4.PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA.
No tocante ao argumento do princípio da presunção da inocência, constata-se, de igual maneira, que não há óbice algum ao posicionamento, aqui, defendido, senão vejamos.
O artigo 15, da Constituição da República Federativa do Brasil, preconiza que, in verbis: "É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos [26]".
Ora, muito embora a Carta Magna não tenha definido quais são os casos de suspensão e quais os casos de perda dos direitos políticos, extrai-se, dos efeitos dos casos contemplados no referido dispositivo, bem como do sistema jurídico, que a condenação criminal transitada em julgado é uma hipótese de suspensão daqueles direitos, afetando, portanto, conforme fora dito alhures, os direitos políticos positivos.
Conquanto o trânsito em julgado criminal seja uma causa de suspensão de direitos políticos, tal circunstância, por si só, não tem o condão de impedir que o Magistrado, no exercício de seu mister institucional, possa se valer dos artigos 1º, II e 37, caput, coadunados com o artigo 14, §9º, todos da Constituição Federal, para fins de indeferir o registro de candidaturas de cidadãos que respondem a processos criminais ainda não findados, eis que não se estaria suspendendo os direitos políticos, podendo esses cidadãos exercer seus direitos políticos, tais como votar, participar de plebiscito e referendo, ajuizar ação popular, mas apenas naquela eleição episódica não poderiam registrar-se como candidatos. Haveria, no caso, tão-somente, um impedimento à capacidade eleitoral de ser votado, a qual não se confunde com os direitos políticos positivos.
Ou seja, se determinado cidadão estiver respondendo a processo penal ainda não transitado em julgado, será ele tratado e processado, nessa relação processual penal em questão, como se inocente fosse, sendo a ele assegurado todas garantias constitucionais e legais decorrentes do princípio da presunção da inocência. Isto é insofismável. Mas, apenas e, tão-somente, não poderia candidatar-se naquela eleição específica, eis porque se levaria em consideração o princípio da moralidade.
Tal é permitido, eis porque o intérprete deve realizar um trabalho de interpretação não apenas literal, mas também sistemático, compatibilizando e integrando a legislação constitucional, valendo-se, para tanto, dos ditames principiológicos.
Com efeito, não se diga que se trata de uma interpretação extensiva a uma norma restritiva, mas, ao revés, de uma interpretação sistemática, não só da Lei Maior, mas do ordenamento jurídico, porquanto, torna-se forçoso que os operadores do direito se desamarrem das vestes da interpretação estritamente formal e legalista, dantes tanto utilizada.
Logo, não há que se invocar os princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção do estado de inocência, no caso em comento, ambos insertos nos incisos LIV, LV e LVII, do artigo 5º, da Carta Magna.
Esses princípios são de fundamental importância, devendo mesmo existirem, serem respeitados e observados. Contudo, não devem ser absolutizados, vale dizer, devem ser compatibilizados, para que a partir de uma sistematização e conseqüente harmonização, prevaleçam os vitais e essenciais para realização da justiça in casu. Assim sendo, ocorrendo um conflito aparente de princípios, deve o intérprete socorrer-se da sua confrontação, utilizando-se da razoabilidade e da proporcionalidade, para se chegar a uma valoração da aplicação prevalente em cada caso concreto e pontual.
Ademais, quando ocorre um conflito de princípios (diferente da solução de ab-rogação dada no conflito entre regras e princípios), por eles terem peso e não se excluírem é mister se proceder com a ponderação dos interesses que estão em jogo para se chegar à solução do caso concreto – "Relação de procedência condicionada" [27].
Isto significa que quando dois princípios estão em colisão, um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado haja que ser introduzida uma cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso.
A solução da colisão consiste em, tendo em conta as circunstâncias do caso, estabelecer entre os princípios uma relação de precedência condicionada. A determinação da relação de precedência condicionada consiste em, tomando em conta o caso, indicar as condições segundo as quais um princípio precede ao outro. E, segundo outras condições, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente.
Há alguns passos a serem seguidos para se fazer a ponderação: "(i) primeiro se investigam e identificam os princípios (valores, direitos, interesses) em conflito, e quanto mais elementos forem trazidos mais correto poderá ser o resultado final da ponderação; (ii) segundo, atribui-se o peso ou importância que lhes corresponda, conforme as circunstâncias do caso concreto; e (iii) por fim, decide-se sobre a prevalência de um deles sobre o outro (ou outros)" [28].
"O resultado da ponderação é a decisão em si, a solução corretamente argumentada18 conforme o critério de que, quanto maior seja o grau de prejuízo do princípio que há de retroceder, maior há de ser a importância do cumprimento do princípio que prevalece" [29].
Deveras, o ordenamento jurídico deve ter suas arestas consolidadas em regras e princípios que o norteiam, dando-lhe legitimidade, liberdade, estabilidade e segurança jurídicas, a fim de que um Estado Democrático de Direito assegure, não apenas a mera igualdade formal entre os cidadãos, mas também a igualdade substancial.
Nesse viés, prevalecerão, com a devida venia, os princípios que asseguram aquelas peculiaridades, que, na situação em questão, são os princípios da moralidade, da probidade e da legitimidade, inerentes que são, à pessoa humana, como também ao Estado Democrático de Direito, do qual todo o poder emana do povo.
