2 ASPECTOS ATUAIS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO
No presente capítulo, estaremos atentos ao que há de mais recente em termos de jurisdição constitucional brasileira. As atenções estarão voltadas para a Emenda Constitucional (EC) nº 45.
Apesar de intitulada Reforma do Judiciário, a noticiada emenda acabou por modificar, sobremaneira, o ordenamento vigente. Segundo Lenza [97], na casa de vinte e oito novidades sobrevieram ao texto constitucional. Como outrora alertamos, não esgotaremos todas elas, até porque o momento não é propício, mas concentraremos energia naquelas que reputamos salutares para o êxito do trabalho, quais sejam, a repercussão geral no recurso extraordinário, a súmula vinculante e a reclamação constitucional.
Almeja-se contextualizar os assuntos pinçados e perscrutar seus desdobramentos no tradicional modelo de controle brasileiro, coletando dados para serem enxertados no capítulo final.
Por adequado, antes de iniciarmos a explanação sobre a repercussão geral, faremos algumas colocações sobre o controle difuso no Supremo Tribunal Federal.
2.1 NÓTULAS SOBRE O CONTROLE CONCRETO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Logo no começo desta monografia, pormenorizamos o modelo difuso de constitucionalidade brasileiro. Fizemos alusão à competência para realizar o controle das normas, registrando-se que todos os órgãos do Poder Judiciário têm aptidão para fazê-lo, juízes ou tribunais, independentemente de sua natureza ou grau.
No estágio em que estamos, interessa-nos sublinhar a atribuição do STF, levando-se em conta, exclusivamente, os aspectos intimamente ligados ao surgimento da repercussão geral.
Não se desconhece que a Corte Suprema pode realizar o controle difuso em qualquer processo de sua alçada, seja de competência originária (art. 102, I, da Constituição Federal), seja via recurso ordinário (art. 102, II). Todavia, é em sede de recurso extraordinário (RE) [98] que o Tribunal desempenha, significativamente, o mister de fiscalização das normas [99], assunto que ditará a pauta daqui para frente.
Ensinam Paulo e Alexandrino [100] que,
o recurso extraordinário é o meio idôneo para a parte interessada, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, levar ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal controvérsia constitucional concreta, suscitada nos juízos inferiores.
Firma-se como instrumento processual-constitucional que serve de palanque para o enfrentamento de eventual afronta à Constituição. Suas hipóteses de cabimento encontram-se dispostas no art. 102, III, da Lei Maior [101].
Se por um lado, sabemos que a atribuição do STF, como guardião da Constituição, está contida, expressivamente, nos recursos extraordinários, por outro, temos de ter em mente que o volume desses meios cresce vertiginosamente, de forma paralela ao avanço da sociedade.
Muito se comenta a respeito da crise do Supremo Tribunal Federal, a qual, para uns, a exemplo do ex-Ministro Moreira Alves, reflete a crise do RE [102]. A escalada desse remédio impressiona. Ano a ano a aritmética alcança índices expressivos. Prova está na planilha do movimento processual da Corte nos idos de 1980 a 2007 [103]. É o fenômeno multiplicador das demandas que toma corpo.
Presente a situação caótica, iniciou-se um movimento com o fito de construir barreiras de contenção para frear o crescimento dos recursos. Medidas de natureza legislativa, construções jurisprudenciais, emendas à Constituição, entre outras, fizeram parte do arsenal utilizado.
Primeiramente, passou-se a exigir a fundamentação das decisões inferiores que admitissem ou não o recurso. Na seqüência, adveio a súmula persuasiva, a qual se mostrou impotente. Mais tarde, criou-se a Argüição de Relevância de Questão Federal. Em meados de 1990, com a Lei nº 8.038, inseriu-se a possibilidade de o relator inadmitir o recurso caso a matéria se encontrasse pacificada no tribunal. E, através da Lei nº 9.756, de 1998, conferiu-se, ao relator, os meios para prover ou improver, monocraticamente, o extraordinário, desde que a matéria estivesse pacificada.
Contudo, Mendes [104] relata que:
A falta de um mecanismo com caráter minimamente objetivo para solver essas causas de massa permite que uma avalancha de processos sobre um só tema chegue até o STF pela via do recurso extraordinário. As defesas por parte do Tribunal para essas causas pareçam ainda tímidas.
A cena estava pintada: os órgãos competentes, Poderes Judiciário e Legislativo, estavam paleteados, de um lado pela onda crescente de recursos constitucionais e, do outro, pela vindicação da coletividade por prontas respostas, aptas a restaurar a rápida e eficaz prestação jurisdicional.
Foi essa a realidade que acompanhou a promulgação da EC nº 45/2004, em particular a inserção de mais um requisito de admissibilidade ao recurso extraordinário, o qual será alvo de exame, a seguir.
2.2 REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Sabendo-se que monografias desse porte possuem um campo de pesquisa restrito e delimitado, teremos de ser criteriosos na escolha dos tópicos que comporão este ponto, de molde que tão-somente aqueles ligados ao assunto principal serão trazidos a lume.
Comentou-se que o recurso constitucional, por intermédio da EC nº 45/2004, conta com mais um requisito para seu conhecimento, notadamente a necessidade de demonstração da repercussão geral dos interesses versados na causa [105].
Curiosamente, grande maioria dos estudiosos desconhece os bastidores da aludida reforma. Foram longos treze anos de trâmite legislativo até que a emenda atingisse a forma final [106]. Sua aprovação efetivou-se no dia 17 de novembro de 2004, com promulgação em 08 de dezembro e publicação no dia 31 de dezembro do mesmo ano, data na qual entrou em vigor.
Entretanto, o novel pressuposto necessitou de regulamentação, porquanto os ditames processuais não foram regrados pelo texto constitucional. Para cumprir a formalidade, adveio, em 19 de dezembro de 2006, a Lei nº 11.418, em cujo texto constam dois novos dispositivos insertos no Código de Processo Civil brasileiro (CPC), verbis:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§ 2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§ 4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§ 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.
No encalço da produção legislativa, em face da cogência do art. 3º da citada lei [107], o STF editou, no âmbito interno, a Emenda Regimental nº. 21, de 30 de abril de 2007, com a finalidade de procedimentalizar a análise e o julgamento da repercussão geral.
