Artigo Destaque dos editores

O princípio da moralidade como fundamento para o indeferimento de registro de candidatura

Exibindo página 2 de 3
04/10/2008 às 00:00
Leia nesta página:

4.PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA.

No tocante ao argumento do princípio da presunção da inocência, constata-se, de igual maneira, que não há óbice algum ao posicionamento, aqui, defendido, senão vejamos.

O artigo 15, da Constituição da República Federativa do Brasil, preconiza que, in verbis: "É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos [26]".

Ora, muito embora a Carta Magna não tenha definido quais são os casos de suspensão e quais os casos de perda dos direitos políticos, extrai-se, dos efeitos dos casos contemplados no referido dispositivo, bem como do sistema jurídico, que a condenação criminal transitada em julgado é uma hipótese de suspensão daqueles direitos, afetando, portanto, conforme fora dito alhures, os direitos políticos positivos.

Conquanto o trânsito em julgado criminal seja uma causa de suspensão de direitos políticos, tal circunstância, por si só, não tem o condão de impedir que o Magistrado, no exercício de seu mister institucional, possa se valer dos artigos 1º, II e 37, caput, coadunados com o artigo 14, §9º, todos da Constituição Federal, para fins de indeferir o registro de candidaturas de cidadãos que respondem a processos criminais ainda não findados, eis que não se estaria suspendendo os direitos políticos, podendo esses cidadãos exercer seus direitos políticos, tais como votar, participar de plebiscito e referendo, ajuizar ação popular, mas apenas naquela eleição episódica não poderiam registrar-se como candidatos. Haveria, no caso, tão-somente, um impedimento à capacidade eleitoral de ser votado, a qual não se confunde com os direitos políticos positivos.

Ou seja, se determinado cidadão estiver respondendo a processo penal ainda não transitado em julgado, será ele tratado e processado, nessa relação processual penal em questão, como se inocente fosse, sendo a ele assegurado todas garantias constitucionais e legais decorrentes do princípio da presunção da inocência. Isto é insofismável. Mas, apenas e, tão-somente, não poderia candidatar-se naquela eleição específica, eis porque se levaria em consideração o princípio da moralidade.

Tal é permitido, eis porque o intérprete deve realizar um trabalho de interpretação não apenas literal, mas também sistemático, compatibilizando e integrando a legislação constitucional, valendo-se, para tanto, dos ditames principiológicos.

Com efeito, não se diga que se trata de uma interpretação extensiva a uma norma restritiva, mas, ao revés, de uma interpretação sistemática, não só da Lei Maior, mas do ordenamento jurídico, porquanto, torna-se forçoso que os operadores do direito se desamarrem das vestes da interpretação estritamente formal e legalista, dantes tanto utilizada.

Logo, não há que se invocar os princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção do estado de inocência, no caso em comento, ambos insertos nos incisos LIV, LV e LVII, do artigo 5º, da Carta Magna.

Esses princípios são de fundamental importância, devendo mesmo existirem, serem respeitados e observados. Contudo, não devem ser absolutizados, vale dizer, devem ser compatibilizados, para que a partir de uma sistematização e conseqüente harmonização, prevaleçam os vitais e essenciais para realização da justiça in casu. Assim sendo, ocorrendo um conflito aparente de princípios, deve o intérprete socorrer-se da sua confrontação, utilizando-se da razoabilidade e da proporcionalidade, para se chegar a uma valoração da aplicação prevalente em cada caso concreto e pontual.

Ademais, quando ocorre um conflito de princípios (diferente da solução de ab-rogação dada no conflito entre regras e princípios), por eles terem peso e não se excluírem é mister se proceder com a ponderação dos interesses que estão em jogo para se chegar à solução do caso concreto – "Relação de procedência condicionada" [27].

Isto significa que quando dois princípios estão em colisão, um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado haja que ser introduzida uma cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso.

A solução da colisão consiste em, tendo em conta as circunstâncias do caso, estabelecer entre os princípios uma relação de precedência condicionada. A determinação da relação de precedência condicionada consiste em, tomando em conta o caso, indicar as condições segundo as quais um princípio precede ao outro. E, segundo outras condições, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente.

