Nos últimos meses de 2008, a crise financeira mundial iniciada a partir da crise hipotecária americana, que se arrastava desde o final de 2006, tomou dimensões de verdadeiro incêndio nos mercados financeiros de todo o mundo, afetando com mais impacto os países centrais do capitalismo (Estados Unidos e Europa Ocidental), mas tendendo a espalhar-se rapidamente para os países periféricos, especialmente os "em desenvolvimento", entre os quais o Brasil.
Para o resto do mundo, a quebra do Lehman Brothers, quarto maior banco dos Estados Unidos da América, em 15/09/2008, foi o ponto em que a situação saiu totalmente do controle, gerando uma espiral de incertezas em que tudo o que antes era tido como relativamente seguro, previsível, passou a condição diamentralmente oposta, de total incerteza e desconfiança, sem se saber qual seria a situação do dia seguinte.
É nesse quadro que passaram a ter relevância sem par contratos celebrados por empresas brasileiras dos mais diversos ramos de atividade, em mercados de balcão, relativos a operações de swap autorizados pela Resolução BACEN nº 3.505, de 26/09/2007. Nas condições de "temperatura e pressão" anteriores ao incêndio financeiro internacional, tais contratos tinham pouco impacto dentro das empresas, mas na situação atual passaram a representar a vida ou a morte das entidades que neles foram envolvidas. Gigantes como a Sadia, a Aracruz e a Votorantim já divulgaram fatos relevantes ao mercado, dando ciência de perdas da ordem de R$ 750 milhões, R$ 1,95 bilhão e R$ 2,2 bilhões, respectivamente.
Mas por que tanto prejuízo? Grosso modo, tais contratos se caracterizam por estabelecer que a cada mês há uma operação "hedgiada" específica, isolada uma da outra, de tal forma que os ônus dela decorrentes se renovam ao término de cada mês-calendário. Significa dizer que se uma empresa perdeu uma fortuna com esse tipo de avença em setembro/2008, com a subida da Ptax a "módicos" R$ 1,91, poderia voltar a perder muito mais, caso se acentuasse a depreciação do Real. Foi por isso que as três gigantes preferiram pagar para se retirar desse risco que não teria limite, a esperar ver no que vai resultar a crise (lembremos que na campanha presidencial de 2002, o dólar bateu à casa dos R$ 4,00).
Sendo assim, a despeito dos cuidados com que em geral são redigidos pelos (e para) bancos neles envolvidos, não temos dúvidas de que por força da crise financeira mundial, é questionável dentro do ordenamento jurídico brasileiro esse tipo de contrato, pois analisando as fórmulas neles indicadas, terminamos por constatar o seguinte:
1)as obrigações assumidas são absolutamente desproporcionais, pois o ganho para as empresas contratantes em geral é limitado ao CDI, enquanto os bancos são remunerado pelo CDI e taxa de spread, bem como por uma valor adicional que é calculado por uma operação matemática que tem como termos relevantes a Ptax do vencimento de cada swap e o valor do câmbio acertado. Em geral, o índice obtido por essa operação matemática, e somente se positivo, portanto favorável aos bancos, incide sobre o total da operação de hedge.
A verdade é que nesse formato mais comum adotado para esse tipo de operação, só há risco, efetivamente, para as empresas contratantes. Os bancos sabem exatamente quando pode vir a ser onerados, não havendo risco de desembolso de um centavo a mais do que o limite pactuado com base, geralmente, no CDI. Já os contratantes ficam com risco infinito, que a depender de quanto a Ptax ultrapasse o valor do câmbio acertado, pode até mesmo ser superior a todo o valor da operação garantida.
Portanto, é de se invocar nesses casos as novas disposições do Código Civil de 2002, que em seus arts. 421 a 422 determina o seguinte:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Com base nessas determinações do Código Civil de 2002, entende-se hoje que não é a mera e simples autonomia da vontade que direciona a execução dos contratos. A vontade não mais vigora ampla e livremente como antes se acreditava no capitalismo liberal, ainda que já tivesse sido reduzida no Brasil por inúmeras normas, como o Código de Defesa do Consumidor (de 1990). A autonomia da vontade, anteriormente louvada pelos sistemas econômicos capitalistas liberais, tem hoje limites severos, impostos pelo Estado.
É certo que o acordo de vontades continua sendo o elemento subjetivo essencial de qualquer contrato, pois esse tipo de negócio jurídico só se origina da declaração de vontade de partes "livres". Assim, a liberdade individual e a iniciativa pessoal continuam sendo a própria razão de ser de quase todos os contratos. No entanto, a visão mais humanitária do Estado Democrático de Direito impõe uma certa mitigação pelo Poder Público à autonomia individual, que não tem hoje a mesma plenitude que já foi propalada em outros tempos. O contrato, per si, não tem mais a força absoluta de outrora, e o princípio do pacta sunt servanda está muito relativizado.
Sobre o assunto, a doutrina de Theodoro Júnior (in O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 6) ensina com a característica clareza:
É inegável, nos temos atuais, que os contratos, de acordo com a visão social do Estado Democrático de direito, hão de submeter-se ao intervencionismo estatal manejado com o propósito de superar o individualismo egoístico e buscar a implantação de uma sociedade presidida pelo bem-estar e sob "efetiva prevalência da garantia jurídica dos direitos humanos".
Como se vê, os princípios da liberdade de contratar, da força obrigatória dos contratos e da relatividade dos seus efeitos não são mais os únicos a balisar a análise de um contrato sob disputa judicial. Tais princípios ainda continuam vigorando e tendo muita importância, mas a eles devem ser acrescidos outros três princípios trazidos à atenção desde a Constituição de 1988, e que tomaram envergadura com o Código Civil de 2002:
a) da função social do contrato;
b) da boa-fé objetiva, e
c) do equilíbrio econômico.
O primeiro desses novos princípios está agora expressamente previsto no art. 421 do Código Civil 2002, conforme já apontado. De todo modo, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 1º, IV, já trazia a idéia de função social do contrato, quando elencou como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o valor social da livre iniciativa.
Também o art. 3º da Constituição Federal de 1988 menciona que um dos objetivos fundamentais da República Federativa é construir uma sociedade justa e solidária, sendo que o princípio da função social dos contratos, apontam os doutrinadores, serve justamente como instrumento indispensável para se possibilitar a supremacia e efetividade dessa solidariedade, mesmo quando esteja em jogo a livre iniciativa econômica.
Assim, o princípio da função social do contrato é uma "norma geral" do ordenamento jurídico, de ordem pública, pelo qual o contrato deve ser necessariamente visualizado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade.
Diante disso, para se analisar a função social do contrato, há de se partir da relação do contrato com o seu meio social externo. Significa dizer que o direito contratual, abarcando como um dos seus alicerces o princípio da função social, fez que o contrato deixasse de ser somente interesse dos contratantes, e passou a interferir negativa e positivamente, também, em relação aos terceiros.
Explicado tudo isso, vê-se a absoluta imoralidade de um contrato que prevê riscos limitados e totalmente definidos para uma das partes (os banco geralmente têm seu risco limitado ao CDI), enquanto para a outra parte prevê riscos absolutamente ilimitados, podendo até causar-lhe asfixia financeira e "morte" comercial, a depender da oscilação que a moeda brasileira tenha na atual crise econômica mundial, a maior desde a Grande Depressão dos Anos 30 do Século XX.
2)o contrato poderia ainda ser considerado extinto, sem ônus para os contratante, por onerosidade excessiva no cumprimento de suas determinações, o que causa a resolução involuntária por fato superveniente, conforme descrita no art. 478 do Código Civil de 2002:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação".
Com tal redação, o Código Civil de 2002 consagrou em seu conteúdo a "Teoria da Imprevisão", segundo a qual, havendo fato superveniente que traga vantagem excessiva para apenas uma das partes, o contrato poderá ser rescindido, desde que tal fato seja extraordinário e de difícil ou impossível previsão. É chamada de cláusula "rebus sic stantibus", que é impícita a todos os contratos, e pela qual a relação jurídica deve ser mantida enquanto perdurar a situação fática que originalmente a deu razão de existir.
