4 ANÁLISE DOS TEXTOS LEGAIS E INFRALEGAIS
A fim de demonstrar a ilicitude da apreensão de bens pessoais (lícitos e sem finalidade comercial) em vôos domésticos, analisaremos as disposições legais que são citadas por autoridades fiscais como fundamentos para tal prática.
As apreensões em foco são realizadas com forte nos arts. 87 e 102 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964. Vejamos o referido texto legal:
"Art. 87. Incorre na pena de perda da mercadoria o proprietário de produtos de procedência estrangeira, encontrados fora da zona fiscal aduaneira, em qualquer situação ou lugar, nos seguintes casos:
I – quando o produto, tributado ou não, tiver sido introduzido clandestinamente no país ou importado irregular ou fraudulentamente;
II – quando o produto, sujeito ao impôsto de consumo, estiver desacompanhado da nota de importação ou de leilão, se em poder do estabelecimento importador ou arrematante, ou de nota fiscal emitida com obediência a tôdas as exigências desta lei, se em poder de outros, ou ainda, quando estiver acompanhado de nota fiscal emitida por firma inexistente.
III – quando o produto sujeito ao impôsto de consumo não tiver sido regularmente registrado nos livros ou fichas de contrôle quantitativo próprios, ou quando não tiver sido marcado e selado, na forma determinada pela autoridade competente.
Art. 102. As mercadorias de procedência estrangeira encontradas nas condições previstas no artigo 87 e nos seus incisos I, II e III, serão apreendidas, intimando-se imediatamente, o seu proprietário, possuidor ou detentor a apresentar, no prazo de 24 horas, os documentos comprobatórios de sua entrada legal no país ou de seu trânsito regular no território nacional, lavrando-se de tudo os necessários têrmos.
§ 1º Na hipótese de falta de registro da mercadoria nos livros ou fichas de contrôle quantitativo próprios, comprovada no ato da apreensão, ou quando a mercadoria estiver acompanhada de documentação que não atenda às exigências desta Lei, será dispensada a intimação preliminar prevista neste artigo.
§ 2º Verificando-se as hipóteses do parágrafo anterior, ou decorrido o prazo da intimação sem que sejam apresentados os documentos exigidos ou se êstes não satisfizerem aos requisitos legais, será lavrado o competente auto de infração, que servirá de base ao processo fiscal para a aplicação da penalidade de perda da mercadoria.
§ 3º Transitada em julgado a decisão condenatória, serão as mercadorias vendidas em leilão, competindo ao arrematante pagar o impôsto devido" (grifo nosso).
Segundo o entendimento de autoridades fiscais, as apreensões realizadas e analisadas no presente estudo não são realizadas com forte no inciso I do art. 87 da Lei 4.502/52, cujo fundamento seria a entrada irregular de mercadorias no país, que demanda, conforme subscreve a autoridade fiscal, comprovação deste ilícito. Em vez disso, as apreensões seriam realizadas com forte no inciso II desse mesmo artigo, o qual legitimaria a apreensão de produto portado por qualquer pessoa desde que esta não esteja, no momento, carregando consigo a nota fiscal de compra.
Ainda segundo a mesma linha de entendimento, como a legislação faz referência a produtos "encontrados fora da zona fiscal aduaneira", em qualquer lugar se poderia exigir de qualquer pessoa a apresentação de nota fiscal de qualquer bem, seja um notebook, um telefone celular, uma camisa ou uma bolsa, desde que o bem tenha sido fabricado no estrangeiro. Nesse ponto, seria indiferente se a apreensão se dá num desembarque de vôo doméstico, numa rodoviária ou num shopping center; qualquer lugar estaria englobado pela previsão legal, que seria ampla e irrestrita. Entendemos ser equivocada essa interpretação.
De fato, quanto à aplicação do inciso I, parece não haver divergência. Trata-se de punição decorrente de ato ilícito e, para sua aplicação, deve haver prova precisa do fato, sendo da acusação o ônus probatório, salvo a prova de fatos impeditivos, inclusive por força do princípio da presunção de licitude das situações jurídicas e da presunção de boa-fé subjetiva (art. 5º, LV e LVII, da CRFB; arts. 1202 e 1202 do CC; art. 333 do CPC; art. 156 do CPP; art. 36 da Lei 9.784/99).