Impreterivelmente, temos de assimilar o espírito que norteou a edição da referida lei, e, por isso, pedimos vênia para colacionar alguns trechos do voto do Relator do Projeto nº 6.648/2006, Deputado Odair Cunha, da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados:
Nesse particular, a proposição permitirá que as causas submetidas ao STF sejam efetivamente selecionadas, de modo a se impedir o julgamento de recursos cuja irrelevância constitucional, sob os aspectos econômico, político, social ou jurídico, seja manifesta. Afastaremos, pois, os recursos extraordinários que apenas refletirem o espírito de emulação e de inconformismo das partes. Faremos, pois, que o STF deixe de ser um Tribunal de terceira ou quarta instância para apreciação de questões já decididas por outros tribunais. Alteraremos o seu perfil, alçando-o à condição de corte constitucional, cuja jurisdição será desvinculada do caso concreto, ainda que continue a ser um órgão do Poder Judiciário [108].
Regressões à parte, nem bem instalada a novidade no ordenamento vigente, prontamente a doutrina despertou a compará-la com a argüição de relevância da questão federal, prevista na Constituição 1967. Dispensamos a confrontação entre os instrumentos. No entanto, para não passar despercebido, quer-se deixar apontado que, entre eles, de comum, só há a função de filtrar os recursos interpostos. Apoiamos Marinoni e Mitidiero [109], para aconselhar "que se evite qualquer assimilação entre esses dois institutos para análise de nossa repercussão geral".
Neste momento, perguntar-se-nos-íamos por que reduzir, drasticamente, a atuação da Suprema Corte? Não é ela que profere os melhores julgamentos?
A resposta completa envolve um emaranhado de fatores, infindáveis, diríamos. Todavia, enfocando a problemática da massificação dos recursos extraordinários, concluímos que, prestigiando-se a concentração da atenção da Suprema Corte nos temas realmente fundamentais, de vital importância para o País, estaremos evitando que "o STF julgue brigas particulares de vizinhos como algumas discussões sobre ‘assassinato’ de papagaio ou ‘furto’ de galinha" [110], com perdão do brocardo, desperdiçando-se, por nada, seu fôlego. Inquestionavelmente, teremos julgados "mais cuidadosos e dotados de maior visibilidade, fomentando o debate democrático em torno das decisões e do próprio papel desempenhado pela Corte" [111], além de maior rapidez e eficiência, reivindicações dos clientes do Poder Judiciário.
Feitos esses registros, trabalharemos a repercussão sob uma perspectiva em especial, justamente, o poder de "maximizar a feição objetiva do recurso extraordinário" [112]. Muito embora, a todo momento, tendo que fazer alusão à lei formal, valoraremos os assuntos sob a ótica do Direito Constitucional, o que importa sacrificar as feições umbilicalmente ligadas ao Direito Processual Civil, não menos atraentes, porém, desimportantes no momento.
A Suprema Corte tem papel fundamental na condução do novo instrumento. Detém com exclusividade o mister de apreciar a repercussão geral – art. 543-A, caput, do CPC. Significa que outros tribunais não podem usurpar tal atribuição, sob pena desafiarem a reclamação constitucional, prevista no art. 102, I, l, da Lei Maior.
Sobre o quorum de apreciação do requisito, o STF só poderá rejeitar o recurso, por ausência de repercussão geral, mediante o voto de dois terços de seus membros, a evidenciar verdadeira presunção em favor do requisito [113]. Assim não se procedendo, a Turma apreciará a repercussão. Caso decida pela existência, no mínimo, por quatro votos, desnecessária será sua remessa ao Plenário [114]. Decidindo-se por sua inexistência, ou não atingido aquele quorum, a questão seguirá ao Órgão Máximo.
Os pronunciamentos da Corte Máxima, no que pertinem ao tema, são verdadeiros paradigmas. Cita-se o exemplo da decisão que estende a repercussão geral a todo recurso excepcional, seja ele cível, criminal, eleitoral ou trabalhista [115]. A toda evidência, tenta-se afunilar, com bastante vigor, o número de recursos.
A teor do caput do art. 543-A do CPC, a decisão exarada pelo STF sobre a admissibilidade, ou não, do recurso excepcional é irrecorrível. Com essa medida, o legislador, nitidamente, quer preservar as funções constitucionais da Corte e a soberania das decisões.
Quanto à natureza da repercussão geral, cumpre revelar que não foi à-toa sua elevação a requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Sua função de preliminar ao mérito recursal [116] nos autoriza a concluir, na esteira da doutrina de Marinoni e Mitidiero [117], tratar-se de requisito intrínseco, pois, ausente o pressuposto, sequer existe a faculdade de recorrer à Corte Maior. Em outras palavras, sem repercussão geral não há pretensão recursal.
Para a parte interessada lograr êxito na demonstração do requisito, necessariamente terá de observar o binômio relevância/transcendência da matéria, nos termos do art. 543-A, § 1º, da Lei Processual. Tais elementos são conceitos indeterminados, o que não importa valoração subjetiva. Muito ao contrário, não há espaço para superelevação da ótica individual, discricionária. A atividade interpretativa deverá ser objetiva, segura e fiscalizada pela coletividade.
O dispositivo legal exige a discriminação da relevância econômica, política, social ou jurídica da questão inserida no RE. Encontra-se exposta a face objetiva do recurso, reclamada por Mendes, porque as pendências envolvidas devem rezar sobre um desses quatro fatores, os quais não precisam ser conjugados, "basta que reste caracterizada a relevância do problema debatido em uma dessas perspectivas" [118].
O STF estará livre para se dedicar aos conteúdos mais significativos para a Nação e, ao mesmo tempo, descomprometido com as brigas de vizinhos como anteriormente referido.
Como válvula de escape, o ordenamento traz a hipótese de repercussão geral presumida [119], por via da qual se dispensa a demonstração da relevância quando o assunto já houver sido assim reconhecido ou no caso de o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Também é um critério objetivo de avaliação. Através dessa previsão a lei está valorizando a força normativa da Constituição e fortalecendo a autoridade das decisões e interpretações do STF, tudo com o fim de alcançar a unidade constitucional [120].
Concomitantemente, para que a matéria alcance repercussão, exige-se que transcenda os interesses subjetivos versados na causa. Esse fenômeno é caracterizado sob duas perspectivas, uma qualitativa, segundo a qual a matéria debatida deve servir para solver impasses de ordem constitucional e não egoísticos, e outra quantitativa, porque a decisão do STF, in concreto, atingirá um sem-número de pessoas, e não somente as partes. Veio à luz mais um exemplo da feição objetiva do recurso extraordinário. Optou-se por não mais valorar o entrave eminentemente individualístico, que continuará a ser protegido, todavia, indiretamente, já que a lide tem de possuir relevância e transcendência.
