Questão das mais insolúveis no direito concorrencial diz respeito à perquirição do elemento volitivo na configuração das infrações econômicas.
O Prof. Calixto Salomão, valendo-se de aprofundados estudos de direito comparado sobre a legislação antitruste, lança algumas luzes sobre o problema e aborda a questão nos seguintes termos:
"Para definir a estrutura do ilícito, o primeiro problema a ser enfrentado é o tradicional dilema do direito antitruste entre efeitos e elemento intencional.
A decisão por um ou por outro dos elementos tem importantíssimas conseqüências. Escolher os efeitos como único critério de ilicitude implica aceitar uma visão do direito antitruste baseada na maximização da eficiência (...). Dar importância às intenções, ao lado dos efeitos, significa valorar as condutas e, sobretudo, valorizar o bem jurídico concorrência. "Procurar a intenção" significa perquirir a existência de um objetivo estratégico de atingir o bem concorrência, dominando o mercado, limitando a própria concorrência, etc. Consequentemente, a preocupação com as intenções, com os objetivos, nada mais é que preocupação com a concorrência." (Cf. Direito Concorrencial – as condutas. São Paulo: Malheiros Editores, p. 94-95).
Analisemos agora como se posicionou o legislador pátrio diante dessa controversa questão dos elementos caracterizadores do ilícito na seara do direito concorrencial.
Uma interpretação superficial do art 20 da lei 8884/94 nos conduz ao entendimento de que ali se consagra a responsabilidade objetiva, restando inócua, portanto, qualquer tentativa de se apurar o elemento volitivo com vistas a isentar os agentes econômicos de responsabilidade diante da produção ou da possibilidade de produção de efeitos anticoncorrenciais. Senão, vejamos:
"Art 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:"
Não resta dúvida, portanto, e este tem sido o entendimento dos órgãos de defesa da concorrência, de que não há que se falar em apuração da intenção dos agentes econômicos em se tratando de infrações econômicas, pois o legislador optou por consagrar a responsabilidade objetiva, valendo-se, para tanto, da expressão independentemente de culpa.
Já se argumentou que a referida expressão colide frontalmente com o preceito constitucional a que se refere o art. 173, parágrafo 4º, da Constituição Federal, que dispõe, in verbis:
"Art. 173:
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§ 4º A lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."
Com efeito, de acordo com a Carta Magna, é inegável a presença de elemento volitivo na apuração de responsabilidade pela prática de infrações econômicas, sendo perfeitamente questionável, sob esse aspecto, a constitucionalidade da expressão independentemente de culpa, contida no art. 20 da lei 8884/94 , que é inclusive objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ainda não julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
De qualquer forma, uma leitura mais atenta do referido artigo, nos permite encontrar ali uma referência expressa à necessidade do elemento volitivo para a responsabilização dos agentes econômicos. Senão, vejamos:
"Art 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III – aumentar arbitrariamente os lucros;
IV – exercer de forma abusiva posição dominante.
§ 1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II."
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Não há como negar a presença de algum elemento intencional nos atos direcionados a um objetivo. Por outro lado, todos os efeitos enumerados nos incisos do art. 20 pressupõem uma intenção clara de realizá-los, no sentido de lesar a concorrência. O único caso que poderia ensejar alguma dúvida quanto à intencionalidade do ato - inciso II - foi devidamente esclarecido pelo parágrafo 1º.
É notório, portanto, o intuito do legislador de considerar a intenção do agente econômico na apuração da responsabilidade pelas infrações econômico-penais. Essa observação nos permite concluir que os delitos previstos no artigo supra-citado possuem natureza dolosa. As infrações à ordem econômica são delitos dolosos, que contemplam um elemento subjetivo do injusto, indispensável para a sua consumação.
Podemos concluir, portanto, que a expressão independentemente de culpa (do art. 20 da lei 8884/94) afronta diretamente o art. 173, § 4º, da Constituição Federal, exacerba desproporcionadamente a natureza repressiva da legislação de defesa da concorrência e contradiz literalmente o próprio artigo que a consagra. Está fora de lugar no nosso sistema jurídico de proteção da concorrência e, por isso, até que seja declarada inconstitucional, deve ser interpretada restritivamente pelo aplicador do direito que não dispensará a prova do elemento subjetivo do injusto, na caracterização das infrações à ordem econômica.
Interpretações possíveis
Desse modo, diante da necessidade de se compatibilizar o art. 20 da lei 8884/94 com o art. 173, § 4º da CF, tem sido sugeridas diversas interpretações para a expressão independentemente de culpa.