O equívoco, porém, dá-se na aplicação do inciso II do art. 87 da Lei 4.502/64. Esse dispositivo, ao impor a pena de perdimento a quem não satisfaz a obrigação acessória de apresentação de nota fiscal, dirige-se ao contribuinte de direito dos impostos incidentes sobre a internalização de mercadorias no país, em geral pessoas jurídicas profissionais, mas não ao consumidor final, "contribuinte de fato" do tributo.
De fato, apresentar nota fiscal é obrigação acessória, como bem definida no art. 113, § 2º, do Código Tributário Nacional. Ocorre que essa obrigação acessória só pode ser exigida do contribuinte de direito. É sobre este que recai o ônus de cumprir obrigações tributárias acessórias, e não sobre o contribuinte de fato, mero consumidor.
Admitida essa premissa, devemos observar que o cidadão comum que circula internamente no país com seus bens pessoais não é contribuinte de direito dos tributos que incidem sobre o ingresso de mercadorias no país, mas somente contribuinte de fato. A ele, nessa situação, não se pode exigir o porte constante de todas as notas fiscais dos bens que leva consigo.
Assim, é necessário compreender melhor a extensão da expressão "estabelecimentos ou pessoas" contida no inciso II antes transcrito. A exigência de nota fiscal de "pessoas", sob pena de perdimento do bem, somente pode ser feita se essas "pessoas" forem contribuintes de direito do tributo. Logo, ainda que se conceda à expressão o alcance das pessoas físicas ("pessoas" poderiam ser tanto "pessoas físicas" quanto "pessoas jurídicas"), como defendem autoridades fiscais, não é a toda pessoa que se impõe esse ônus, mas somente àquelas que, no momento, agem como contribuintes de direito.
Explicamos. Quando um indivíduo, desembarcando de vôo internacional, introduz mercadorias estrangeiras em solo nacional, age ele como contribuinte de direito, pois que, nesse momento, está incidindo a norma jurídica matriz do tributo, sendo esse preciso fato um fato jurídico tributário, a partir do qual nasce uma obrigação jurídica tributária. Nesse momento, conquanto seja ele somente uma pessoa física, equipara-se ele, juridicamente, ao ente empresarial profissional, sendo os bens introduzidos no país tratados juridicamente como mercadorias.
Diferentemente, quando um cidadão carrega consigo um bem já internalizado no território nacional, presumindo-se ser sua posse legal e de boa-fé (ou comprou o produto numa loja do Brasil, ou comprou no exterior e no momento da internalização pagou os tributos devidos, ou comprou no exterior e beneficiou-se de isenção, ou mesmo ganhou o bem de um ente querido), não está ele agindo como contribuinte de direito dos tributos de importação. Está ele, isto sim, em condição de consumidor, contribuinte meramente de fato do tributo, não de direito. A essa "pessoa" não pode ser conferido o tratamento de ente empresarial, impondo-se o ônus de guardar e portar nota fiscal, sob a pena tão grave de perdimento do bem.
O deslocamento (físico, não econômico) de bem produzido no exterior mas já internalizado no mercado nacional é irrelevante para fins tributários, mormente para fins de incidência dos tributos relativos à importação. A pessoa que carrega um computador portátil pessoal em uma viagem nacional de negócios, ou de lazer, não está concretizando qualquer fato jurídico tributário. Como, então, impor-lhe o ônus de apresentar nota fiscal e a pena de perdimento de seu bem pessoal?
Outrossim, não podemos deixar de notar que, mesmo em desembarque de vôos internacionais, a prática da Receita Federal do Brasil consiste em não exigir qualquer nota fiscal se o bem ali introduzido no país estiver coberto pela faixa de isenção (hoje, U$S 500,00 – quinhentos dólares). Como conferir a vôo nacional tratamento mais rigoroso que o concedido a vôo internacional? E mais: mesmo em vôos internacionais, permite-se que o viajante meramente declare a saída de computador pessoal, p. ex., para depois voltar a internalizá-lo, por meio de DST (Declaração de Saída Temporária), sem que lhe seja exigida a apresentação de nota fiscal de compra. Para tanto, basta declaração de próprio punho. Como é possível, logo, exigir do viajante nacional algo que mal se exige do viajante internacional? Cremos que essa disparidade é desarrazoada, desproporcional.
