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A questão da impugnação de inconstitucionalidade de uma mesma norma no Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal

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O controle abstrato de normas em face da Constituição Estadual é previsto pelo artigo 125, § 2º, da Constituição Federal, que estabelece competir "ao Estado a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão".

Como uma norma estadual pode igualmente ser impugnada abstratamente em face da Constituição Federal, com fulcro no artigo 102, inciso I, alínea "a", da Norma Suprema, verifica-se a possibilidade de impugnação de uma mesma norma estadual em face de uma Constituição Estadual e da Constituição Federal. Como se compatibiliza esse julgamento para evitar a contrariedade de decisões?

É certo que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição Federal, o que poderia levar o equívoco de que sempre lhe cabe a decisão final, de modo que a decisão do STF sempre prevaleceria em relação ao do Tribunal de Justiça local.

Diz-se equívoco porque a previsão de dispositivo em uma Constituição Estadual de igual teor encontrado na Constituição Federal, não significa que se trata necessariamente de norma de reprodução obrigatória.

E não sendo a norma de observância obrigatória, com fulcro na autonomia dos Estados decorrente do sistema federativo [01], "cabe, pois, ao Constituinte Estadual – e só a ele – criar sistemas ou mecanismos de controle eficazes, que assegurem a supremacia da Constituição Estadual no plano territorial dos Estados" [02], sendo, portanto, o Tribunal de Justiça local o guardião da Constituição Estadual.

Até porque se assim não fosse o federalismo, protegido pela Constituição Federal como cláusula pétrea, estaria ameaçado. Nos dizeres de Ana Cândida de Cunha Ferraz:

Inaceitável e ilógico seria admitir-se que esse sistema de defesa fosse ou devesse ser previsto pela Constituição Federal. O sistema federativo, na sua pureza, rejeita a hipótese, até mesmo por razões de ordem prática, vez que o Constituinte Originário não poderia adiantar e prefixar, na sua plenitude, os caminhos a serem perseguidos pelo Constituinte Estadual para desdobrar as competências que lhe são próprias. Qualquer imposição nesse sentido anularia o próprio significado do princípio da autonomia federativa [03].

A existência de normas idênticas, mesmo não sendo de reprodução obrigatória, é bem esclarecida por Léo Ferreira Leoncy [04]:

A despeito de ter outorgado aos Estados o poder de instituírem suas próprias Constituições, o legislador constituinte federal quase não deixou espaço para que os entes federativos inovassem nas matérias reservadas à sua competência.

Prova disso é o fato de a Constituição Federal ter previamente ordenado, em muitos aspectos, por meio das chamadas normas de observância obrigatória, a atividade do legislador constituinte decorrente, para o qual deixou como única saída, em inúmeras matérias, a mera repetição do discurso constitucional federal, por via da transposição de várias normas constitucionais federais para o texto da Constituição Estadual.

Por outro lado, em matérias nas quais a Constituição Federal outorgou ampla competência para que o constituinte estadual deliberasse a seu talante, com a possibilidade de edição das chamadas normas autônomas, este se limitou a imitar o disciplinamento eventualmente constante do modelo federal, mesmo quando a ele não se encontrava subordinado.

O resultado de tal fenômeno é a convivência, nos textos da Constituição da República e das Constituições Estaduais, de normas formal ou materialmente iguais, a configurar uma identidade normativa entre os parâmetros de controle federal e estadual.

[...Omissis...]

[...] Tal questão vem a debate na medida em que, à primeira vista, uma vez violada a norma constitucional estadual de repetição, também restaria violada, ipso facto, a norma constitucional federal repetida. Daí o interesse em saber sob que parâmetro de controle se há de questionar a legitimidade do ato inquinado de inconstitucional e, resolvido isto, perante que Tribunal propor a ação direta correspondente

Ressalta-se que, embora o objeto de impugnação (norma estadual) seja idêntico na hipótese em análise, os parâmetros de controle são diferentes: na representação de inconstitucionalidade estadual, é a Constituição Estadual; enquanto na ajuizada perante o STF, é a Constituição Federal.

O Ministro Gilmar Mendes, assim, explicita a diferença dos parâmetros:

A amplitude da jurisdição constitucional no Estado federal suscita inúmeras questões. A inexistência de regras de colisão – como é o caso da Alemanha e do Brasil – enseja insegurança, em determinadas situações, quanto à competência da jurisdição estadual ou federal.

Como os atos do poder estadual estão submetidos às jurisdições constitucionais estaduais e federal, torna-se evidente, em certos casos, a concorrência de competências, afigurando-se possível submeter uma questão tanto à Corte estadual quanto ao Bundesverfassungsgericht, nos casos de dupla ofensa.

Todavia, como enunciado, os parâmetros para o exercício do controle de constitucionalidade pelo Bundesverfassungsgericht hão de ser, fundamentalmente, a Constituição e as leis federais. Da mesma forma, parâmetro para o controle de constitucionalidade exercido por um Landesverfassungsgericht é a Constituição estadual, e não a Lei Fundamental ou as leis federais.

Situação semelhante verifica-se ente nós. O parâmetro de controle do juízo abstrato perante o Supremo Tribunal Federal haverá de ser apenas a Constituição Federal. Já o parâmetro de controle abstrato de normas perante o Tribunal de Justiça estadual será apenas e tão-somente a Constituição estadual.

[...Omissis...]

Não se deve olvidar que o chamado poder constituinte decorrente do Estado-membro é, por sua natureza, um poder constituinte limitado, ou, como ensina, Anna Cândida da Cunha Ferraz, é um poder que "nasce, vive e atua com fundamento na Constituição Federal que lhe dá supedâneo; é um poder, portanto sujeito a limites jurídicos, impostos pela Constituição Maior". Essas limitações são de duas ordens: as Constituições estaduais não podem contrariar a Constituição Federal (limitação negativa); as Constituições estaduais devem concretizar no âmbito territorial de sua vigência os preceitos, o espírito e os fins da Constituição Federal (limitação positiva). [05].

Assim, sendo o parâmetro de constitucionalidade a Constituição Estadual, cabe ao Tribunal de Justiça apreciar a representação de inconstitucionalidade, por lhe ser função precípua. Se a hipótese for de norma de reprodução obrigatória, há a possibilidade de interposição de recurso extraordinário para o STF, visualizando-se, assim, uma espécie de "transformação" de controle abstrato em controle concreto.

Quando se deparar com uma tramitação simultânea, a ADIN ajuizada no âmbito do Tribunal de Justiça fica suspensa [06] até o julgamento da ADIN ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, conforme já decidiu o STF, in verbis (destaque não original):

Agravo Regimental em Petição. 2. Aplicabilidade da Lei nº 8.437, de 30.06.92, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, em controle concentrado de constitucionalidade. 3. Coexistência de jurisdições constitucionais estaduais e federal. Propositura simultânea de ADI contra lei estadual perante o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Justiça. Suspensão do processo no âmbito da justiça estadual, até a deliberação definitiva desta Corte. Precedentes. 4. Declaração de inconstitucionalidade, por esta Corte, de artigos da lei estadual. 5. Argüição pertinente à mesma norma requerida perante a Corte estadual. Perda de objeto. 6. Agravo que se julga prejudicado.

(STF, Pet-AgR 2701/SP, Tribunal Pleno, Rel. p/ Acórdão Ministro Gilmar Mendes, J. 08.10.2003, DJ 10.03.2004)

Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar. Lei nº 9.332, de 27 de dezembro de 1995, do Estado de São Paulo. - Rejeição das preliminares de litispendência e de continência, porquanto, quando tramitam paralelamente duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma no Tribunal de Justiça local e outra no Supremo Tribunal Federal, contra a mesma lei estadual impugnada em face de princípios constitucionais estaduais que são reprodução de princípios da Constituição Federal, suspende-se o curso da ação direta proposta perante o Tribunal estadual até o julgamento final da ação direta proposta perante o Supremo Tribunal Federal, conforme sustentou o relator da presente ação direta de inconstitucionalidade em voto que proferiu, em pedido de vista, na Reclamação 425. - Ocorrência, no caso, de relevância da fundamentação jurídica do autor, bem como de conveniência da concessão da cautelar. Suspenso o curso da ação direta de inconstitucionalidade nº 31.819 proposta perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, defere-se o pedido de liminar para suspender, ex nunc e até decisão final, a eficácia da Lei n 9.332, de 27 de dezembro de 1995, do Estado de São Paulo.

(STF, ADI-MC 1423, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Moreira Alves, J. 20.06.1996, DJ 22.11.1996)

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Ajuizando-se primeiramente uma representação de inconstitucionalidade de uma norma estadual perante o Tribunal de Justiça local, que a julga procedente, declarando a inconstitucionalidade da norma atacada, não há que se falar em posterior ajuizamento de ADIN impugnando a mesma norma perante o STF, tendo em vista que, sendo declarada inconstitucional, a norma deixou de existir, tornando insubsistente qualquer fundamentação por inexistência de objeto. O mesmo ocorre no caso de declaração de inconstitucionalidade pelo STF e posterior ajuizamento de ADIN perante o Tribunal de Justiça.

Questão interessante se dá quando o Tribunal de Justiça declara constitucional a norma atacada (julgando improcedente a ADIN).

Continuando a lei válida, nada impede o ajuizamento de uma ADIN perante o STF, já que se trata de parâmetros diferentes. Essa possibilidade é bem ilustrada pelo douto Nazareno César Moreira Reis nos seguintes termos:

A verdade é que mesmo na hipótese de não-interposição de recurso algum [07], que seria o grave inconveniente da posição mais liberal, o Supremo não fica privado de sua competência. Se a norma local for declarada constitucional, o terá sido, naturalmente, em face da Constituição Estadual, ainda que se refira o acórdão a dispositivo de reprodução obrigatória, fato que não impede que o Supremo, em outra ação direta ou em controle difuso − desde que se sustente a violação a regra da Constituição Federal − venha a declarar insubsistente a norma local. Seja como for, o que transita em julgado no âmbito estadual é unicamente a questão constitucional estadual, não a questão constitucional federal − ainda que, em substância, logicamente, a questão seja rigorosamente a mesma [08].

