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Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico

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5 JURISPRUDÊNCIA

A jurisprudência dos tribunais brasileiros arrima totalmente nosso entendimento.

Em verdade, mesmo em se tratando de desembarque de vôos internacionais, em que cremos se legitimar mais ampla intervenção na propriedade do cidadão, a jurisprudência é contrária à apreensão de bens pessoais, lícitos, individualizados, claramente sem finalidade comercial.

Deveras, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem julgados no sentido de que, ainda que em desembarque de vôos internacionais, a apreensão de bens pessoais não pode ocorrer com fundamento em ausência de pagamento de tributo. Citamos diversos julgados nesse sentido:

"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO DE MERCADORIA INTEGRANTE DE BAGAGEM DE VIAJANTE PROVENIENTE DO EXTERIOR.

1. É ilegal a apreensão de mercadoria integrante de bagagem de viajante proveniente do exterior, que excede a cota permitida, com a finalidade de coagir o contribuinte a recolher os tributos devidos.

Aplicação da Súmula 323 do STF.

2. Remessa oficial improvida" (ROMS 1999.01.00.106051-1/PA, Rel. Juíza Ivani Silva da Luz, DJU 29.5.2003).

"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. MERCADORIA IMPORTADA. DECEX - BANCO DO BRASIL. VALOR DAS MERCADORIAS DE ACORDO COM AS NORMAS DO DECEX.

1. A retenção de mercadorias com o objetivo de exigir-se o pagamento de tributo a maior de que o devido configura-se ato ilegal e abusivo da autoridade.

2. Remessa oficial improvida" (REO 93.01.22890-4/RR, Rel. Desembargador Federal Eustáquio Silveira, DJU 25.5.98).

"ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO. APREENSÃO DE VEÍCULO SUJEITO A ISENÇÃO. IPI.

1. Não é legal a apreensão de veículo como meio coercitivo para pagamento de tributo. Súmula 323, do STF.

2. Remessa oficial improvida" (REO 91.01.12205-3/RO, Relª Juíza Selene Maria de Almeida, convocada, hoje integrando este Tribunal, DJU 26.11.98).

"TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. APREENSÃO DE MERCADORIAS. SÚMULA 323 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

1. De acordo com a Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, não se apresenta como juridicamente admissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Precedentes desta 4ª Turma.

2. A invocação, nas razões de apelação, da aplicação do disposto no art. 543, do Regimento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 91.030/95, não afasta a incidência in casu da Súmula nº 323, do eg. Supremo Tribunal Federal, ainda que se considere o disposto no item 1, da Portaria 389/76, do Exmo. Sr. Ministro da Fazenda.

3. Apelação e remessa oficial improvidas" (AMS 2000.33.00.001665-2/BA, Rel. Desembargador Federal I’talo Fioravanti Sabo Mendes, DJU 12.3.02).

"ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE MERCADORIA. SÚMULA N. 323 DO STF.

1. É ilegal a apreensão de mercadoria como forma de coerção para que o contribuinte complemente o pagamento de tributo, conforme Súmula n. 323 do STF. (REO n. 91.01.12205-3/RO e REO n. 1997.01.00.001127-2/AM)2. Remessa ex officio improvida

3. Sentença mantida" (REO 95.01.25460-7/BA, Rel. Juiz Lourival Gonçalves de Oliveira, DJU 20.4.01).

"ADMINISTRATIVO - APREENSÃO DE MERCADORIA - LIBERAÇÃO.

1. Considera a jurisprudência ilegal a apreensão de mercadorias importadas como forma de coagir o contribuinte a pagar as exações.

2. Prática que mereceu o repúdio da jurisprudência, cristalizada na Súmula n. 323 do STF.

3. Remessa oficial improvida" (REO 1997.01.00.051127-2/AM, Relª Juíza Eliana Calmon, atualmente integrando no STJ, DJU 4.6.98).

Vejamos o que também decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

"MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE MERCADORIA. ILEGALIDADE.

A INT-23/95, que tratou das mercadorias integrantes da bagagem de viajante procedente do exterior, estabeleceu que os bens que excedessem a cota permitida, estariam sujeitos somente ao pagamento do imposto de importação. A apreensão do aparelho pelo agente do Fisco configura abuso de autoridade. Ordem concedida. Sentença confirmada" (AMS 95.04.59859-5/RS, DJU 27.1.99).

Como se pode perceber, a maioria desses julgados busca apoio na Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, cujo texto é o seguinte:

"Súmula 323. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".

Ora, se esse entendimento vale para "mercadorias", como não valerá para "bens pessoais"? Se é proibida a apreensão como meio de cobrança de tributos, como será permitida se não se faculta sequer que a pessoa pague o suposto tributo não-pago para liberá-la?

Não estamos discutindo neste estudo o acerto da jurisprudência consolidada acima citada. Vale dizer, não estamos defendendo que não sejam apreendidos bens pessoais no desembarque de vôos internacionais, em razão da não-apresentação de nota fiscal por parte do cidadão comum. O que queremos demonstrar é que se, mesmo em vôos internacionais, a jurisprudência não admite a apreensão de bens pessoais de origem estrangeira, como aceitar tal apropriação estatal em vôos domésticos, em que sequer incidem os tributos de importação?

