"São as regras de procedimento que insuflam vida aos direitos substantivos, são elas que os ativam, para torná-los efetivos." (I.H. Jacob, apud Mauro Cappelletti e Bryant Garth, Acesso à Justiça, pág. 69, Safe, 1988).
1. Introdução
Como já foi dito, os estudos ou considerações a respeito de legislação recentemente publicada padecem, em geral, de dois vícios : a falta de longa meditação sobre o tema - imprescindível a todo comentário exegético - , e a ausência de dados jurisprudenciais.
Não pretendemos nestas modestas considerações deixar de incidir nestas graves deficiências, de modo que rogamos pela benevolência do leitor.
Como também já foi observado, os operadores do Direito, notadamente dos países latinos, ao se defrontarem com uma nova lei processual sempre a recebem com reservas de natureza técnica e põem-se a esmiuçá-la, para realçar os equívocos e mitigar os acertos do legislador.
Há até mesmo o inato conservadorismo dos operadores do Direito, a lhes instigar comentários depreciativos às novidades trazidas pelo legislador, e isso também não pode passar despercebido.
Não há nada de novo nestas assertivas, mas é incontestável que aqueles que vivenciam a interpretação e a aplicação das leis sempre terão maiores preocupações de ordem técnica e prática do que aqueles que as editam, cujas orientações são preponderantemente de ordem política (e atualmente econômica).
Entrementes, é forçoso admitir que, em linhas gerais, a Lei nº 9.957/00 não contém as inovações que eram ansiosamente esperadas pela comunidade jurídica, bem como pela sociedade.
Tantas vezes repetida, a máxima Chiovendiana sobre a reforma processual italiana é aqui mais uma vez invocada, por sua atualidade: convém decidir-se por uma reforma fundamental ou renunciar à esperança de um progresso sério.(1)
O legislador, infelizmente, adotou a segunda opção, limitando-se a editar para o processo do trabalho uma cópia mal elaborada (e parcial) da lei que rege os Juizados Especiais Cíveis (Lei nº 9.099/95).
Na verdade, a "reforma" do processo trabalhista não implementou uma nova modalidade de tutela jurisdicional diferenciada, como era almejado e se percebe na sistemática dos Juizados Especiais Cíveis.(2)
Não se obteve um "novo processo", mas apenas a aparente simplificação das formas, permeadas aqui e ali e sem muito cuidado, isto é, de maneira fragmentária e assistemática, pelas boas idéias que inspiraram os Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais Cíveis.
Aquela que seria a única inovação séria e adequada, ou seja, a restrição ao cabimento do recurso ordinário às hipóteses de violação literal de lei, contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho ou violação direta da Constituição da República, foi sepultada antes do nascimento pelo Executivo, o qual vetou parcialmente a nova redação do art. 895 (inc. I do § 1º).
Por motivos claros, mas nada convincentes (3), permanece integro na sistemática do processo do trabalho brasileiro o fenômeno de tornar as sentenças emitidas pelos juízes de primeiro grau meras decisões interlocutórias, sujeitas a reexame em qualquer hipótese, na contra corrente das idéias de acesso à Justiça (breve).
Sob o aspecto técnico, a lei também deixa muito a desejar, como, aliás, se tornou usual nos diplomas que disciplinam o Direito e o processo do trabalho.
Assim, por exemplo, repetiu-se no inc. I, do art. 852-B, a impropriedade do art. 282, do CPC, de há muito apontada pela doutrina, a saber, o uso da conjunção "ou" ao tratar dos requisitos de certeza e determinação do pedido (certo ou determinado), ao invés da copulativa "e" (certo e determinado).(4)
Reiterou-se a prática de aglutinar em alguns poucos dispositivos diversas prescrições, ganhando em concisão, para pôr de lado a clareza e deste modo incentivar as dúvidas de interpretação.
Insistiu-se na imprecisão terminológica, mediante o emprego de vocábulos que, embora tradicionais, são muito pouco adequados ao correto entendimento da lei processual : "reclamação" tem os significados de ação ou demanda (arts. 852-B, caput) ou mesmo processo (art. 852-B, inc. III, e § 1º), enquanto que "arquivamento" (mera providência administrativa de destino dos autos) continua a equivaler à extinção do processo sem julgamento do mérito (art.852-B, § 1º).
Não podemos deixar de mencionar, porém, uma "inovação" do vocabulário processual, a qual foi importada da linguagem coloquial, sem nenhuma felicidade, como se verifica no art. 852-B, caput : "Nas reclamações enquadradas´ no procedimento sumaríssimo" (sic).
Passemos ao breve exame da sistemática da lei.
2. Considerações gerais.
A Lei nº 9.957/00 disciplina o procedimento "sumaríssimo" mediante a adição de nove letras ao art.852 da CLT ("A" a "I"), bem como o acréscimo de parágrafos e incisos aos arts.895 (§§ 1º e 2º) e 896 (§ 6º), do mesmo diploma, em consonância com a técnica legislativa prevista na Lei Complementar nº 95/98 (art.12, inc. III, alíneas "a" e "b").
A exemplo do que ocorrera com o CPC de 1973, antes do advento da Lei nº 9.245/95, e que mereceu severas críticas da doutrina (5), instituiu-se para o processo do trabalho a nomenclatura rito "sumaríssimo", em contraposição ao "rito ordinário" (art.763, da CLT), conquanto não exista um procedimento intermediário (rectius, "sumário").(6)
A nova lei contém disposições específicas a respeito da aplicabilidade do procedimento, em razão do valor da causa e da qualidade da parte (art.852-A, e par. ún.), de requisitos da petição inicial (art.852-B, incs.I e II), dos meios de comunicação processual (art.852-A, inc.II, e § 2º, e art.852-I, § 3º), de ônus do demandante (art.852-B, § 1º), dos poderes e deveres do juiz quanto à concentração dos atos (arts. 852-C), à iniciativa probatória (art.852-D) e à conciliação (art. 852-E), de admissibilidade de meios de prova e de oportunidade para produzi-las (art. 852-H, §§ 1º a 4º), de requisitos da sentença (art.852-I, caput), do processamento em segundo grau do recurso ordinário (art.895, § 1º, incs. II a IV), de admissibilidade do recurso de revista (art.896, § 6º) etc..
Da análise mesmo superficial das novas disposições se extrai uma premissa básica para a sua interpretação e aplicação : a ênfase à concentração dos atos processuais em uma única sessão de audiência (arts. 852-C, 852-G, 852-H etc.), também revelada na Lei nº 9.099/95, e antes disso na Lei nº 7.284/84, e muito antes delas na própria CLT (arts. 845 e 848 a 859).
Outro ponto que merece destaque corresponde à busca da concentração dos atos e da brevidade a partir do estabelecimento de prazos máximos para a conclusão do processo (art. 852-B, inc.I, e 852-H, § 7º).
Entretanto, tais normas, uma vez confrontadas com a realidade de nossos tribunais, o reduzido número de juízes, bem ainda com o crescente número de processos distribuídos e os meios de comunicação processual disponíveis, poderão se tornar, à evidência, meramente programáticas (Tópico 8).
3. Aplicabilidade do procedimento sumaríssimo.
Conforme dispõe o art.852-A, "os dissídios individuais cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo vigente na data do ajuizamento da reclamação ficam submetidos ao procedimento sumaríssimo."
Duas ordens de questões apresentam-se, desde logo, no concernente à determinação do procedimento : a primeira diz respeito à imposição do procedimento sumaríssimo a todas as causas com valor inferior àquele expresso em lei; a segunda, por sua vez, concerne à verificação e ao controle pelo juiz, de ofício , do valor da causa e do procedimento.
Diferentemente da previsão do art. 3º, § 3º, da Lei nº 9.099/95, que faculta ao demandante optar entre o processo diferenciado dos Juizados Especiais e o processo tradicional do CPC, a norma veiculada no art.852-A, ao nosso ver de forma equívoca, tornou obrigatória a adoção do procedimento sumaríssimo para as causas trabalhistas com valor inferior a quarenta salários mínimos.
Cumpre enfatizar que a regra traduz comando imperativo ("ficam submetidos"), e nenhum dos demais dispositivos da Lei nº 9.957/00 deixam entrever a facultatividade, a exemplo da disposição do processo civil acima mencionada.(7)
Melhor seria torná-lo facultativo, de acordo com a idéia de que o demandante nestas hipóteses não estaria optando por esse ou aquele procedimento, o que é vedado pelo sistema processual (art.295, inc. V, do CPC), mas, sim, por uma modalidade de tutela diferenciada, a qual se desenvolve por intermédio de processo com características especiais.(8)
Tratando-se, portanto, de procedimento de observância obrigatória, e não de modalidade de tutela diferenciada de livre opção do demandante, cumprirá ao juiz ordenar a sua aplicação às causas de valor inferior a quarenta salários mínimos.
Além disto, e como pressuposto do controle da aplicabilidade do procedimento, competirá ao juiz verificar, de ofício, a correspondência do valor atribuído à causa com o conteúdo econômico da pretensão (objeto mediato do pedido).
Convém observar, neste ponto, que é admitida a correção de ofício do valor da causa, notadamente quando há critério legal de fixação não atendido pelo demandante (arts. 259 e 260, do CPC).(9)
Por outro lado, o parágrafo único, do art. 852-A, impede a aplicação do rito sumaríssimo às "demandas em que é parte a Administração Pública direta, autárquica ou fundacional."
O óbice não tem razão de ser, máxime se considerarmos que a própria Constituição Federal admite a aplicação do processo dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal (art. 98, par. ún., com a redação da Emenda nº 22/99).
Tudo leva a crer, portanto, que depois da regulamentação da norma constitucional serão demandadas nos Juizados Especiais Cíveis Federais a União e as entidades autárquicas, por exemplo (art. 109, inc.I, da CF).
Se num primeiro passo de implantação dos Juizados Especiais Cíveis havia justificativa para impedir demandas contra a Administração, pois se temia, por exemplo, sobrecarregá-los com os processos referentes a questões salariais de servidores públicos estatutários municipais e estaduais, em detrimento daqueles envolvendo os principais destinatários da tutela diferenciada (relações de consumo etc.), nem por isso a norma deveria ter sido repetida no processo trabalhista, diga-se de passagem por simples inércia.
Reduziu-se, portanto, a importância dos instrumentos de tutela do direito material trabalhista, enquanto outras situações jurídicas passarão a receber proteção muito mais adequada (cobranças e revisões de benefícios previdenciários etc.).
A admissibilidade do procedimento conforme o meio de citação será examinada adiante (Tópico 5).
4. Petição inicial, pedido e valor da causa.
O art. 852-B, inc. I, dispõe que o "pedido deverá ser certo ou determinado e indicará o valor correspondente."
Leia-se : o pedido deve ser certo e determinado, porque, consoante acima se insinuou, a certeza e a determinação "são qualidades que não se excluem, mas se somam." (10)
Ao exigir a certeza, a lei pressupõe que o pedido seja claro, expresso, que não deixe dúvidas sobre aquilo que é pretendido pelo demandante, em contraposição à idéia de implícito ou vago.(11)
À certeza soma-se a determinação (rectius, limite), a qual importa em extremar um objeto de outro, quer dizer, o pedido deve visar um bem jurídico perfeitamente caracterizado (12), tanto na qualidade, como na quantidade.
Quanto ao objeto mediato do pedido (bem da vida), a determinação deve ser entendida em seus devidos termos, pois poderão surgir hipóteses distintas : a) quantidade desde logo determinada (art. 286, "caput", do CPC, e 852-B, inc. I, da CLT); b) quantidade determinável, admitindo-se o pedido genérico (art.286, incs. I a III, do CPC).
Por isso, no que tange ao aspecto quantitativo, é preferível referir-se a pedido certo e determinado ou determinável.
Feitos estes esclarecimentos, é necessário estabelecer que da petição inicial deverá constar, além dos requisitos do art.840, § 1º, da CLT, o valor da causa, concorde com o conteúdo econômico da pretensão, como, também, breve memória de cálculo com a discriminação das somas correspondentes aos créditos pretendidos pelo demandante, para aferir a correção do "valor correspondente ao pedido".
O "valor do pedido", à mingua de previsão específica na CLT, será determinado conforme os critérios estabelecidos no CPC (arts. 258, 259, incs. I a V, e 260).
Há que se advertir, porém, da possibilidade do demandante formular pedido genérico, quando bastará a indicação do respectivo valor por estimativa (art.258, do CPC), sendo dispensável a memória de cálculo.
É mister ter bem presente que a ausência de indicação do "valor do pedido" - e dos critérios para determiná-lo, quando exigíveis (memória de cálculo)-, importará no indeferimento da petição inicial, por inépcia (art. 295, inc. I, do CPC), ou, segundo a atecnia da lei, em "arquivamento" (art. 852-B, § 1º).
Por se tratar de omissão suprível, o indeferimento da petição inicial sempre pressupõe que se faculte ao demandante a possibilidade de emendá-la ou complementá-la, nos termos do art.284, do CPC.(13) Não há disposição na nova lei sobre o exame pelo juiz, antes da citação, da regularidade da petição inicial.
Sendo assim, continuará a vigorar o sistema de expedição da carta postal de citação, de ofício, pela secretaria, logo depois da distribuição e independentemente de prévia ordem do juiz (art. 841, caput, da CLT).
Conseqüentemente, a determinação de aditamento ou emenda da petição inicial deverá ocorrer na audiência, ainda que depois de efetivada a citação, mas sempre antes do recebimento da resposta do demandado, ao qual será assegurada a possibilidade de reelaborar a defesa.(14)
Cabe notar que não se aplica, em princípio, o disposto no art. 264, do CPC, porque a vedação contida neste dispositivo guarda pertinência com a modificação de elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido), e não com a emenda ou complementação da petição inicial, para suprir-lhe defeitos ou irregularidades.(15)
5. Citação.
A lei prevê, também, que "não se fará citação por edital, incumbindo ao autor a correta indicação do nome e endereço do reclamado" (art.852-B, inc. II).
Desta maneira, a citação, necessariamente, será feita por carta postal, ou por oficial de justiça quando esta se frustrar, sendo vedado o chamamento do demandado por editais.
Nesta linha, quando o paradeiro do demandado for incerto ou ignorado, observar-se-á o "procedimento ordinário".
Como em regra descobre-se que o demandado está em local ignorado ou incerto depois da devolução da carta postal, caberá ao demandante, quando não obtiver novas informações sobre o endereço, requerer a conversão do procedimento sumaríssimo em "ordinário".
Pondere-se que a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por impossibilidade da citação por edital, é aplicável apenas aos casos em que o demandante se omite na indicação do endereço (art.852-B, inc. II, e § 1º).(16)
Destarte, não se justifica a extinção do processo quando não houve inércia do demandante, uma vez que se mostra possível o aproveitamento útil dos atos já praticados (petição inicial, distribuição, registro, autuação, diligências que informam a impossibilidade de localizar o demandado etc.).
Caso venham a ser instituídos os Juizados Especiais no âmbito da Justiça do Trabalho, o processo deverá ser redistribuído para uma das Varas da localidade, depois de apurada a impossibilidade de localizar pessoalmente o demandado.
6. Intimação.
Consta do § 2º, do art. 852-B, a regra acerca do ônus das partes e dos advogados informarem as alterações dos endereços verificadas no curso do procedimento, reputando-se válidas as intimações postadas aos locais primitivamente indicados, no caso de omissão.
A disposição, além de similar àquela constante do art. 39, par. ún., 2ª parte, do CPC, e idêntica àquela outra contida no art.19, § 2º, da Lei nº 9.099/95, encontra raízes no CPC de 1939 (art. 111).
É possível deduzir do dispositivo, também, que constitui requisito indispensável da petição inicial e da resposta a menção aos endereços das partes e dos advogados, para fins de intimação.
O descumprimento do encargo poderá resultar, conforme o caso, em diferentes situações e providências : a) a secretaria, ao receber a petição inicial do autor representado por advogado, deverá promover os autos à conclusão, antes de emitir a carta de citação do demandado, competindo ao juiz ordenar a emenda, sob pena de indeferimento (art. 39, par. ún., do CPC); b) caso a omissão seja detectada na audiência, cumprirá ao juiz ordenar que as partes informem os endereços, consignando-os na ata.
Convém destacar que não é qualquer remessa postal que importará na presunção de recebimento da intimação.
Uma vez que a correspondência é aceita, sem ressalvas ou devolução imediata, reputa-se, por aplicação da teoria da aparência, que a comunicação processual é eficaz; todavia, se a carta postal é devolvida pelos correios com a informação de que o destinatário não foi encontrado ("mudou-se"), evidentemente caberá a intimação por editais.
Importa aludir, ainda, que o dispositivo não elimina a intimação, em caráter preferencial, por intermédio de publicação no diário oficial, quando a parte estiver representada por advogado (arts. 236 e 237, do CPC).
7. Intervenção de terceiros.
Os inconvenientes da intervenção de terceiros em processos de rito abreviado são notórios e dispensam comentários; porém, continuarão a existir no procedimento sumaríssimo.
É que, diversamente dos diplomas que regulamentaram o processo dos Juizados Especiais Cíveis e o procedimento sumário do CPC, a Lei nº 9.957/00 não adotou nenhuma limitação à intervenção de terceiros.
Por este e por outros motivos, repisamos a afirmativa de que a referida lei não trouxe, a rigor, nenhuma inovação ao processo do trabalho em primeiro grau, e nem tampouco instituiu modalidade de tutela diferenciada.