Muito embora o ônus de suscitar e demonstrar a existência da repercussão geral recaia sobre a parte, é relevante termos em mente que a fundamentação entabulada não vincula o STF. A Corte pode entender pela relevância e transcendência da matéria, porém, por fundamento constitucional diverso. Tal situação é recorrente nas ações de controle concentrado de constitucionalidade [121], ora incorporada ao controle difuso. Visualiza-se mais um traço objetivo do recurso excepcional.
A reforma prevê, ainda, a participação do amicus curiae no RE [122]. Está-se diante de uma inovação sem precedente no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, vez que se trata de instituto cuidado pelo controle concentrado (art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99). Franqueia-se a terceiros a possibilidade de debater a existência ou não da relevância da questão.
A presença do amicus curiae tem o fim de aprimorar o debate, porquanto vários pontos de vista serão lançados no processo, que não ficará bitolado aos argumentos dos litigantes. Pluraliza-se a discussão, permitindo que diversos setores da sociedade venham ao caso concreto manifestar suas razões. O resultado não será outro senão o amadurecimento da decisão, reduzindo-se a possibilidade de descontentamento geral.
Oportuno referir, a partir da enunciação do art. 323, § 2º do RISTF, que a decisão do relator que admite, ou não, a participação dos terceiros é irrecorrível. Mais uma bandeira estendida a favor da redução de recursos no âmbito constitucional.
Tema interessante é o que diz com a eficácia do reconhecimento da repercussão geral.
Primeiramente, constatada a relevância e a transcendência da questão, o recurso extraordinário será recebido pelo STF, obrigatoriamente, seguindo para a apreciação do mérito da causa. Até aqui, nenhuma indagação.
Segundo, negando-se a repercussão geral, o recurso não terá continuidade. No entanto, a alteração que mais ecoa está por detrás da cortina do § 5º do art. 543-A do CPC. O não-conhecimento do RE importará na não-admissão liminar de todos aqueles que versarem sobre matéria idêntica. Trata-se de medida extrema, a qual redundará na brusca derrocada de expressivo número de recursos repetitivos.
Retornaremos a esse assunto no próximo capítulo, quando nos libertaremos das amarras que impedem a antecipação do debate.
No entanto, advertem Marinoni e Mitidiero [123]:
Na realidade, o que autoriza a expansão da apreciação a respeito da inexistência de repercussão geral não é o fato de outros recursos extraordinários versarem sobre "matéria idêntica", tal como está em nossa legislação. De modo algum. Teremos de ler a expressão como se aludisse à "controvérsia idêntica". A matéria pode ser a mesma, embora a controvérsia exposta no recurso extraordinário assuma contornos diferentes a partir desse ou daquele caso. O termo "matéria" é evidentemente mais largo que "controvérsia".
Por fim, resta-nos analisar a repercussão geral nos processos com idêntica controvérsia – art. 543-B do CPC.
Havendo a reprodução de recursos, porquanto fundados na mesma controvérsia, a repercussão geral será aferida por amostragem. Os tribunais inferiores, se não eles, a Presidência do STF ou o Relator [124], selecionarão um ou mais recursos demonstrativos da matéria, enquanto que os demais serão remetidos às instâncias inferiores, e lá, ficarão suspensos aguardando a sorte daquele(s).
Reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito dos recursos, imediatamente, as inconformidades sobrestadas serão analisadas na origem, seja para que os tribunais a quo se retratem, conformando suas decisões à da Corte Maior, ou declarando-as prejudicadas, por desconformidade ao pronunciamento paradigmático.
Caso os tribunais inferiores mantenham suas decisões, ignorando a solução máxima, o recurso extraordinário será remetido ao STF, que poderá cassar ou reformar o acórdão desrespeitoso, conforme o § 4º do art. 543-B da Lei Formal.
Por outro lado, negada a repercussão, os extraordinários paralisados serão considerados, imediatamente, não-admitidos, devendo o tribunal originário acostar aos autos dos recursos cópia da decisão do Supremo [125].
Sobre o efeito das decisões do STF em sede de julgamento por amostragem, enviamos o exame para momento posterior.
Em síntese, a repercussão geral veio para consumar a tendência de se erigir o Supremo Tribunal Federal a verdadeira Corte Constitucional, bem como para ser uma técnica apurada na tentativa de solucionar a crise deste, ou do recurso extraordinário [126], como se queira. Foi pensado para ser uma resposta que favoreça a efetividade e a celeridade da prestação da tutela jurisdicional [127].
Compiladas e assimiladas as retroinformações, fica o questionamento: será que a repercussão geral, na forma com que elaborada pelo legislador, mexeu nas bases estruturais do controle concreto de constitucionalidade brasileiro, de forma a aproximá-lo, definitivamente, do modelo abstrato?
De qualquer sorte, uma resposta mais elaborada pressupõe, inarredavelmente, o desenvolvimento da proposta deste trabalho, a qual advirá no terceiro capítulo.
Cumprida essa etapa, anunciamos outra novidade introduzida pela Reforma do Judiciário, a súmula vinculante.
2.3 SÚMULA VINCULANTE
Como primeiro ato, elegemos percorrer a trilha deixada pelos ordenamentos que inspiraram a elaboração do instituto em comento.
Por mais contraditório que pareça, o sistema da common law, de tradição anglo-saxônica, ao qual se filia o direito norte-americano, essencialmente judicialista, influenciou, sobremaneira, a criação da súmula com efeito vinculante no Brasil, que, diga-se de passagem, adota o sistema da civil law, fundado no direito codificado, porquanto se baseia na lei escrita.
No sistema judicial, o precedente – stare decisis –, serve de guia às decisões futuras dos demais juízes, vinculando-os às diretrizes do caso paradigmático. Esse resultado, guardadas as peculiaridades, aproxima-se à idéia de súmula vinculante [128].
Como o modelo de controle pátrio é, por assim dizer, peculiar, porque agrega valores de todos os demais sistemas, a modelagem da súmula vinculativa não poderia fugir à regra. As influências advieram do outro lado do continente. Cita-se, a propósito, a Alemanha e a Áustria [129], onde o modelo de controle é concentrado, diferentemente do modelo judicial [130] supradetalhado.
Pouco mais próximo, observa-se que o Direito português previa, antes mesmo da Emenda nº 45/2004, a idéia de vinculação às decisões do Tribunal Constitucional em sede de controle abstrato [131].