Há alguns passos a serem seguidos para se fazer a ponderação: "(i) primeiro se investigam e identificam os princípios (valores, direitos, interesses) em conflito, e quanto mais elementos forem trazidos mais correto poderá ser o resultado final da ponderação; (ii) segundo, atribui-se o peso ou importância que lhes corresponda, conforme as circunstâncias do caso concreto; e (iii) por fim, decide-se sobre a prevalência de um deles sobre o outro (ou outros)" [28].

"O resultado da ponderação é a decisão em si, a solução corretamente argumentada18 conforme o critério de que, quanto maior seja o grau de prejuízo do princípio que há de retroceder, maior há de ser a importância do cumprimento do princípio que prevalece" [29].

Deveras, o ordenamento jurídico deve ter suas arestas consolidadas em regras e princípios que o norteiam, dando-lhe legitimidade, liberdade, estabilidade e segurança jurídicas, a fim de que um Estado Democrático de Direito assegure, não apenas a mera igualdade formal entre os cidadãos, mas também a igualdade substancial.

Nesse viés, prevalecerão, com a devida venia, os princípios que asseguram aquelas peculiaridades, que, na situação em questão, são os princípios da moralidade, da probidade e da legitimidade, inerentes que são, à pessoa humana, como também ao Estado Democrático de Direito, do qual todo o poder emana do povo.

Não se trata de adotar e levantar a bandeira, com esse posicionamento, de questões subjetivas em detrimento do princípio da presunção do estado de inocência e do devido processo legal, eis que não se quer mitigá-los porque são fundamentais. Porquanto ninguém está sendo considerado culpado antes do trânsito em julgado e nem se estaria suspendendo os direitos políticos, com o desrespeito ao "due process of law", uma vez que continuarão, os acusados, a serem processados em seus devidos trâmites legais e processuais, sendo considerados e tratados, no processo criminal, como inocentes, até que sobrevenha condenação judicial transitada em julgado, restringindo-se o princípio da presunção da inocência a seara do processo penal.

Entretanto, apenas e, tão-somente, está-se posicionando no sentido do indeferimento dos pedidos de registro de candidaturas de pessoas que, no caso pontual, não atendem com as características e exigências da moralidade, da probidade, da boa-fé e da ética, tão necessárias ao espírito e a essência daqueles que pretendem concorrer a cargos eletivos e políticos. Eis que, possivelmente, serão os responsáveis pelas condições de sobrevivência das gerações presentes e vindouras, quando do exercício da gestão da máquina administrativa e financeira.

Infere-se, portanto, que se eventual candidato a determinado mandato eletivo estiver respondendo a processos por crimes graves ainda não findos, continuará tal pessoa a ser tratado e processado como inocente até que sobrevenha decisão final condenatória com o devido trânsito em julgado, observando-se, desta feita, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência. Em absoluto não se pretende romper com tal postulado. Mas, apenas e, tão-só, restringe-se esse principio ao âmbito do processo penal, ventilando-se a possibilidade de indeferir o registro de candidaturas de postulantes que não atendam, naquele caso episódico, aos princípios da moralidade e da probidade.

No particular, torna-se forçoso trazer à tona trechos do voto da Juíza relatora Jacqueline Montenegro, expresso no acórdão 31.238, do ano de 2006, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro [30]:

Não é possível mais aceitar que um pretendente a candidato apresente a este Tribunal e, conseqüentemente, a toda população, uma certidão repleta de anotações criminais, sem qualquer preocupação com esclarecimentos e documentos que possam enfraquecer ou infirmar cada uma delas e nós, simplesmente, lançando mão impropriamente do princípio da não culpabilidade, que não se aplica ao caso, abrirmos as portas a essas pessoas, para que se apresentem assim ao eleitor como dignas de representá-los, com a chancela do TRE. Há que se mudar este estado de coisas.

(...) Em suma, insta acentuar, definitivamente, que sequer se está diante de conflito entre normas constitucionais, porquanto o artigo 5º, LVII, da CF, nada tem a ver com o caso em tela, já que este Egrégio Tribunal não irá efetuar juízo sobre a culpa do requerente nos delitos anotados em seu desfavor. Aqui se aplica exclusivamente a sistemática trazida pela EC 04/94, que contém princípios éticos a informar as hipóteses de inelegibilidade, que, obviamente, não dependem de Lei Complementar para vigerem, por isso que auto-aplicáveis. (...)