Autoridades fiscais subsidiam seu entendimento no acórdão do TRF da 4ª Região derivado do julgamento do AI 2004.04.01.018474-5/RS, decidido em 2004, em que se negou liminar para a liberação de produtos de informática apreendidos em vôo doméstico. Ocorre que, naquele julgado, tratava-se de mercadorias, não de bens pessoais, de propriedade de entidade empresarial, não de cidadãos, havendo sido constatada finalidade comercial e indícios fortes de irregularidade por parte das empresas envolvidas. Para que o referido julgado não seja mais citado a fim de fundamentar aquilo que lá não se acolhe, transcrevemos o voto do Relator, o Senhor Desembargador Federal Álvaro Eduardo Junqueira:

"O despacho inicial teve o seguinte teor, o qual mantenho integralmente:

''Examinando os autos, verifico que efetivamente se trata de aquisição de produtos de informática pelo agravante no mercado interno, São Paulo.

A primeira vista esse fato ensejaria a liberação das mercadorias, uma vez que o consumidor não está obrigado a verificar a regularidade fiscal de empresa sujeita à fiscalização fazendária antes de realizar seus negócios. Nesse sentido, registro precedentes desta Corte - AMS nº 96.04.23439-0/RS, 1T, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJ de 18.02.98, p. 485 - e do STJ - RESP nº 79764/DF, 1T, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 17.06.96, p. 21452.

Contudo, na hipótese dos autos, não vislumbro a possibilidade de liberação imediata das mercadorias apreendidas pelo fato da nota fiscal ter sido emitida contra o ora agravante com a observação de que os produtos nela arrolados foram remetidos em consignação (fl. 26), descaracterizando, portanto a presunção de boa-fé referida nos precedentes supramencionados.

Ademais, convém ressaltar que as diligências da Receita Federal revelaram que a empresa que emitiu a nota fiscal encontra-se em situação irregular, caracterizada pela omissão na entrega da declaração de rendimentos desde o ano-base de 2000 (fl. 53).

Indefiro, pois, o efeito suspensivo''.

Em face do exposto, nego provimento ao agravo de instrumento" (grifo nosso).

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Está claro, dessarte, que o julgado mencionado não guarda pertinência com o objeto aqui abordado.

Enfim, pesquisamos exaustivamente jurisprudência, legislação, doutrina e a nossa consciência, e não encontramos suporte algum para a apreensão de bens lícitos, individualizados, de uso pessoal, sem finalidade comercial e de propriedade dos cidadãos, em embarque e desembarque de vôos domésticos, em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal do bem importado que leva consigo o viajante.


6 CONCLUSÃO

Após todas as considerações constitucionais, legais, jurisprudenciais e de bom senso acima desenvolvidas, cremos ter demonstrado a ilicitude na apreensão de bens pessoais (de uso e consumo pessoal), ainda que de origem estrangeira, dos cidadãos que se encontram em embarque ou desembarque de vôos domésticos, em viagem entre duas cidades brasileiras, em casos em que não há ilicitude no bem em si (não é droga ilícita ou produto de contrafação, por exemplo), em que claramente não há finalidade comercial do bem e em que não há qualquer prova de que o bem tenha sido introduzido no país de modo ilícito, resultando tal apreensão em perdimento do bem, caso não apresentada a nota fiscal em 24 horas.

Repita-se: não objetivamos ver reduzida qualquer atribuição de fiscalização dos servidores de Auditoria da Receita Federal do Brasil. Não se pretende negar sequer que possam eles fiscalizar a bagagem e os bens pessoais dos cidadãos que se encontram em embarque ou desembarque de vôos domésticos. O que se impõe é, tão-somente, que os bens aqui minuciosamente identificados somente sejam apreendidos caso haja prova de ilicitude praticada pelo cidadão, ou, ao menos, indício forte nesse sentido.

Não podemos deixar de comentar que nem mesmo o Poder Judiciário poderia determinar a apreensão de um bem sem indício forte de prática de ilicitude por parte do cidadão prejudicado. Como, então, pode a autoridade fiscal avocar-se de um poder que não se atribui nem ao Poder Judiciário?

Em suma, pedimos vênia para repetir a conclusão já enunciada em diversos momentos deste artigo: a fiscalização fazendária abrange bens pessoais dos cidadãos, estrangeiros ou não, mas estes bens, estrangeiros ou não, somente podem ser apreendidos pela autoridade se for comprovada a prática de ilicitude, não podendo estes bens, se lícitos e não-comerciais, serem aprendidos em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal de compra.


7 BIBLIOGRAFIA (somente obras citadas)

CAYUSO, Susana. Constitución de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007.

COMPARATO, Fábio Konder. "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de 1988". In: Revista de Direito Mercantil, n. 80, pp. 66-75.

MARTINS, Luciana Mabilia. "O Direito Civil à Privacidade e à Intimidade". In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002.

PROUDHON, Pierre Josesh. ¿Qué es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e del Gobierno. Trad. de A. Gómez Pinilla. Buenos Aires: Libros de Anarres, 2005.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.


Notas

  1. Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 90-1.
  2. Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 309-20.
  3. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 273. A propósito da importância da distinção entre bens de consumo (pessoais) e bens de produção (do capital), conferir também Fábio Konder Comparato: "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de 1988". In: RDM 80, pp. 66-75.
  4. ¿Qué es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e del Gobierno. Trad. A. Gómez Pinilla. Buenos Aires: Libros de Anarres, 2005, p. 53.
  5. Constitución de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007, p. 125.
  6. Cf. MARTINS, Luciana Mabilia. "O Direito Civil à Privacidade e à Intimidade". In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, pp. 343-4.
  7. Ob. cit., p. 205.
  8. Ob. cit., p. 206.
  9. Cf. SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 205.
  10. Cf. SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, pp. 187-8.

11.Ob. cit., p. 125.

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Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1953, 5 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11924. Acesso em: 23 dez. 2024.

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