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O princípio da proibição de retrocesso social.

Breves considerações

Resumo:


  • O princípio da proibição de retrocesso social visa impedir a supressão ou redução de direitos fundamentais sociais já alcançados.

  • Esse princípio tem sede material na Constituição brasileira de 1988 e possui conteúdos positivo e negativo.

  • A jurisprudência brasileira já se debruçou sobre o tema, reconhecendo a existência e a aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Constituição brasileira de 1988 implicitamente veda a supressão ou a redução de direitos fundamentais sociais a níveis inferiores aos já alcançados e garantidos aos brasileiros.

1. Considerações Iniciais

Um dos maiores desafios do Estado brasileiro é a manutenção dos direitos fundamentais sociais - termo aqui utilizado como abreviatura de direitos econômicos, sociais e culturais - conquistados, protegendo-os dos refluxos políticos e econômicos.

Malgrado a Constituição Federal de 1988 – consagradora de um Estado social e democrático de direito no país - reconheça os direitos sociais como direitos fundamentais, sendo, portanto, intangíveis em face das denominadas cláusulas pétreas, vários desses direitos foram concretizados por meio de legislação infraconstitucional, situação que pode facilitar sua redução ou supressão mediante quorum parlamentar reduzido, levando, em alguns casos, se assim ocorrer, ao esvaziamento do comando constitucional a eles referentes. Por isso, é importante a pesquisa de meios técnico-jurídicos que obstem a supressão ou a redução desses direitos, que os preserve do alvedrio das maiorias políticas eventuais.

Este texto trata, de forma muito resumida, do ainda incipiente princípio da proibição de retrocesso social, implícito na Constituição brasileira de 1988, decorrente do sistema jurídico-constitucional pátrio, e que tem por escopo a vedação da supressão ou da redução de direitos fundamentais sociais, em níveis já alcançados e garantidos aos brasileiros.

É importante alertar o leitor, desde já:

  1. que o texto não abarca a limitação do poder constitucional reformador, presente na Constituição Federal de 1988, no art. 60, § 4º (cláusulas pétreas);

  2. que o fenômeno da proibição de retrocesso não está adstrito aos direitos fundamentais sociais, ocorrendo também, no Brasil, por exemplo, no direito ambiental;

  3. que, embora haja outras denominações - cláusula de proibição de evolução reacionária, regra do não-retorno da concretização, princípio da proibição da retrogradação - adota-se aqui a denominação corrente nas doutrinas portuguesa e brasileira, isto é, princípio da proibição de retrocesso social.

A limitação espacial deste texto impõe, para a compreensão do tema, as seguintes premissas: a Constituição Federal de 1988 reconhece (a) a jusfundamentalidade dos direitos sociais, formal (os direitos sociais constam do rol dos direitos e garantias fundamentais, inclusive com cláusula aberta de inserção - art. 5º, § 2º) e materialmente (postulados da justiça social e da dignidade da pessoa humana) nela inseridos; e (b) a residência, em seu texto, de princípios explícitos (escritos) e implícitos (decorrentes do sistema jurídico constitucional).


2. O Princípio da Proibição de Retrocesso Social

O tratamento da proibição de retrocesso social encontra-se mais desenvolvido em países como Alemanha, Itália e Portugal. Entre estes, releva destacar Portugal, mormente com suporte nas lições de Canotilho, para quem os direitos sociais apresentam uma dimensão subjetiva, decorrente da sua consagração como verdadeiros direitos fundamentais e da radicação subjetiva das prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos reconhecidos na Constituição, isto é, dos chamados direitos derivados a prestações, justificando a sindicabilidade judicial da manutenção de seu nível de realização, restando qualquer tentativa de retrocesso social. Assumem, pois, a condição de verdadeiros direitos de defesa contra as medidas de natureza retrocessiva, cujo objetivo seria a sua destruição ou redução.

Nessa linha, o Tribunal Constitucional português reconheceu a existência do princípio da proibição de retrocesso social. Em 11.04.84, o tribunal proferiu o paradigmal Acórdão nº 39/84, que declarou a inconstitucionalidade de lei infraconstitucional que revogara parte considerável da Lei nº 56/79, que instituíra o Serviço Nacional de Saúde daquele país. O relator da questão, Conselheiro Vital Moreira, rejeitou a tese de inconstitucionalidade formal e passou à análise da inconstitucionalidade material do art. 17. do Decreto-lei nº 254/82. Entendeu o Conselheiro que, ao instituir o SNS, a Lei nº 56/79 era um meio de realização do direito fundamental à proteção à saúde com consagração no art. 64º da Constituição e que, mediante o art. 17º do Decreto-lei nº 254/82, o Governo legislara sobre direito à saúde e extinguira o SNS. Ao proferir seu voto, Vital Moreira tratou dos direitos sociais, especialmente os de proteção à saúde, como direitos fundamentais, observando que estes não possuem natureza semelhante a dos direitos, liberdades e garantias, isto é, dos direitos de liberdade, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Em relação aos direitos sociais, aduziu o relator que se acentua o seu caráter positivo ao exigir prestações positivas do Estado, sem que se negue a jusfundamentalidade desses direitos sociais. Partindo dessas manifestações, o relator desenvolveu os argumentos da proibição de retrocesso social, afirmando a inconstitucionalidade do debatido art. 17º do Decreto-lei nº 254/82.

A concepção lusitana do princípio da proibição de retrocesso social, na origem, era distinta daquela desenvolvida na Alemanha. Em Portugal adotou-se, inicialmente, a concepção do princípio sem restringi-lo às prestações de seguridade social, alcançando prestações do Estado, ainda que não decorrentes de contribuição pecuniária do titular, tratando da problemática nos limites da ação do legislador e dos atos comissivos do Poder Legislativo que pudessem gerar efeitos semelhantes aos de sua omissão no mister de cumprir determinações constitucionais.