Calhar ressaltar, outrossim, ad argumentandum tantum, para fins de demonstrar que o princípio da presunção da inocência restringe-se ao âmbito do direito penal e do processo penal, que o Código Civil arrola em seu artigo 1814, algumas hipóteses de exclusão da herança por indignidade, dentre as quais pode-se destacar aquela prevista no inciso "I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente [31]".

Deveras, a doutrina civilista, em sua maioria, segundo os juristas Sílvio de SalvoVenosa [32] e Silvio Rodrigues [33], pontifica que tal causa de exclusão da herança por indignidade prescinde de condenação criminal. Ora, se é possível excluir por indignidade o autor, co-autor ou partícipe de homicídio doloso ou tentativa deste, sem necessitar da condenação penal, resta evidente, data venia, que o princípio da presunção da inocência limita-se à seara do direito penal e processual penal, corroborando, pois, o entendimento, aqui, sufragado.

Há de se frisar, ainda, que esse entendimento não deve e não tem o condão de autorizar abusos e excessos de interpretações, pois é de exegese restritiva, já que se trata de uma exceção à regra, porquanto não deve servir como meio de perseguições e combates políticas, mas de resguardar a sociedade, mediante um trabalho preventivo, quando da aplicação ao caso específico. Nesse viés, o que se busca é evitar eventuais descalabros administrativos e financeiros por parte daqueles que não atendam com aquelas mencionadas peculiaridades e requisitos. Isto é,

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Devemos sempre lembrar, antes de iniciar qualquer ponderação, que nenhum princípio deve ser inválido e nenhum tem precedência absoluta sobre o outro. Mas pode ser formulada uma regra de procedência geral ou básica quando se determina em quais circunstâncias especiais um princípio deve ceder ao outro; é uma cláusula ceteris paribus que permite estabelecer exceções [34].

Portanto, estabelecidos restarão, então, parâmetros capazes de equacionar e equilibrar os conflitos de interesses pessoais e coletivos, tendo em vista que um verdadeiro Estado Democrático tem suas vertentes embasadas na liberdade, igualdade, fraternidade, diversidade e participação popular.

Desta feita, conclui-se que em não se tratando, como mencionado alhures, de causa de suspensão de direitos políticos e nem de inelegibilidades, e que o princípio da presunção da inocência restringe-se ao âmbito do direito penal e do processo penal, com a devida venia das posições do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, comunga-se do entendimento da constitucionalidade de indeferimento do registro de candidatura, tendo como pedra angular o princípio da moralidade e com espeque nos artigos 1º, inciso II, c/c os artigos 14, § 9º, e 37, caput, da Constituição Federal.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 127, p. 55-66, jul./set, 1999.

_____. Teoría de los derechos fundamentais. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993.

AMORIM Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy. Esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 165 jan./mar, p. 123-124, 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. RT Legislação.

BRASIL. Código Civil. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. RT Legislação.

CLEMENT, F. de. El método em la aplicación del Derecho Civil. Revista de Derecho Privado, 37 ano VI, out. 16.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Bahia: Juspodivm. 2008.

DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1995.

DOWRKIN, Ronald. Taking Rigths Seriously. Havard University Press, 1978.

HOLTHE, Leo van. Direito constitucional. 2 ed.. Bahia: Juspodivm. 2006.

MELO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17 ed.. São Paulo: Malheiros. 2004.

MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. In: Princípios Penais Constitucionais. Org. Ricardo Augusto Schmitt. Bahia: JusPodivm, 2007.

PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal: legislação e jurisprudência atualizadas. São Paulo: Atlas. 2002.

RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 5 ed.. Rio de Janeiro: Impetus. 2006.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 7.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.

SANTIAGO, José Maria Rodríguez de. La ponderación de bienes e intereses den el derecho administrativo. Madrid: Marcial Pons, 2000.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000.

SILVA, José Afonsa da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed.. São Paulo: Malheiros. 1998.

TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Fundamento de direito ambiental. 2 ed.Bahia: JusPodivm, 2007.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003. v.7.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gustavo Machado Tavares

Procurador Judicial do Município do Recife. Especialista em Novas Questões do Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas em convênio com a Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB-PE. Pós-graduando em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco. Concluinte do Curso de Preparação e Aperfeiçoamento à Magistratura pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco - ESMAPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Gustavo Machado. O princípio da moralidade como fundamento para o indeferimento de registro de candidatura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1921, 4 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11805. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos