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O Ministério Público como o novo tribunato

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13/11/2008 às 00:00
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4. O TRIBUNATO DA PLEBE

 Segundo Alves (1995), em Roma, ao tempo da República, o Poder Executivo, até então pertencente ao rei, era exercido por dois magistrados: os Cônsules, eleitos anualmente pela Assembléia Centuriata. Eles presidiam o Senado e tinham funções administrativas e militares. Cada Cônsul possuía o poder de veto sobre a decisão do outro, assim, os patrícios evitavam o exercício do poder pessoal e, caso isso ocorresse, escolhia-se um Ditador com poderes absolutos, que governaria pelo prazo de seis meses, para pôr fim à instabilidade política e restabelecer a ordem.

 O principal órgão da República era o Senado. Seus membros, descendentes dos primeiros fundadores de Roma, exerciam um cargo vitalício e tinham como prerrogativas preparar as leis, decidir pelo comando e recrutamento das tropas e resolver as questões referentes à política interna e externa do Estado Romano. Outros magistrados que compunham o corpo burocrático de Roma eram os Pretores, responsáveis pela justiça; os Censores, que promoviam o censo da população e tinham atribuições de controle da moralidade pública; os Questores, que fiscalizavam a cobrança de impostos e os Tribunos da Plebe.

 O Tribunato da Plebe era a magistratura plebéia, não admitindo patrícios. O tribuno (do latim tribunu) atuava junto ao Senado em defesa dos direitos e interesses da plebe.

 Conforme Fiuza (2006), essa magistratura foi criada após o movimento plebeu de 494 a.C., conhecido como Revolta do Monte Sagrado. A plebe não tinha acesso a magistraturas e, revoltada com o arbítrio dos magistrados patrícios, saiu de Roma, e se dirigiu ao monte Sagrado, com o objetivo de fundar ali uma nova cidade. Os patrícios, em face disso, resolveram transigir, e a plebe retornou, após obter a criação de duas magistraturas plebéias: o tribunato e a edilidade da plebe.

 Os tribunos (a princípio dois; mais tarde passaram a quatro, cinco e dez em 471 a.C.) eram os representantes da plebe, eleitos pelos Conselhos da Plebe (Consilia Plebis). Convocavam os concílios desta e os comícios-tributos e, diante dessas assembléias populares, apresentavam proposições de caráter político, administrativo e militar. Com os tribunos, os plebeus ficavam garantidos contra a arbitrariedade dos magistrados patrícios, pois os tribunos - cuja inviolabilidade pessoal lhes era conferida por lei sagrada - detinham o poder de intercessio, ou seja, podiam vetar, exceto durante guerras, ordens ou decisões dos magistrados patrícios (como o cônsul e os senadores), além de poderem interferir nas eleições, convocações dos Comícios e outros atos de interesse público; podiam impedi-los, por exemplo. Só contra o ditador não podiam exercer o poder de veto. Esse veto, entretanto, podia ser neutralizado pela ação de outro tribuno mais dócil ao patriciado (ALVES, 1995).

 Segundo Fiuza (2006), não possuíam o ius imperii, nem atribuições administrativas. Não podiam convocar o Senado e os Comícios, não possuíam nem insígnias nem honrarias, tais como lictores. Não se assentavam na cadeira curul (cadeira de marfim e ouro, símbolo das altas magistraturas, como consulado, pretura, edilidade curul, ditadura). Os tribunos podiam ser procurados por qualquer pessoa que se julgasse injustiçada, daí suas casas ficarem abertas dia e noite.

 Aos tribunos se deve a iniciativa da Lei das XII Tábuas, a permissão de casamento entre patrícios e plebeus (Lex Canuleia, de 445 a.C., proposta pelo tribuno Canuleius). Não obstante tenha perdurado por todo o principado, as funções dessa magistratura, que vinham da república, se transferiram para os imperadores, a partir de Augusto.