É inegável a evolução do ordenamento brasileiro em termos de direito
sumular. A primeira notícia remonta às Ordenações Manuelinas [132], com os chamados "assentos". A força vinculativa, porém, apareceu com as Ordenações Filipinas [133] – a partir dos Assentos da Casa de Suplicação. É a fase colonial.
Pós-independência, abstraídos os movimentos anteriores, por meio da Emenda Regimental nº 21, de 28 de março de 1963, instituiu-se a Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, com empenho do Ministro Victor Nunes Leal, cuja proposta visava uniformizar o entendimento do tribunal. Entretanto, contidas as euforias, tais súmulas não exalam aptidão vinculativa, mas, tão-somente persuasiva [134], porque não obriga a todos, mas somente aos juízes da própria Casa.
Na lei posta, a força vinculante foi incorporada ao Regimento Interno do STF, no art. 187 [135], o qual regia a representação interpretativa, trazida pela remota EC nº 7/77.
Décadas mais tarde, a partir da EC nº 3, de 17 de março de 1993 [136], à Constituição Federal de 1988, premiou-se, timidamente, o controle concentrado de constitucionalidade, atribuindo-se efeito vinculativo aos pronunciamentos das ações declaratórias de constitucionalidade.
Apartando-se o debate sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 28 da Lei nº 9.868/99 [137], foi estendido tal efeito à ação direta de inconstitucionalidade. Reputamos justa e coerente a medida legislativa, em vista do caráter dúplice ou ambivalente das ações diretas.
Recentemente, com a Reforma do Judiciário, emprestou-se nova redação ao parágrafo 2º do art. 102 da Lei Magna [138], de modo que o texto constitucional passou a consagrar aquela disposição legal que conferira efeito vinculante à ADI. O legislador derivado, de forma patente, quis encerrar a discussão havida sobre a compatibilidade do retromencionado art. 28. Embora tardia, aplaude-se a iniciativa.
Temos de anunciar, entretanto, que a reforma constitucional não se comediu apenas a robustecer o controle abstrato de constitucionalidade.
Outrossim, o controle de constitucionalidade não foi esquecido pelo constituinte reformador, de maneira que lhe foi incorporado instrumento de igual grandeza, a súmula com efeito vinculante [139].
Permitimo-nos fazer uma pequena pausa, com o fito de assentarmos algumas premissas inerentes ao tão-mencionado efeito vinculativo das decisões da Corte Máxima.
A despeito de ser uma opção legislativa [140], essa vinculação tonifica a obrigatoriedade e a eficácia das decisões do STF em ADI e ADC, de maneira a tornar imperativa sua aplicação às hipóteses similares pelos demais órgãos do Poder Judicante, bem como pela administração pública, em todos os escalões.
Assevera Moraes [141] que,
uma vez proferida a decisão do STF, haverá uma vinculação obrigatória em relação a todos os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, que deverão pautar o exercício de suas funções na interpretação constitucional dada pela Corte Suprema, afastando-se, inclusive, a possibilidade de controle difuso por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário.
Essa vinculação obrigatória decorre da própria racionalidade do sistema concentrado de constitucionalidade, onde compete ao Supremo Tribunal Federal, por força da escolha política realizada pelo legislador constituinte originário, a guarda da Constituição Federal.
Aludimos, até agora, aos reflexos da vinculação no campo do controle abstrato. Entretanto, podemos externar, com tranqüilidade, que todas as linhas acima transcritas são perfeitamente aplicáveis à súmula vinculante, a qual redunda do controle concreto, embora deva ser dito que o âmbito de atuação do efeito na súmula seja diverso do verificado nas ações diretas [142].
Devemos levar em consideração que essa vinculatividade não atinge o próprio STF e o Poder Legislativo, senão anotemos as lições de Fernandes [143]:
Dessarte, não havendo uma autovinculação do STF no que respeita ao efeito vinculante de suas decisões, é-lhe facultado, no julgamento de norma de conteúdo idêntico ou semelhante ao de norma por ele mesmo declarada (in)constitucional, decidir de forma diferente, bem como decidir contrariamente à súmula vinculante (ainda que esta não tenha sido cancelada ou revisada).
Assim como o STF, o Poder Legislativo, no exercício da sua atividade típica, não se submete ao efeito vinculante das decisões do STF em ADIn e ADC, nem ao efeito vinculante adveniente da súmula vinculante.
Feito esse registro, retomamos o estudo da súmula em foco no ponto referente aos motivos que ensejaram sua criação e, conjuntamente, a(s) finalidade(s) do novel instituto.
Temos bem presente que as decisões do STF, em controle difuso, são despidas de efeito vinculante, pois obrigam apenas as partes envolvidas. Somos levados a admitir que, mesmo o STF declarando, em inúmeras oportunidades, a inconstitucionalidade de uma norma, juízes e tribunais, bem como órgãos executivos, não lhe renderão graças, podendo, inclusive, continuar aplicando a lei ou praticando o ato caso os entendam constitucionais.
Diante desse quadro, alternativa não restava ao interessado senão conduzir o processo até ulteriores termos, remetendo a inconformidade à Corte via recurso extraordinário, para que, no caso concreto, a inconstitucionalidade fosse reconhecida e a decisão máxima prevalecesse, reformando o pronunciamento inferior.
Essa circunstância fomentou a interposição de milhares de recursos com idêntico objeto junto ao Supremo Tribunal, abarrotando a pauta, roubando seu tempo, desprestigiando as instâncias inferiores, eternizando as lides, enfim, um verdadeiro contra-senso.
A súmula em exame emergiu como poderoso combatente contra o descrédito da Justiça. O efeito acoplado ao controle difuso de constitucionalidade servirá para sedimentar as decisões proferidas pelo STF sobre matéria constitucional, as quais passarão a vincular os demais órgãos do Poder Judiciário e a administração pública. Em síntese, evita-se a proliferação de recursos idênticos [144] e, ao mesmo tempo, uniformiza-se a jurisprudência pátria.
A doutrina, prontamente, identifica duas finalidades precípuas do instituto: celeridade na prestação jurisdicional e primazia da segurança jurídica, prestigiando-se o princípio da isonomia, já que a lei deve ter aplicação e interpretação uniforme [145].