É importante ainda apontar que a legislação examinada faz referência à pena de perdimento de "mercadoria". Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, além de mercancia enquanto negócio ou ocupação profissional, mercadoria, em sentido forte, significa "qualquer produto suscetível de ser comprado ou vendido" ou "a carga de gêneros e objetos carregados por terra, mar ou ar". Da análise morfológica da palavra, percebe-se sua relação com a palavra "mercado", que é local físico ou lógico em que são realizadas as trocas econômicas de bens e serviços. Portanto, percebe-se que não é qualquer bem que se caracteriza como "mercadoria". Para sê-lo, o bem precisa ser manejado comercialmente.
Dessa forma, não se pode confundir mercadoria com bem pessoal. Este é portado para a satisfação das necessidades pessoais do indivíduo. A mercadoria, por sua vez, é transportada e negociada a fim de satisfazer necessidades econômicas. O bem pessoal, em regra, é infungível para a pessoa que o utiliza. A mercadoria, distintamente, é, em geral, fungível, restando de tal forma inviolada e impessoal que pode ser trocada por outra de mesma espécie sem prejuízo para seu destinatário.
Essa distinção é importante porque a legislação aqui abordada (arts. 87 e 102 da Lei 4.502/64) prevê a apreensão de mercadorias, e não de bens pessoais. Essa constatação é convergente com nossa constatação anterior de que somente do contribuinte de direito (em regra, entidade empresarial) se pode exigir a apresentação de nota fiscal, sob pena de perdimento da coisa. Excepcionalmente, no caso de a pessoa física ser o contribuinte de direito do bem, introduzindo o bem no território nacional, por exemplo, por meio de vôo internacional, pode também lhe ser imputado o mesmo ônus e pena, pois que o bem, nessa hipótese, ainda não está pessoalizado, sendo ainda fungível, e podendo, no limiar da fronteira semântica, ser caracterizado como mercadoria.
Por força das razões acima expostas, o inciso II o art. 87 da Lei 4.502/64 não pode ser aplicado em face de cidadãos que, de modo lícito e sem intuito comercial, circulam com bens pessoais no território nacional, inclusive por meio de vôos domésticos, sem carregar consigo a nota de fiscal de compra. Para que o referido bem seja apreendido, é necessário que se aplique o inciso I desse mesmo artigo de lei, que demanda da autoridade fiscal a prova da introdução irregular do bem estrangeiro no território nacional, ou ao menos indício fortíssimo nesse sentido, não se podendo presumir a má-fé da posse.
Pelos fundamentos que apresentamos, entendemos ser também irrelevante fazer menção ao art. 33 do Decreto-Lei 37/66, o qual preceitua que "a jurisdição dos serviços aduaneiros se estende por todo o território aduaneiro", incluindo as zonas primária e secundária. De fato, os serviços aduaneiros, inclusive de fiscalização, podem ser realizados em todo o território aduaneiro, mas isso não significa que apreensões possam ser realizadas contra bens pessoais de indivíduos, sem prova de ilicitude na aquisição ou transporte, e sem estarem esses cidadãos qualificados como contribuintes de direito, não realizando qualquer fato jurídico tributário.
Por igual motivo, é irrelevante o apelo feito por autoridades fiscais aos arts. 15 e 18 do Decreto 4.543/2002, cujo texto é o seguinte:
"Art. 15. O exercício da administração aduaneira compreende a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, em todo o território aduaneiro (Constituição da República, art. 237).
...
Art. 18. As pessoas físicas ou jurídicas exibirão aos Auditores-Fiscais da Receita Federal, sempre que exigidos, as mercadorias, livros das escritas fiscal e geral, documentos mantidos em arquivos magnéticos ou assemelhados, e todos os documentos, em uso ou já arquivados, que forem julgados necessários à fiscalização, e lhes franquearão os seus estabelecimentos, depósitos e dependências, bem assim veículos, cofres e outros móveis, a qualquer hora do dia, ou da noite, se à noite os estabelecimentos estiverem funcionando (Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, art. 94 e parágrafo único, e Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, art. 34).