Para esse ponto, é mister apontar que na língua portuguesa o adjetivo imprevisto significa algo súbito, aquilo que não se prevê, que é inesperado. Daí o substantivo imprevisão indicar, com o perdão da tautologia, a falta de previsão. Na esfera jurídica, na especialidade civil dos contratos, esse vocábulo está contido na teoria de prática relativamente atual, denominada de "Teoria da Imprevisão", que é nada mais do que o reconhecimento de que a ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes que firmaram um contrato, e a elas não-imputáveis (os referidos acontecimentos), refletindo sobre a economia ou a execução do contrato, autorizam, de forma excepcional, a sua revisão para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes.
Assim, o brocardo latino que rege esta teoria, rebus sic stantibus, pode ser lido como "estando as coisas assim" ou "enquanto as coisas estão assim". Ele deriva diretamente da fórmula contractus qui habent tractum sucessivum et dependentium de futuro rebus sic stantibus intelliguntur (os contratos que têm trato sucessivo ou dependência do futuro, entendem-se condicionados pela manutenção do atual estado das coisas), de Nerácio, uma cláusula originaria do direito canônico.
Essa cláusula foi invocada pela primeira vez no Direito Privado capitalista ocidental por ocasião da 1ª Guerra Mundial (Planiol, 1987. vol. IV, p. 294), quando todas as previsões de paz e prosperidade para a Europa bafejada pela riqueza e pela tecnologia galopante do final o Século XIX e início do Século XX transformaram-se em pó – muitas vezes em sentido literal – sob o passo de ganso das tropas do Kaiser Wilhelm II e o caos que se instalou depois. Ela significa que se as coisas, de forma inesperada e imprevisível, mudam abruptamente, elas podem ou devem ser alteradas dentro dos contratos que tinham como base a situação fática que deixou de existir.
A doutrina vem trabalhando esse tema desde então, e hoje é quase uníssono que são pressupostos da "Teoria da Imprevisão":
a)a alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis, o que se denomina de "fato superveniente";
b)a onerosidade excessiva para o devedor não compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperável, diante dos termos do ajuste;
c)o enriquecimento inesperado e injusto para o credor, como conseqüência direta da superveniência imprevista.
São esses acontecimentos supervenientes que alteram profundamente a economicidade do contrato, de tal forma perturbando o seu equilíbrio inicialmente fixado, que torna certo que as partes jamais contratariam se pudessem antever esses fatos.
Assim, em tais circunstâncias, se o contrato fosse mantido redundaria num enriquecimento anormal, em benefício do credor, determinando um empobrecimento da mesma natureza anormal, em relação ao devedor. Conseqüentemente, a imprevisão tende a alterar ou excluir a força obrigatória do contrato.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, em especial nos arts. 1º, 170, e 5º, XXXV, não fecha os olhos para um contrato em que impere o desequilíbrio, a ausência de boa fé e eqüidade, a vantagem exagerada de um dos contraentes e o prejuízo acentuado do outro, mesmo nas relações firmadas entre particulares que continuam a ser reguladas pelo Código Civil de 2002.
Além do art. 478 do Codigo Civil de 2002, já citado, a "Teoria da Imprevisão" também se acha consagrada no art. 317 do mesmo Códice, como segue:
Art. 317: "Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação".
Como se vê, a lei vigente no sistema jurídico brasileiro expressamente permite que o juiz, diante da desproporção entre o valor da dívida e o da execução, decorrente de fatores totalmente imprevisíveis, imponha a devida correção da situação, desde que requerida pela parte prejudicada.
Para a resolução de contrato sob a "Teoria da Imprevisão", é preciso que seja excessiva a diferença de valor do objeto da prestação entre o momento de sua perfeição e o da execução. Ou seja, a onerosidade tem de ser objetivamente excessiva, isto é, a prestação não deve ser excessivamente onerosa apenas em relação ao devedor, mas a toda e qualquer pessoa que se encontrasse em sua posição. Mas não basta, porém, que a prestação se tenha agravado exageradamente. É preciso que a onerosidade tenha sido determinada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Somente numa situação dessa monta é que interessa examinar a onerosidade excessiva.