Não se olvidem as críticas, de toda ordem, recaídas sobre a súmula, desde a ofensa ao princípio do acesso à justiça e à ampla defesa [146], até a maculação do princípio da separação dos poderes [147]. A somar-se, há quem sustente a aniquilação da independência funcional dos juízes e dos tribunais inferiores, que passariam a meros reprodutores dos julgamentos maiores. Qual o resultado: desprestígio da justiça de primeiro grau, cujas sentenças careceriam de respeito.
Faltaria, além do mais, legitimidade ao Poder Judiciário para dizer o direito em tese, que, por outro lado, sobeja-lhe para dirimir conflitos concretos [148].
Parte dos criticantes prefere atacar a mínima efetividade da súmula vinculante para rechaçar o problema da lentidão judiciária. Aconselham que a solução estaria numa reforma mais ampla do sistema, com a redução do número de recursos [149].
Outros trazem à tona o perigo de engessamento do Poder Judicante e, concomitantemente, a paralização da evolução do Direito.
Em contrapartida, colhemos manifestações favoráveis à iniciativa legislativa. Vejam-se algumas: é instrumento hábil a evitar julgamentos contraditórios [150]; revela-se meio capaz de uniformizar a jurisprudência pátria [151]; consiste em precedente obrigatório para redução da massa de processos que sufocam o Poder Judiciário [152]; diz-se mecanismo de agilização de julgamentos, servindo para minimizar a crise da tutela tardia [153]; é o "único expediente promissor até hoje cogitado para debelar o mal da repetitividade das teses jurídicas" [154].
Essa mesma corrente não se cala diante das censuras enumeradas, uma, porque não haveria afronta à separação dos poderes, já que a inovação partiu do próprio Poder Legislativo, que depositou no STF a tarefa de vincular os juízos menores [155]; duas, pois não subsistiria atentado contra a independência funcional dos juízes e tribunais inferiores, porquanto é a lei que está orquestrando as regras do efeito vinculativo [156].
Perfilhando essa doutrina, consigna Moraes [157]:
Não concordamos com esse posicionamento, nem tampouco nos parece que a edição de súmulas vinculantes poderá acarretar o engessamento e conseqüente paralisia na evolução e interpretação do Direito. A própria história do stare decisis afasta essas alegações, pois, entre todos os tribunais, nenhum se notabilizou tanto pela defesa intransigente, polêmica, construtiva e evolutiva dos direitos fundamentais como a Suprema Corte americana, mesmo adotando o mecanismo de vinculação, não podendo, porém, ser acusada de imutabilidade interpretativa.
No mesmo sentido, reforça Mendes [158]:
À evidência, não procede o argumento de que a súmula vinculante impede mudanças que ocorrem por demanda da sociedade e do próprio sistema jurídico, uma vez que há previsão constitucional da revisão e revogação dos seus enunciados.
Identificadas as duas vertentes, predomina aquela que defende o engendramento da súmula vinculante:
numa época em que as demandas idênticas repetem-se indefinidamente, especialmente naquelas aforadas contra o Poder Público, abarrotando os juízos e Tribunais, inclusive o STF, mostra-se razoável a edição da súmula vinculante, justamente para impedir julgamentos contrários ao decidido várias vezes pela Suprema Corte. Com isso, evita-se que o STF tenha de decidir milhares de vezes a mesma questão constitucional, como já ocorreu recentemente. E, especialmente, impedem-se julgamentos contraditórios sobre a matéria, com sensível descrédito e deslegitimação do Poder Judiciário, pois os leigos não entendem como uma mesma questão possa ser decidida, definitivamente, de forma diversa, ainda que por juízes ou tribunais diversos [159].
Avançando, passamos a estudar os aspectos práticos da novidade constitucional. Para tanto, compartilhamos que o art. 103-A da Lei Magna foi regulamentado pela Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, a qual veio disciplinar a edição, revisão e cancelamento de enunciado de súmula vinculante, entre outros acréscimos.
A competência para trabalhar com os enunciados de súmula vinculante está depositada, singularmente, no Supremo Tribunal Federal [160], apesar de o Projeto de Emenda ter, certa feita, estendido esse mister aos Tribunais Superiores [161], que, no final das contas, restaram apenas contemplados para incitar o Órgão Máximo – art. 3º, inciso XI, da Lei nº 11.417/2006.
A Constituição Federal [162] prevê o quorum de dois terços, contados em sessão plenária, para se alcançar a aprovação, a revisão ou o cancelamento da súmula. Quer significar que, pelo menos, oito dos onze Ministros têm de ser favoráveis àqueles intentos.
Estabeleceu-se, conjuntamente, no parágrafo 2º do art. 103-A, que os legitimados para propor a edição, a revisão ou o cancelamento da súmula em questão seriam os mesmos previstos no art. 103 [163] para propor a ADI e, a partir da EC nº 45/04, a ADC. Todavia, reservou-se à lei a possibilidade de ampliar o rol, o que foi feito pela Lei nº 11. 417/06, no art. 3º.
Extrai-se da lei a previsão de legitimados autônomos e de um incidental. Aqueles são todos os que constam do rol com atribuição para desencadear o controle concentrado perante o STF, acrescendo-se o Defensor Público-Geral da União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares. O Município é o único legitimado ativo incidental, pois sua iniciativa está adstrita à verificação de lide em andamento, na qual ele seja parte interessada. Como se vê, o ente municipal não tem poder para provocar, diretamente, o STF.
Além da estipulação de legitimados, face ao permissivo do caput do art. 103-A da CF, o Supremo Tribunal poderá aprovar, rever ou cancelar súmula vinculativa de ofício, ou seja, por iniciativa própria.
De todas as surpresas normativas, sobressai a previsão do art. 3º, § 2º, da Lei nº 11.417/06, trazendo consigo a possibilidade da intervenção de amicus curiae no âmbito da súmula vinculante. Tamanha é a importância da previsão, que a decisão do relator, admitindo a interferência dos terceiros, é irrecorrível.
Inegavelmente, a manifestação de terceiros, nesta seara, revela nítida evolução do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, já que o terreno fértil para a maior discussão das questões constitucionais sempre foi o controle concentrado, vide art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.
No que concerne aos requisitos para a edição da súmula, extraem-se quatro elementos do art. 103-A, caput e § 1º, da Lei Magna: a matéria tem de ser constitucional; devem existir reiteradas decisões do STF sobre o tema; deve pairar controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre estes e a administração pública; e essa controvérsia deve acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Tais requisitos são cumulativos. Faltando um, não estará preenchido o mandamento constitucional..
Acerca do primeiro, nunca matéria infraconstitucional poderá ser objeto de súmula vinculante. Exclusivamente aquelas com assento na Lei Maior merecerão o lugar de destaque. A saber, estão "abrangidas, portanto, as questões atuais sobre interpretação de normas constitucionais ou destas em face de normas infraconstitucionais" [164].
Observam Paulo e Alexandrino [165] que, "embora não seja explícito no texto constitucional, somente matéria que não tenha sido decidida no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade poderá ser tratada em súmula vinculante". A justificativa é óbvia, pois qual seria o acréscimo da súmula se a decisão exarada em controle abstrato goza do perseguido efeito vinculante? Absolutamente, nenhum.
A necessidade de reiterados pronunciamentos do STF em controle difuso, sobre mesma matéria constitucional, prestigia a consolidação de entendimento da Corte, de maneira a se evitar precipitação na edição da súmula, preservando a imponência do instrumento.
Quando a Constituição Federal menciona que a matéria objeto de súmula vinculante seja alvo de controvérsia atual dentro do Poder Judiciário ou entre este e a administração, está, evidentemente, afastando as leis reconhecidas como inconstitucionais pelo órgão judicante e desrespeitadas pela administração. Outrossim, as questões polêmicas, as quais, certamente, no futuro virão encerrar debate relevante. O confronto deve ser atual, presente.
Sobre o último requisito – geração de insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica –, limitar-nos-emos a associá-lo à finalidade principal da elaboração do instituto em comento.
Deixamos, propositalmente, para o final, a investigação dos efeitos.
O efeito principal do tema em foco é o suficientemente conhecido vinculante. É, por assim dizer, o carro-chefe do caput do art. 103-A da Constituição Federal, regulamentado pelo caput do art. 2º da Lei nº 11.417/06.
Publicada a súmula na imprensa oficial, seu conteúdo passará a ser de observância compulsória pelos órgãos inferiores do Poder Judiciário, bem como pela administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal [166].
Dignas de registro as considerações de Lenza [167]:
Assim, a vinculação repercute somente em relação ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário, não atingindo o Legislativo, sob pena de se configurar o "inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição", conforme anotado pelo Ministro Peluso na análise dos efeitos da ADI (Rcl 2617, Inf. 386/STF), nem mesmo em relação ao próprio STF, sob pena de se inviabilizar, como visto, a possibilidade de revisão e cancelamento de ofício pelo STF e, assim, a adequação da súmula à evolução social.
A par de a Constituição Federal não ter antecipado, a Lei nº 11.417/06, no art. 4º, previu a eficácia imediata da súmula. Regra geral, publicada na imprensa, a súmula vinculativa tem o poder de se impor no ordenamento jurídico.
Assim sendo, afigura-se acertada a interpretação que confere caráter ex nunc à edição, à revisão ou ao cancelamento do verbete de súmula vinculante da Suprema Corte, a qual produzirá efeitos tão-somente após publicada no Diário Oficial [168].
Todavia, a mesma normatividade excepciona a regra, e com estilo, diga-se de passagem. Valendo-se da técnica da modulação dos efeitos da súmula vinculativa, o STF, mediante o quorum de dois terços de seus membros, poderá restringir os efeitos ou decidir que tenham eficácia a partir de outro momento, porém, levadas em conta as razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público. Trata-se de instituto importado do modelo concentrado de constitucionalidade, conforme previsão do art. 27 da Lei nº 9.868/99.
Por fim, o enunciado vinculante não poderia ficar descoberto, desnudo de proteção contra eventuais afrontas. Em razão disso, qualquer desrespeito à súmula em análise estará, automaticamente, desafiando a ação constitucional garantidora da autoridade das decisões do STF, a reclamação [169]. Reputamos suficientes, para o momento, tais informações.
Resumidamente, vimos que a súmula com efeito vinculante adveio para recuperar a fé na Justiça, instrumentalizando-se para frear o crescente número de recursos idênticos e, ao mesmo tempo, uniformizar a jurisprudência pátria. Esse desiderato prestigia a celeridade processual e resguarda a segurança jurídica, principais reclames daqueles que ocupam as filas no Poder Judiciário.
Precisamos conhecer, pois, a advertência de Mendes [170]:
A súmula vinculante somente será eficaz para reduzir a crise do Supremo Tribunal Federal e das instâncias ordinárias se puder ser adotada em tempo social e politicamente adequado. Em outras palavras, não pode haver um espaço muito largo entre o surgimento da controvérsia com ampla repercussão e a tomada de decisão com efeito vinculante. Do contrário, a súmula vinculante perderá o seu conteúdo pedagógico-institucional, não cumprindo a função de orientação das instâncias ordinárias e da Administração Pública em geral. Nesse caso, sua eficácia ficará restrita aos processos ainda em tramitação.
Portando-se a noção geral sobre o tema em exame, pergunta-se: nos termos em que posta no ordenamento vigente, a súmula vinculante alterou, de alguma forma, o modelo tradicional de controle de constitucionalidade brasileiro, de modo a contribuir para a aproximação dos controles concreto e abstrato?
O momento se presta ao questionamento e não à resposta. Contudo, comprometemo-nos a solucionar o impasse quando da escolha do título deste trabalho, o qual virá no seguinte capítulo.
Sem sombra de dúvidas, estamos frente a assunto de extrema significância para o Direito Constitucional contemporâneo, mormente para o controle de constitucionalidade. Qualquer ponto relativo ao tema pode ensejar uma pesquisa de magnitude equivalente a esta. Como nosso objetivo é descortinar alguns aspectos, possibilitando o engordamento de nosso conhecimento, necessário para o enfrentamento do cerne do trabalho, pode parecer, em alguns instantes, que a superficialidade nos tomara conta, porém, aconselha-se um olhar mais atento para perceber que mantivemos a cumplicidade necessária ao estudo dessa etapa.
Vencido mais esse desafio, despertamos interesse para o exame de outro ponto, o último deste módulo – a reclamação constitucional.
2.4 RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Prontamente, a fim de afastarmos cogitações inoportunas, deseja-se elucidar que enfocaremos a reclamação sob a luz da competência do STF, lembrando que a Constituição vigente confere ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) [171] igual poder para manejar o instrumento examinando.
Cogita-se a análise da disciplina por dois motivos: porque umbilicalmente ligada à proposta central e por sua inestimável valorização pelo controle de constitucionalidade moderno.
Como tudo tem um princípio, propõem-se as incursões comparada e histórica.