Assim, a decisão do STF vai vincular se for norma de reprodução obrigatória, já que, sendo o guardião da Constituição Federal, cabe-lhe a função precípua de dar "última palavra" sobre a constitucionalidade ou não.

Porém, se for de reprodução facultativa (ou como alguns doutrinadores costumam denominar de normas de imitação), prevalece a decisão do Tribunal de Justiça, que possui a função precípua de guardião da Constituição Estadual, em face das autonomias dos Estados e do princípio da federação, não sendo o STF competente para aferir constitucionalidade ou não de norma em face à Constituição Estadual.

Isso porque,

Presentes na Constituição do Estado-membro por mera liberalidade do órgão constituinte decorrente, que o faz no exercício e dentro dos limites de sua autonomia constitucional, a impugnação de leis e atos normativos locais em face dessas normas de imitação não serve de pretexto para se deslocar a competência para processar e julgar a ação ao Supremo Tribunal Federal. É que tais normas "são frutos da autonomia do Estado-membro, da qual deriva a sua validade e, por isso, para todos os efeitos, são normas constitucionais estaduais [09].

Conclui-se, assim, que a competência para decidir a constitucionalidade em abstrato de uma norma estadual impugnada depende do parâmetro utilizado (se a Constituição Estadual ou a Federal), sendo importante se avaliar a natureza da norma (se de observância obrigatória ou não).


BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. Poder constituinte dos estados-membros. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979.

LEONCY, Léo Ferreira. Controle de constitucionalidade estadual: as normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Saraiva, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 44, ago. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/122>. Acesso em: 15 ago. 2008.

REIS, Nazareno César Moreira. O controle do Supremo Tribunal Federal sobre a representação de inconstitucionalidade estadual: jurisdição constitucional federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1043, 10 maio 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8379>. Acesso em: 15 ago. 2008.


Notas

  1. Sobre o federalismo e a repartição de competências, Fernanda Dias Menezes de Almeida ressalta que "A Federação, a rigor, é um grande sistema de repartição de competências. E essa repartição de competências é que dá substância à descentralização em unidades autônomas. Com efeito, a autonomia, no seu aspecto primordial, [...Omissis...], significa a edição de normas próprias -, corresponde, no caso dos estados-membros, à capacidade de se darem as respectivas Constituições e leis". E continua mais adiante, "[...] a não delimitação do conjunto e das partes, que devem coexistir e atuar simultaneamente, tornaria inevitavelmente conflituosa sua convivência, pondo em risco o equilíbrio mútuo que há de presidir a delicada parceria a que corresponde, em última análise, a Federação". In: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 14/15.
  2. FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. Poder constituinte dos estados-membros. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979, p. 186.
  3. FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. Poder constituinte dos estados-membros. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979, p. 187.
  4. Leoncy, Léo Ferreira. Controle de constitucionalidade estadual: as normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Saraiva, 2007.
  5. MENDES, Gilmar Ferreira. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 44, ago. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/122>. Acesso em: 15 ago. 2008.
  6. O Ministro Gilmar Mendes, no voto condutor do Acórdão ora destacada, chega a afirmar que "o Supremo acabou por consagrar uma causa especial de suspensão do processo no âmbito da Justiça local, nos casos de tramitação paralela de ações diretas perante o Tribunal de Justiça e perante a própria Corte relativamente ao mesmo objeto, e com fundamento em norma constitucional de reprodução obrigatória por parte do Estado-Membro".
  7. Em consonância com o defendido anteriormente, há a possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário perante o STF, vislumbrando-se as seguintes hipóteses: a) o legitimado interpõe apenas RE; b) o legitimado interpõe RE e simultaneamente a ADIN perante o STF (caso também seja legitimado para tanto); ou c) o legitimado não interpõe RE, propondo apenas a ADIN.
  8. REIS, Nazareno César Moreira. O controle do Supremo Tribunal Federal sobre a representação de inconstitucionalidade estadual: jurisdição constitucional federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1043, 10 maio 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8379>. Acesso em: 15 ago. 2008.
  9. Leoncy, Léo Ferreira. Controle de constitucionalidade estadual: as normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Saraiva, 2007.
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Sobre a autora
Flávia Ayres de Morais e Silva Brasileiro

Procuradora Federal, Pós-Graduada em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal - ESMA/DF, Pós-Graduada em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASILEIRO, Flávia Ayres Morais Silva. A questão da impugnação de inconstitucionalidade de uma mesma norma no Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1905, 18 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11736. Acesso em: 24 abr. 2024.

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