Parágrafo único. As pessoas físicas ou jurídicas, usuárias de sistema de processamento de dados, deverão manter documentação técnica completa e atualizada do sistema, suficiente para possibilitar a sua auditoria, facultada a manutenção em meio magnético, sem prejuízo da sua emissão gráfica, quando solicitada (Lei no 9.430, de 1996, art. 38)".
Em primeiro lugar, estamos diante de decreto, que é texto infralegal, devendo ser entendido e aplicado conforme o que estatui a lei. Logo, ainda que esse decreto possibilitasse as apreensões discutidas neste estudo (o que não faz), não poderia ele afrontar a lei. Mesmo que nesses dispositivos estivesse expresso o comando contido no artigo seguinte (art. 19), o de que "não tem aplicação quaisquer disposições legais...", obviamente tratar-se-ia de letra morta.
Em segundo lugar, os mencionados dispositivos legais foram concebidos tomando em consideração os contribuintes de direito profissionais – as atuais entidades empresariais. Não se pode, por exemplo, crer que alguém defenda ser oponível aos cidadãos comuns, in totum, a ordem de que estes "franquearão os seus estabelecimentos, depósitos e dependências, bem assim veículos, cofres e outros móveis, a qualquer hora do dia, ou da noite". Não se pode sequer imaginar que um decreto assinado em 2002 pudesse ter como finalidade permitir às autoridades fazendárias fazer algo que nem os juízes podem fazer: entrar no domicílio de cidadãos, à noite, para realizar fiscalização. Obviamente, não é esse o propósito do decreto. Sua finalidade é franquear aos respeitáveis Auditores-Fiscais da Receita Federal o acesso aos estabelecimentos comerciais e a todos recintos das entidades empresariais e dos empresários, em que se encontrem mercadorias (não bens pessoais dos cidadãos). Igualmente, não é defensável que seja oponível ao cidadão comum, mero consumidor, não-empresário, o mandamento de que as " pessoas físicas ou jurídicas, usuárias de sistema de processamento de dados, deverão manter documentação técnica completa e atualizada do sistema, suficiente para possibilitar a sua auditoria, facultada a manutenção em meio magnético, sem prejuízo da sua emissão gráfica, quando solicitada". É claro que se faz essa exigência em face da pessoa empresarial.
Em terceiro lugar, ainda que se entenda que o Decreto 4.543/2002 se aplica também às pessoas que não realizam atividade empresarial, o referido decreto deve ser lido em consonância com os mandamentos legais já examinados da Lei 4.502/64, devendo, assim, tal aplicação ser excepcional, só alcançando as situações em que o cidadão comum é contribuinte de direito, realizando fatos jurídicos tributários. É que, nesse caso, o indivíduo equipara-se a empresário, e o bem é tido não como pessoal, mas como mercadoria; já o explicamos antes.
Em quarto lugar, ainda que tais fiscalizações, por mais que sejam rigorosas, alcançassem o cidadão absolutamente comum, disso não decorreria o poder de apreender seus bens. Fiscalizar não é sinônimo de apreender. O propósito de se fiscalizar é justamente encontrar provas concretas (ou, ao menos, indícios fortes) de ilicitudes. São essas ilicitudes, uma vez provadas, que possibilitarão a apreensão.
Todas essas mesmas considerações devem ser dirigidas à aplicação do art. 50 do Decreto-Lei 37/66, o qual pode ser aplicado a fim de possibilitar a fiscalização da bagagem de passageiros, em vôos domésticos e internacionais, mas não pode legitimar a apreensão de bens pessoais, lícitos, em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal em vôo doméstico. Para haver tal apreensão, é necessário que, da fiscalização, resultem ao menos indícios fortes de ter o bem sido importado ou adquirido ilicitamente. O mesmo se diga do art. 60 da Lei 10.593/2002, que trata das atribuições dos Auditores da Receita Federal do Brasil, atribuições estas que não são aqui objeto de questionamento.
Enfim, após o exame de toda a legislação e de todos os atos normativos infralegais condizentes à quaestio iuris, não restamos convencidos das razões apresentadas por autoridades fiscais para apreender bens de cidadãos comuns em razão da não apresentação de nota fiscal em vôos domésticos.
A seguir, demonstraremos que a jurisprudência pátria é favorável ao nosso entendimento aqui exposto.