Compulsada a doutrina mais completa [172], podemos afirmar que o instituto consagrado pelo Direito brasileiro não encontra similitude no mundo. Tal como encartada no ordenamento, a reclamação é dotada de uma tipicidade muito peculiar, o que a afasta de qualquer comparação, seja com o modelo que for.
No Brasil, seu nascedouro desafia a regra da incorporação via legislativa. Trata-se de criação Pretoriana, fruto da "evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal" [173].
A autorização para a criação do instituto, mesmo carente de permissivo legal, repousaria na teoria dos poderes implícitos [174] – implied powers – conferidos à Corte. Operou-se a ampliação da competência não-escrita do STF, via construção constitucional.
A primeira aparição da reclamação data de 02 de fevereiro de 1957, quando incorporada ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Mas foi através da Constituição Federal de 1967 que o instrumento adquiriu relativa notoriedade. A Lei Soberana conferiu força de lei federal aos regramentos do RISTF [175]. Enfim, a reclamação adquirira status infraconstitucional.
Com a Constituição Federal de 1988, finalmente, o instituto alcançou sede constitucional, lugar no qual permanece até os dias atuais [176].
Pode-se adiantar que não é tarefa fácil desvendar a natureza da reclamação constitucional, tendo em vista as infindáveis manifestações existentes, defendidas por respeitáveis estudiosos. Sendo assim, limitar-nos-emos a enumerar todas e, a final, emitiremos nossa preferência.
Pontes de Miranda a reconhece como ação propriamente dita. Outros, como Moacyr Amaral dos Santos e Alcides de Mendonça Lima, tratam-na como recurso ou sucedâneo recursal. Orosimbo Nonato denomina-a remédio incomum. Nelson Nery Júnior e Moniz de Aragão sustentam seu caráter de incidente processual. Por sua vez, José Frederico Marques leciona-a como medida de Direito Processual Constitucional [177]. O ex-Ministro Djaci Falcão sustenta sua feição de medida processual de caráter excepcional. O Ministro do STF Marco Aurélio visualiza-a como instrumento de extração constitucional. Chegada a vez de Ada Pellegrini Grinover [178], disserta sobre sua feição de simples postulação perante o próprio órgão que proferiu uma decisão para o seu exato e integral cumprimento. Pedro Lenza [179] prefere aceitá-la como provimento mandamental de natureza constitucional.Posicionamo-nos, no entanto, ao lado Pontes de Miranda, Mendes [180], Didier Jr. e Cunha [181], para concluir que a reclamação constitucional tem natureza jurídica de ação, e, por estar inserida na Constituição Federal, leva consigo essa grandeza. Enfim, trata-se de ação constitucional, embora a celeuma existente.
A fundamentação parte de Mendes [182]:
Tal entendimento justifica-se pelo fato de, por meio da reclamação, ser possível a provocação da jurisdição e a formulação de pedido de tutela jurisdicional, além de conter em seu bojo uma lide a ser resolvida, decorrente do conflito entre aqueles que persistem na invasão de competência ou no desrespeito das decisões do Tribunal e, por outro lado, aqueles que pretendem ver preservada a competência e a eficácia das decisões exaradas pela Corte.
Adotando-se essa posição, inarredáveis consectários advirão. Investindo-se como ação constitucional, somente pode ser disciplinada por lei federal, pois ação é tema inerente a processo, que é matéria privativa da União – art. 22, I, da Lei Magna. Dessa maneira, sua regulamentação encontra-se nos arts. 13 a 18 da Lei nº 8.038/90.
Temos de aceitar, igualmente, que a decisão exarada produzirá coisa julgada formal e material. Via de conseqüência, julgada definitivamente a reclamação, não se poderá repetir a ação, e mais: admitir-se-á sua revisão, exclusivamente, por ação rescisória [183].
A compreensão da amplitude do instituto analisando passa pela legitimidade ativa e passiva.
O art. 13 da Lei nº 8.038/90 contempla dois legitimados ativos, aptos a impulsionar a reclamatória, quais sejam, a parte interessada e o Ministério Público. Ocorre que a subjetividade do termo "parte interessada" acabou afastando, por anos, o manejo da ação pelos terceiros, jurídica ou economicamente motivados. Na época, o pólo ativo podia ser formado tão-só pelos mencionados no art. 103 da Constituição Federal para ajuizar a ADI.
Esse impasse foi dirimido pelo STF na Questão de Ordem em Agravo Regimental na Reclamação nº 1.880, em 07 de novembro de 2002, quando se passou a considerar viável a propositura da ação por todos aqueles atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ADI. Em resumo, os terceiros prejudicados passaram a ser abraçados pela regra do retro referido art. 13.
Sem maiores resistências, a doutrina entende viável a formação de litisconsórcio ativo.
Por outro lado, o pólo passivo será composto pela autoridade que afrontar a decisão ou competência da Corte Maior ou do STJ, nos termos do art. 14, I, da Lei nº 8.038/90.
Relegaremos o exame do procedimento sob o argumento da parca contribuição para o enobrecimento do trabalho, pois, do contrário, estaríamos perseguindo o volume físico ao invés do crescimento imaterial.
Intencionalmente, guardamos especial espaço para as considerações sobre o cabimento dessa modalidade.
Por consubstanciar uma demanda típica, a reclamação somente pode ser manejada nos casos previamente fixados pelo legislador, de maneira que sua fundamentação se diz vinculada.
Não ignoramos que o instrumento analisando está vocacionado a preservar a competência do STF, bem como a garantir a autoridade de suas decisões – art. 102, I, l, da CF. São essas as tradicionais hipóteses de cabimento da reclamação. Seguem os comentários.
Quanto ao primeiro caso, ocupa-se com os atos usurpadores da competência da Corte Máxima. Reputamos de grande valia a demonstração dessa realidade através de exemplos.
Situação recorrente é a negativa de seguimento ao agravo de instrumento interposto contra a decisão de inadmissibilidade de recurso extraordinário e/ou especial. Ocorrido tal fato, patente é a invasão do rol de atribuições do STF, porquanto a atribuição para apreciar a admissibilidade ou não do recurso lhe pertence [184].
É de costume, outrossim, o ajuizamento de reclamação com o fito de resguardar a competência da Corte para dirimir conflitos federativos [185].
No âmbito dos juizados especiais, movimenta-se a ação constitucional contra o ato que nega seguimento a recurso extraordinário em relação à matéria constitucional [186].