Não se trata de adotar e levantar a bandeira, com esse posicionamento, de questões subjetivas em detrimento do princípio da presunção do estado de inocência e do devido processo legal, eis que não se quer mitigá-los porque são fundamentais. Porquanto ninguém está sendo considerado culpado antes do trânsito em julgado e nem se estaria suspendendo os direitos políticos, com o desrespeito ao "due process of law", uma vez que continuarão, os acusados, a serem processados em seus devidos trâmites legais e processuais, sendo considerados e tratados, no processo criminal, como inocentes, até que sobrevenha condenação judicial transitada em julgado, restringindo-se o princípio da presunção da inocência a seara do processo penal.
Entretanto, apenas e, tão-somente, está-se posicionando no sentido do indeferimento dos pedidos de registro de candidaturas de pessoas que, no caso pontual, não atendem com as características e exigências da moralidade, da probidade, da boa-fé e da ética, tão necessárias ao espírito e a essência daqueles que pretendem concorrer a cargos eletivos e políticos. Eis que, possivelmente, serão os responsáveis pelas condições de sobrevivência das gerações presentes e vindouras, quando do exercício da gestão da máquina administrativa e financeira.
Infere-se, portanto, que se eventual candidato a determinado mandato eletivo estiver respondendo a processos por crimes graves ainda não findos, continuará tal pessoa a ser tratado e processado como inocente até que sobrevenha decisão final condenatória com o devido trânsito em julgado, observando-se, desta feita, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência. Em absoluto não se pretende romper com tal postulado. Mas, apenas e, tão-só, restringe-se esse principio ao âmbito do processo penal, ventilando-se a possibilidade de indeferir o registro de candidaturas de postulantes que não atendam, naquele caso episódico, aos princípios da moralidade e da probidade.
No particular, torna-se forçoso trazer à tona trechos do voto da Juíza relatora Jacqueline Montenegro, expresso no acórdão 31.238, do ano de 2006, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro [30]:
Não é possível mais aceitar que um pretendente a candidato apresente a este Tribunal e, conseqüentemente, a toda população, uma certidão repleta de anotações criminais, sem qualquer preocupação com esclarecimentos e documentos que possam enfraquecer ou infirmar cada uma delas e nós, simplesmente, lançando mão impropriamente do princípio da não culpabilidade, que não se aplica ao caso, abrirmos as portas a essas pessoas, para que se apresentem assim ao eleitor como dignas de representá-los, com a chancela do TRE. Há que se mudar este estado de coisas.
(...) Em suma, insta acentuar, definitivamente, que sequer se está diante de conflito entre normas constitucionais, porquanto o artigo 5º, LVII, da CF, nada tem a ver com o caso em tela, já que este Egrégio Tribunal não irá efetuar juízo sobre a culpa do requerente nos delitos anotados em seu desfavor. Aqui se aplica exclusivamente a sistemática trazida pela EC 04/94, que contém princípios éticos a informar as hipóteses de inelegibilidade, que, obviamente, não dependem de Lei Complementar para vigerem, por isso que auto-aplicáveis. (...)
Calhar ressaltar, outrossim, ad argumentandum tantum, para fins de demonstrar que o princípio da presunção da inocência restringe-se ao âmbito do direito penal e do processo penal, que o Código Civil arrola em seu artigo 1814, algumas hipóteses de exclusão da herança por indignidade, dentre as quais pode-se destacar aquela prevista no inciso "I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente [31]".
Deveras, a doutrina civilista, em sua maioria, segundo os juristas Sílvio de SalvoVenosa [32] e Silvio Rodrigues [33], pontifica que tal causa de exclusão da herança por indignidade prescinde de condenação criminal. Ora, se é possível excluir por indignidade o autor, co-autor ou partícipe de homicídio doloso ou tentativa deste, sem necessitar da condenação penal, resta evidente, data venia, que o princípio da presunção da inocência limita-se à seara do direito penal e processual penal, corroborando, pois, o entendimento, aqui, sufragado.
Há de se frisar, ainda, que esse entendimento não deve e não tem o condão de autorizar abusos e excessos de interpretações, pois é de exegese restritiva, já que se trata de uma exceção à regra, porquanto não deve servir como meio de perseguições e combates políticas, mas de resguardar a sociedade, mediante um trabalho preventivo, quando da aplicação ao caso específico. Nesse viés, o que se busca é evitar eventuais descalabros administrativos e financeiros por parte daqueles que não atendam com aquelas mencionadas peculiaridades e requisitos. Isto é,
Devemos sempre lembrar, antes de iniciar qualquer ponderação, que nenhum princípio deve ser inválido e nenhum tem precedência absoluta sobre o outro. Mas pode ser formulada uma regra de procedência geral ou básica quando se determina em quais circunstâncias especiais um princípio deve ceder ao outro; é uma cláusula ceteris paribus que permite estabelecer exceções [34].
Portanto, estabelecidos restarão, então, parâmetros capazes de equacionar e equilibrar os conflitos de interesses pessoais e coletivos, tendo em vista que um verdadeiro Estado Democrático tem suas vertentes embasadas na liberdade, igualdade, fraternidade, diversidade e participação popular.
Desta feita, conclui-se que em não se tratando, como mencionado alhures, de causa de suspensão de direitos políticos e nem de inelegibilidades, e que o princípio da presunção da inocência restringe-se ao âmbito do direito penal e do processo penal, com a devida venia das posições do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, comunga-se do entendimento da constitucionalidade de indeferimento do registro de candidatura, tendo como pedra angular o princípio da moralidade e com espeque nos artigos 1º, inciso II, c/c os artigos 14, § 9º, e 37, caput, da Constituição Federal.
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