagem de pessoas notórias, merece destaque o precedente do Excelso Supremo Tribunal Federal [19], da lavra do Eminente Ministro Carlos Velloso, conhecido como "Caso Cássia Kis", que, ao examinar, em sede de recurso extraordinário, a possibilidade da reparação do dano moral, ou seja, incidente na esfera puramente imaterial e típica do direito da personalidade, assentou, em suma, que a simples utilização da imagem da pessoa, sem a sua autorização e abstraído eventual proveito econômico, já seria bastante a causar desconforto, aborrecimento ou constrangimento, hábil a render ensanchas ao gravame moral que reclama reparação.
Naquela oportunidade, citou o Culto Ministro Relator entendimento outrora manifestado pelo Ministro Rafael Mayer [20], ao lecionar que "o dever de indenizar decorre da simples utilização de um direito personalíssimo, o da imagem." [21]
Também ao enfrentar o tema referente à necessária ponderação, no caso concreto, entre eventual interesse público no direito de informar e o direito personalíssimo de imagem da pessoa notoriamente conhecida, assim decidiu, à luz da normatização infraconstitucional, o Colendo Superior Tribunal de Justiça [22]:
CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. REPRODUÇÃO INDEVIDA. LEI N° 5.988/73 (ART. 49, I, "f"). DEVER DE INDENIZAR. CÓDIGO CIVIL (ART. 159).
A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam.
A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a própria utilização indevida.
É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem; todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse jornalístico que, por sua vez, tem como referencial o interesse público, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente.
Recurso conhecido e provido. (sem grifos no original).
Forçoso, pois, considerar que o direito à privacidade e à preservação da imagem, mormente nos momentos de intimidade, não podem ser negados ou suprimidos em razão da notoriedade do seu titular, que, por mais exposto ou conhecido do grande público, deve ter preservado um núcleo essencial de intimidade, que não pode ser devassado em nome de um direito ilimitado ou absoluto de informação, que, por vezes, traveste mero interesse econômico e sensacionalista, que não justifica, sob qualquer hipótese, o sacrifício de um direito da personalidade, fazendo eclodir, noutro vértice, a proteção expressamente prevista no Código Civil em vigor (artigo 21) e na própria Magna Carta que a ele empresta conformidade.