Para não nos alongarmos demasiadamente, trazemos um último exemplo, ditado por Didier Jr. e Cunha [187]:
Reclamação contra ato de juiz de primeira instância, que suspende o processamento da execução, em razão da pendência de ação rescisória. Neste caso, somente o tribunal a quem compete julgar a ação rescisória poderia determinar a suspensão do procedimento executivo.
Na segunda hipótese – garantir a autoridade das decisões do STF –, a reclamatória visa restaurar a força e o respeito, atributos inerentes aos pronunciamentos da mais alta Corte, os quais foram violados por decisão de tribunal inferior. Como fizemos na hipótese supramencionada, colacionamos exemplos para uma melhor visualização do problema.
O Supremo Tribunal Federal admite o uso da reclamação contra ato judicial afrontoso à decisão proferida em ADI ou ADC, definitiva ou liminarmente, já que dotadas de efeito vinculante (art. 102, § 2º, da CF).
Nos primórdios, conferia-se legitimidade para a postulação aos congratulados com o poder de promover as ações diretas (art. 103 da CF). Contudo, em vista da incorporação do efeito vinculante às decisões da Corte pela Lei nº 9.868/99, reforçada pelo § 2º do art. 102 da Lei Maior, o Pretório Excelso estendeu a legitimidade aos terceiros atingidos pelas decisões afrontosas, proferidas pelos órgãos inferiores [188].
Merece igual interpretação a decisão prolatada em sede de medida liminar em ADI, pois outro não é o entendimento do STF, firmado nas Reclamações nº 1.652 e 1.880 [189].
No que concerne à discussão da aceitação da reclamação no controle concentrado de constitucionalidade, parece que se quedou à inclusão do efeito vinculativo às decisões do STF. Nessa esteira, os óbices ao reconhecimento da reclamação em sede de ADPF prostraram-se frente à previsão da Lei nº 9.882/99, a qual também conferiu a esta tal efeito.
Instaura-se a polêmica quando entra em pauta a viabilidade da reclamação para assegurar a autoridade dos pronunciamentos da Corte em habeas corpus e em recurso extraordinário [190]. Neste instante não podemos aprofundar a discussão, porque, do contrário, estaríamos adiantando aspectos centrais da temática dessa monografia. Pedimos passagem, rogando a manutenção da curiosidade por nossa proposta.
Devemos anunciar, posto que soe egoísmo de nossa parte, que optamos por incluir este ponto pensando na inovação abaixo tratada. Inevitavelmente, para chegarmos até aqui, a contextualização se fazia imperiosa.
O panorama acima apresentado, hodiernamente, deve ser expandido para abraçar novel cabimento da reclamação constitucional.
A EC nº 45/04 acrescentou o § 3º ao art. 103-A da Constituição Federal, entabulando que a reclamação constitucional pode ser ajuizada contra atos administrativos ou decisões judiciais que contrariarem ou indevidamente aplicarem enunciado de súmula vinculante.
Na seqüência, a Lei nº 11.417/2006, através do art. 7º, alargou as possibilidades de cabimento para incluir a negativa de vigência do enunciado.
Segundo Góes [191],
a lei foi mais extensa que a norma constitucional, porém, o "negar vigência" já se encontra amparado na expressão contrariar, de sorte que não se vislumbra atrito algum entre a CF/88 e a Lei nº 11.417/06, a qual pretendeu apenas se mostrar mais explícita.
O que mais reluz no acréscimo legislativo é a consagração da admissibilidade da ação examinanda contra ato administrativo [192] afrontoso à súmula. Certamente, é a grande inovação do sistema, pois vislumbrávamos a postulação contra decisões do Poder Judicante, tão-somente.
Se se incluíram os atos administrativos no acervo da reclamação, certamente, na visão do legislador constituinte, eles influem, de maneira significativa, no crescimento de demandas judiciais idênticas. A resposta do STF será no sentido de anular o ato desrespeitoso do enunciado de súmula vinculante, ficando a critério da Administração Pública a edição, ou não, de outro ato, face a intangibilidade do Poder Judiciário nas questões interna corporis.
Apesar disso, o § 1º do art. 7º da Lei nº 11.417/06 impingiu que o manejo da reclamação contra omissão ou ato da administração deva ser feito após o esgotamento das vias administrativas. É uma restrição ao uso da via postulatória que a coloca no lugar de alternativa, e não de solução última.
Acerca dos reflexos da norma, leciona Lenza [193]:
Trata-se de instituição, por parte da lei, de contencioso administrativo atenuado e sem violar o princípio do livre acesso ao Judiciário (art. 5.º, XXXV), na medida em que o que se veda é somente o ajuizamento da reclamação e não de qualquer outra medida cabível, como a ação ordinária, o mandado de segurança etc.
Já com relação às decisões judiciais, estarão fadadas a destino diverso. No teor do § 3º do art. 103-A da CF, o STF tem o poder de cassar a decisão judicial reclamada, remetendo ao juízo afrontante para que prolate nova decisão, com ou sem a aplicação da súmula.
Chegamos ao final do exame desse tão-atraente instituto.
No decorrer do trajeto, arrecadamos valorosos ensinamentos, imprescindíveis ao enfrentamento do posterior capítulo, os quais compartilharemos com o leitor.
Constatamos que a reclamação passou por transformações radicais a contar de sua criação. Devido à ampliação da competência do STF para a análise do controle concentrado, seus pronunciamentos adquiriram supervalorização em razão do efeito vinculante, roupagem que confere obrigatoriedade e respeito às suas decisões.
Contudo, o efeito vinculativo, por si, não atingiria seu mister. Por tal motivo, confeccionou-se uma blindagem capaz de resguardar a força das decisões supremas, a reclamação constitucional.
Como se vê, inicialmente, a reclamatória destinava-se a proteger os efeitos das decisões em controle concentrado de constitucionalidade.
Recentemente, com a EC nº 45/04, ampliou-se sua gama de proteção, de maneira a alcançar, também, o controle difuso de fiscalização das normas. A contrariedade a enunciado de súmula vinculante desencadeia a possibilidade do manejo da reclamatória, pois o efeito vinculativo, evidentemente, se impõe.
Assim sendo, como de praxe, deixamos uma pergunta: o advento do § 3º do art. 103-A da CF, o qual permite o ajuizamento da ação constitucional contra violação de enunciado de súmula vinculante, contribui, de alguma maneira, para a aproximação dos modelos concreto e abstrato, no Brasil?
Comprometemo-nos a despender todos os esforços, doravante, na busca das respostas às indagações feitas ao longo do trabalho monográfico.