Uma leitura possível para a referida expressão poderia ser "independentemente de prova de culpa." A expressão faria as vezes de uma presunção relativa de dolo e abriria a possibilidade, por parte dos agentes econômicos, de se provar a inexistência da intenção de lesar a concorrência.
Embora seja essa uma louvável tentativa de atenuar o excessivo rigor da pretensa responsabilidade objetiva prevista na legislação antitruste, não nos parece satisfatória, uma vez que o preceito constitucional não faz qualquer restrição à presença do elemento volitivo na apuração da responsabilidade dos agentes econômicos. Além disso, a inversão do ônus da prova seria incompatível com uma legislação que já possui natureza repressiva, como a lei de defesa da concorrência.
Nesse intuito de compatibilizar os artigos, quem mais se aproxima de uma proposta satisfatória, conciliando o rigor da legislação antitruste com a necessidade constitucional de se apurar o elemento subjetivo do injusto, é José Inácio Gonzaga Franceschini.
Ensina o referido autor que não tendo a lei especificado a modalidade de culpa prescindível na caracterização da infração, uma leitura possível da expressão independente de culpa, poderia ser "independentemente da modalidade de culpa de dolo direto". Assim, sendo totalmente prescindível in casu a perquirição do dolo direto, não estará a autoridade administrativa, contudo, dispensada de provar o dolo eventual na apuração da responsabilidade dos agentes econômicos investigados.
Investigação de cartéis
Evidentemente, a correta interpretação da referida expressão, contida no caput do art. 20, até que seja declarada sua inconstitucionalidade, terá relevantes implicações na atuação dos órgãos de defesa da concorrência. Nesse sentido, merece especial atenção a investigação de cartéis.
Nessas situações, tendo em vista a grande dificuldade de se colher provas que configurem a infração, os órgãos de proteção da concorrência têm se valido de indícios na tentativa de caracterizar o acordo de vontades entre as empresas. Não obstante o valor inquestionável dos indícios nas circunstâncias em que se torna difícil a obtenção de prova direta, é cediço que a condenação por indícios só pode ocorrer em casos muitos excepcionais. Por outro lado, para se caracterizar a formação de cartel deve-se ir além da prova do acordo. Nesse sentido, afirma Calixto Salomão Filho:
"Recentemente, essa tem sido a tendência da prática brasileira. Investigação de cartéis tem-se resumido à busca de prova de acordo. Em função disso, a disciplina só se enfraquece. De um lado, a fattispecie ganha definição formal e não-sistemática. Torna-se necessariamente restrita, pois passa a englobar apenas as hipóteses de acordo expresso e formalizado.
De outro, para compensar essa restrição, a tendência é e tem sido ampliar enormemente aquilo que pode ser considerado prova de acordo. Sequer são necessários indícios. Bastam com freqüência, suposições. Com isso, de um lado, direitos individuais diversos passam a ser desrespeitados e, de outro, as investigações são, com freqüência, infrutíferas.
Observe-se, por exemplo, o que pode ocorrer caso se pretenda assumir que toda reunião entre concorrentes é uma prova (ou indício) de existência de cartel: os agentes serão punidos pelo simples fato de se reunirem. Há, em primeiro lugar, claro desrespeito ao direito constitucional de reunião – que se configura exatamente pela restrição à reunião em si, sem preocupação com seu conteúdo. De outro, não há tutela do valor protegido, que é a concorrência, e não a ausência de contato entre os concorrentes." (Cf. Direito concorrencial – as condutas, p. 265-266)."
Frente a esses e outros eventuais abusos cometidos pelos órgãos de proteção da concorrência, adquire relevância ainda maior para os agentes econômicos a garantia de que, na apuração de sua responsabilidade, será considerado o elemento subjetivo do injusto, indispensável para a consumação da infração.
Na interpretação do art. 20 da lei 8884/94, com vistas a apurar a responsabilidade dos agentes econômicos, deve-se considerar, além da verificação dos efeitos anticoncorrenciais eventualmente produzidos, a intencionalidade dos atos que lhe deram causa. Em se tratando de colusão horizontal, por exemplo, não haverá indício veemente de cartel se a conduta investigada tiver outras motivações plausíveis, além da lesão à concorrência. Essas motivações outras configurariam contra-indícios, que, se não anulariam, pelo menos, subtrairiam força probatória dos indícios ou circunstâncias indicadoras da formação de cartel.
Essa análise conjunta dos elementos "efeitos" e "intenção" na responsabilização dos entes econômicos traria mais segurança e certeza ao mercado, gerando estabilidade para o desenvolvimento harmonioso dos sujeitos econômicos num perfeito equilíbrio entre livre iniciativa e livre concorrência.