De todo modo, pelo art. 317 do Código Civil de 2002, outra solução pode ser dada ao problema. Em vez de rescisão do contrato, atribui-se ao juiz o poder de intervir na economia do contrato para reajustar, em bases razoáveis as prestações recíprocas. Pode-se, ainda, favorecer o devedor com a alternativa de pedir a rescisão ou pleitear o reajustamento.
Essa é exatamente a situação dos contratos celebrados e que são objeto da presente análise: eles contêm uma cláusula que em condições normais, ou mesmo "normalmente ruins", da economia brasileira, não traria onerosidade a tal ponto de criar um enriquecimento iníquo de uma parte em favor da outra. Essa situação só surgiu com a crise financeira mundial, decorrente do colapso do sistema de hipotecas dos Estados Unidos da América e depois pela histeria que teve como estopim a quebra do Lehman Brothers, uma crise que já está sendo encarada como a mais próxima daquela que se abateu sobre o mundo ocidental no ano de 1929, deu início à Grande Depressão e criou condições ideais para a horrenda 2ª Guerra Mundial.
Do modo como as coisas estão postas agora, nenhuma pessoa física ou jurídica, assinariam os contratos nos termos que foram celebrados, já que agora se sabe que a sua execução implica num lucro desmesurado e ilimitado para os bancos, e num ganho inexistente para os contratantes.
Portanto, se as partes se obrigam tendo em vista o quadro da realidade, que envolve o presente e suas perspectivas, e fatos novos e imprevisíveis alteram, completa e irrecuperavelmente, as condições do contrato, impondo ônus excessivo somente a uma das partes, o Código Civil de 2002, arts. 478 a 480, oferece ampla e variada forma de proteção à parte prejudicada, compreendendo as possibilidades de resolução dos contratos, reequacionamento das condições espontaneamente pelas partes, redução judicial das prestações devidas ou alterações na forma de pagamento.
Veja-se a jurisprudência do STJ em situação análoga à desse estudo:
REsp 579107 / MT RECURSO ESPECIAL 2003/0129531-2
Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento 07/12/2004
Data da Publicação/Fonte DJ 01/02/2005 p. 544
Ementa
Direito civil. Recurso especial. Ação revisional de contratos de compra e venda de soja verde atrelados à cédulas de produto rural. Cláusula de variação cambial. Autorização para o pacto. Lei 8.880/94. Conselho Monetário Nacional. Resoluções nº. 2148/95 e nº. 2483/98. Validade do ajuste. Excessiva onerosidade. Janeiro de 1999. Distribuição eqüitativa.
- O pacto de cláusula cambial em cédula de produto rural não afronta o art. 6º da Lei nº. 8880/94, porquanto a autorização está prevista em lei federal (Lei nº. 4595/64, art. 4º, incs. VI e XXXI), ficando a cargo do Conselho Monetário Nacional a sua regulamentação, a qual foi exercida, na hipótese, por meio das Resoluções nº. 2148/95 e nº. 2483/98.
- Dada a abrupta variação cambial da moeda americana frente ao Real, verificada em janeiro de 1999, deve ser reconhecida a onerosidade excessiva das prestações tomadas pelo devedor que pactuou cédula de produto rural com cláusula de indexação pela variação cambial. Nessa hipótese, deve a cláusula ser revisada para se distribuir entre devedor e credor, eqüitativamente, a variação cambial observada.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
Por tudo isso, não há dúvidas em se concluir apontando que os contratos discutidos nessa análise, celebrados entre empresas e bancos podem, ser questionados em juízo, demonstrando a sua desproporcionalidade, a ocorrência de fato superveniente excessivamente oneroso e invocando os princípios constitucionais e legais apontados, de forma a impedir um iníquo enriquecimento de uma parte em franco e desarrazoado prejuízo da outra, como está ocorrendo.