Segundo Maquiavel (2007), Roma buscou em suas instituições uma forma de acolher a imperfeição e a contingência do mundo, no lugar de negá-las.  Os tumultos entre os nobres e a plebe acabaram sendo a primeira causa da liberdade em Roma. Para ele, a criação do tribunato tornou a divisão de poderes mais estável em Roma, e ocorreu porque o povo estava farto do governo dos reis, razão pela qual se fez instrumento de quem quer que tivesse em mente destruí-los. Logo que surgiu alguém com esse intuito, a multidão o fez, e estando ainda vivas na memória do povo as injúrias recebidas pelo príncipe, ordenou-se um estado popular no qual a autoridade não fosse dada nem a poucos poderosos nem a um só.  Assim:

aqueles que os depuseram, ao constituírem imediatamente dois cônsules para ficarem no lugar dos reis, na verdade depuseram em Roma o nome, mas não o poder régio: de tal forma que, como só tivesse cônsules e senado, aquela república vinha a ser mescla de duas qualidades das três acima citadas, ou seja, principado e optimates.  Faltava-lhe apenas dar lugar ao governo popular: motivo por que, tornando-se a nobreza romana insolente pelas razões que abaixo se descreverão, o povo sublevou-se contra ela; e, assim, para não perder tudo, ela foi obrigada a conceder ao povo a sua parte, e, por outro lado, o senado e os cônsules ficaram com tanta autoridade que puderam manter suas respectivas posições naquela república.  E assim se criaram os tribunos da plebe, tornando-se assim mais estável o estado daquela república, visto que as três formas de governo tinham sua parte. [...] permanecendo mista, constituiu-se uma república perfeita (MAQUIAVEL, 2007, p. 18-19, negrito nosso).

Os tribunos foram constituídos para guardar a liberdade romana. Para segurança da plebe os romanos ordenaram-lhes tanta preeminência que a partir de então puderam ser sempre intermediários entre a plebe e o senado.  A ordenação do Estado romano passou a ser a autoridade do povo, do senado, dos tribunos, dos cônsules, os modos de candidatar-se e de eleger magistrados e de fazer a lei (MAQUIAVEL, 2007).

 Depois da criação dos tribunos, aos poucos, vários direitos foram concedidos à plebe. Em 445 a.C., através da Lei Canuléia, foi estabelecida a possibilidade de casamentos entre os plebeus e os membros da aristocracia patrícia. Posteriormente, a Lei Licínia pôs fim à escravidão por dívidas, proibindo, a partir do ano de 367 a.C., que os plebeus endividados fossem escravizados pelos proprietários rurais. Neste mesmo documento estava previsto também o acesso dos plebeus ao Consulado. Com a Lei Licínia passaram a ser eleitos dois cônsules: um patrício e outro plebeu. Através da Lei Ogúlnia (300 a.C.), os plebeus obtiveram igualdade religiosa, com direito a acesso aos colégios sacerdotais e, finalmente, em 287 a.C., através da Lei Hortência, a plebe obteve direito às resoluções da assembléia popular, o plebiscito adquiriu força de lei, independentemente da aprovação do Senado.

Os tribunos eram eleitos e tinham atribuições e prerrogativas políticas muito importantes, como poder de apresentar projetos de lei, o direito de vetar leis votadas pelo Poder Legislativo e imunidade pessoal.

Mas os tribunos não tiveram apenas o papel de defesa da plebe.  Exerceram também a função de acusadores em lides criminais, o que a princípio era facultado a qualquer cidadão na Roma antiga (PAES, 2003).

Essa atribuição tinha a ver com a função que acabaram abraçando, de verdadeiros defensores da lei e da ordem jurídica. Desse modo, embora a acusação criminal não fosse uma atribuição específica sua, a defesa dos interesses da plebe por vezes equivalia a defender o cumprimento das leis, e a pedir a punição daqueles que a violavam perante os tribunais. Nesse sentido, Maquiavel narra o exercício de tal função pelos tribunos:

pode-se facilmente verificar o benefício, para as repúblicas, da faculdade de denunciar, que, entre outras coisas, era confiada aos tribunos [...] Aos que recebem a guarda da liberdade numa cidade não se pode conferir autoridade mais útil e necessária do que a de poder acusar perante o povo ou qualquer magistrado ou conselho os cidadãos que porventura pecassem de algum modo contra o estado livre. Essa ordenação tem dois efeitos utilíssimos para uma república.  O primeiro é que os cidadãos, por medo de serem acuados, nada intentam contra o estado; e intentando, são reprimidos de imediato e sem consideração.  O outro é que se permite o desafogo daqueles humores que de algum modo cresçam nas cidades contra qualquer cidadão: e, quando tais humores não têm como desafogar-se por modos ordinários, recorre-se a modos extraordinários, que levam toda a república à ruína.  Por isso, nada há que torne mais estável e firme uma república do que ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontre via de desafogo ordenada pelas leis.  E isso pode ser demonstrado com muitos exemplos, máxime com o que Tito Lívio (décadas, II, 34-350) fala de Coriolano, quando diz que estava a nobreza romana irritada com a plebe, por lhe parecer que esta tinha excessiva autoridade, devido à criação dos tribunos que a defendiam, quando Roma enfrentou grande penúria de víveres, como acontece, e o senado mandou buscar cereais na Sicília; Coriolano, inimigo da facção popular, sugeriu que chegara a hora de castigar a plebe e de privá-la da autoridade de que ela se apoderara para prejuízo da nobreza, mantendo-a com fome não lhe dando trigo: declaração que, chegando aos ouvidos do povo, provocou tanta indignação contra Coriolano, que este, ao sair do senado, teria sido morto tumultuariamente, se os tribunos não o tivessem intimado a comparecer diante dos tribunais e defender sua causa. Acontecimento este sobre o qual se deve notar o que acima dissemos, a respeito da utilidade e da necessidade de as repúblicas, com suas leis, permitirem o desafogo da ira que o povo vota a um cidadão. (Maquiavel, 2007, p. 32-34)

Outro exemplo, comentado por Maquiavel a partir da obra de Tito Lívio, é o da acusação que os tribunos fizeram contra Mânlio Capitolino:

Exemplo muito maior que esse é o de Mânlio Capitolino, porque nele se vê como a virtù de alma e corpo, como as boas ações realizadas em favor da pátria são anuladas pela torpe cupidez de reinar; esta, como se vê, nasceu nele da inveja que sentia das honras prestadas a Camilo; e chegou a tal ponto a cegueira de sua mente que, não pensando no modo de vida da cidade, não examinando o sujeito dele, que não era adequado a receber ainda uma má forma, pôs-se a criar tumultos em Roma contra o senado e contra as leis pátrias.  Donde se percebe a perfeição daquela cidade e a bondade de sua matéria: porque, no seu caso, ninguém da nobreza, conquanto fossem acerbos defensores um do outro, se moveu para favorecê-lo; nenhum dos parentes se empenhou em seu favor; os dos outros acusados costumavam comparecer, vestidos de luto, de preto, todos tristes para tentar conseguir misericórdia para os acusados, mas com Mânlio não se viu ninguém.  Os tribunos da plebe, que sempre costumavam favorecer as coisas que pareciam vir em benefício do povo,  e quanto mais tais coisas contrariavam os nobres, mais as favoreciam, nesse caso se uniram com os nobres, para debelarem uma praga comum.  O povo de Roma, ciosíssimo do que era útil para ele e amante de tudo o que desfavorecesse a nobreza, embora sempre tivesse favorecido Mânlio, quando os tribunos o citaram, para que sua causa fosse julgada pelo povo, esse mesmo povo, deixando de ser defensor para tornar-se juiz, condenou-o à morte sem nenhuma consideração (MAQUIAVEL, 2007, p. 348, negrito nosso).

Dessa forma, segundo Maquiavel, o tribunato era um órgão moderador dos interesses na República romana:

Quando Tito Quinto Cincinato e Cneo Júlio Mento eram cônsules em Roma a desunião que surgiu entre eles impediu todas as ações daquela república.  O senado, apercebendo-se, estimulava-os a instituir um ditador, para que este fizesse o que aqueles não podiam fazer, devido às suas discórdias.  Mas os cônsules, embora discordantes em tudo, concordavam em não querer o ditador.  A tal ponto que o senado, não encontrando outro remédio, recorreu à ajuda dos tribunos, que, com a autoridade do senado, forçaram os cônsules a obedecer.  É notar, nisso [...] a utilidade do tribunato, que não servia apenas para refrear a ambição dos poderosos contra a plebe, mas também a ambição dos poderosos contra si mesmos [...] (MAQUIAVEL, 2007, p. 147, negrito nosso)

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O tribunato da plebe, assim, exerceu tanto a função de defensor dos interesses do povo, como de acusador em lides penais, quando necessário, assim como de defensor da ordem pública e da harmonia entre os poderes.

E como facilmente se percebe, tais funções são muito parecidas com as exercidas atualmente pelo Ministério Público, principalmente no Brasil, onde ele age de forma independente, com características de um verdadeiro agente político.

Jean Jacques Rousseau percebeu essa formidável característica do tribunato e fez observações sobre o mesmo, propondo a criação de uma instituição semelhante, e mais próxima ainda do Ministério Público atual, como será visto abaixo.


5. O TRIBUNATO SEGUNDO ROUSSEAU

Como uma das magistraturas mais importantes da Roma antiga, o tribunato modelo inspirou o pensador Jean Jacques Rousseau a idealizar um órgão com as mesmas atribuições e poderes, para a defesa do regime democrático.

Após estudar a história de Roma e suas instituições políticas, Rousseau (1991) imaginou um órgão estatal com função semelhante ao antigo tribunato da plebe.  Eis o que escreveu a respeito:

Quando não se pode estabelecer uma proporção exata entre as partes constitutivas do Estado, ou quando causas indestrutíveis lhes alteram incessantemente as relações, institui-se então uma magistratura particular que absolutamente não forma corpo com as outras, que torna a colocar cada termo na sua verdadeira relação e que estabelece uma ligação ou um termo médio quer entre o príncipe e o povo, quer entre o príncipe e o soberano, ou ainda, simultaneamente, caso seja necessário, de ambos os lados.

Esse corpo, que chamarei de tribunato, é o conservador das leis e do poder legislativo.  Serve, algumas vezes, para proteger o soberano contra o Governo, como em Roma faziam os tribunos do povo; outras vezes, para sustentar o Governo contra o povo, como atualmente em Veneza faz o Conselho dos Dez, e, outras vezes ainda, para manter o equilíbrio de um lado e de outro, como os éforos o faziam em Esparta.

O tribunato não é certamente uma parte constitutiva da pólis e não deve ter nenhuma porção do poder legislativo nem do executivo, e nisso exatamente está seu maior poder, pois, não podendo fazer nada, tudo pode impedir.  É mais sagrado e mais reverenciado, como defensor das leis, do que o príncipe que as executa e o soberano que as dá.  Foi o que se viu, muito claramente, em Roma, quando aqueles patrícios orgulhosos, que sempre desprezaram o povo, se sentiram forçados a curvar-se diante de um mero funcionário do povo que não tinha nem auspícios nem jurisdição.

O tribunato sabiamente equilibrado representa o mais firme apoio de uma boa constituição, mas, por menor que seja a força que possua em demasia, tudo subverte; quanto à fraqueza, ela não está em sua natureza: desde que seja algo, nunca é menos do que deveria ser.

Degenera em tirania quando usurpa o poder executivo, de que é unicamente o moderador, e quando quer outorgar leis, que apenas deve proteger  (ROUSSEAU, 1991, p. 131-132, negrito nosso).

Para Rousseau (1991), a função do tribunato é verificar se o poder soberano, pertencente ao povo, é utilizado pelo governo no interesse público.  Ele considerava tal instituição mais sagrada e digna de reverência que a do príncipe, que executa as leis, e a do Senado, que as dá.

A semelhança dessa instituição, conforme a visão de Rousseau, com o Ministério Público Brasileiro, será analisada no item seguinte.

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Sobre o autor
Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Assunção. O Ministério Público como o novo tribunato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1961, 13 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11947. Acesso em: 23 dez. 2024.

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