2.1. No Direito Nacional

No Brasil, o desbravamento do princípio sob estudo é atribuído a José Afonso da Silva, para quem as normas constitucionais definidoras de direitos sociais seriam normas de eficácia limitada e ligadas ao princípio programático, que, inobstante tenham caráter vinculativo e imperativo, exigem a intervenção legislativa infraconstitucional para a sua concretização, vinculam os órgãos estatais e demandam uma proibição de retroceder na concretização desses direitos. Logo, o autor reconhece indiretamente a existência do princípio da proibição de retrocesso social.

Com base em autores como Lenio Luiz Streck, Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, Luiz Edson Fachin, Juarez Freitas, Suzana de Toledo Barros, Patrícia do Couto Villela Abbud Martins e José Vicente dos Santos Mendonça, destacando-se as contribuições de Ingo Wolfgang Sarlet e Felipe Derbli, a doutrina brasileira reconhece a existência do princípio no sistema jurídico-constitucional pátrio.

2.2. Na Jurisprudência Brasileira

O STF lançou o primeiro pronunciamento sobre a matéria por meio do acórdão prolatado na ADI nº 2.065-0-DF, na qual se debatia a extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social e dos Conselhos Estaduais e Municipais de Previdência Social. Não obstante o STF não tenha conhecido da ação, por maioria, por entender ter havido apenas ofensa reflexa à Constituição, destaca-se o voto do relator originário, Ministro Sepúlveda Pertence, que admitia a inconstitucionalidade de lei que simplesmente revogava lei anterior necessária à eficácia plena de norma constitucional e reconhecia uma vedação genérica ao retrocesso social.

Outras decisões do STF trataram do tema da proibição de retrocesso social, como as ADIs nºs 3.105-8-DF e 3.128-7-DF, o MS nº 24.875-1-DF e, mais recentemente, a ADI nº 3.104-DF. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também já analisou o tema na Apelação Cível nº 70004480182, que foi objeto do RE nº 617757 para o STJ. A matéria mereceu análise também pela 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Mato Grosso do Sul – Processo nº 2003.60.84.002458-7.

2.3. Natureza Principiológica

A proibição de retrocesso social possui indubitável natureza principiológica, haja vista exibir um elemento finalístico, traduzido na garantia do nível de concretização dos direitos fundamentais sociais e a permanente imposição constitucional de desenvolvimento dessa concretização. Por isso, nega-se a sua caracterização como simples modalidade de eficácia jurídica das normas que envolvem direitos fundamentais.

O princípio possui conteúdos positivo e negativo. O conteúdo positivo encontra-se no dever de o legislador manter-se no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo as orçamentárias), o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais. Não se trata de mera manutenção do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social.

O conteúdo negativo - subjacente a qualquer princípio - que, no caso, prevalece sobre o positivo, refere-se à imposição ao legislador de, ao elaborar os atos normativos, respeitar a não-supressão ou a não-redução, pelo menos de modo desproporcional ou irrazoável, do grau de densidade normativa que os direitos fundamentais sociais já tenham alcançado por meio da legislação infraconstitucional, isto é, por meio da legislação concretizadora dos direitos fundamentais sociais insertos na Constituição.

Afirma-se, com efeito, que o princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional, com caráter retrospectivo, na medida em que tem por escopo a preservação de um estado de coisas já conquistado contra a sua restrição ou supressão arbitrárias.

2.4. Sede Material do Princípio

O princípio tem sede material na Constituição brasileira de 1988, decorrendo dos princípios do Estado social e democrático de direito, da dignidade da pessoa humana, da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, da segurança jurídica e da proteção da confiança, do valor social do trabalho e da valorização do trabalho humano.

Além disso, o princípio decorre da imposição constitucional de ampliação dos direitos fundamentais sociais, da redução das desigualdades sociais e da construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social. Levam-se em consideração, ainda, a tendência do direito internacional de progressiva implementação efetiva da proteção social por parte dos Estados e o argumento de que a negação do princípio significaria que o legislador dispõe do poder de livremente tomar decisões, ainda que em flagrante desrespeito à vontade expressa do legislador constituinte.

2.5. Conteúdo do Princípio

O conteúdo do princípio da proibição de retrocesso social está centrado na possibilidade de reconhecimento do grau de vinculação do legislador aos ditames constitucionais relativos aos direitos sociais, significando que, como já afiançado anteriormente, uma vez alcançado determinado grau de concretização de uma norma constitucional definidora de direito social - aquela que descreve uma conduta, omissiva ou comissiva, a ser seguida pelo Estado e por particulares - , fica o legislador proibido de suprimir ou reduzir essa concretização sem a criação de mecanismo equivalente ou substituto.

2.6. Proposta de Definição

Propõe-se que assim se exprima o princípio da proibição de retrocesso social: princípio que se encontra inserido implicitamente na Constituição brasileira de 1988, decorrendo do sistema jurídico-constitucional, com caráter retrospectivo, tendo como escopo a limitação da liberdade de conformação do legislador infraconstitucional, impedindo que este possa eliminar ou reduzir, total ou parcialmente, de forma arbitrária e sem acompanhamento de política substitutiva ou equivalente, o nível de concretização alcançado por um determinado direito fundamental social.

2.7. Objeções ao Princípio

O reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso social no sistema jurídico-constitucional pátrio não está livre de objeções. Listam-se aqui cinco delas:

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  1. centra-se na alegação de inexistência de definição constitucional acerca do conteúdo do objeto dos direitos fundamentais sociais. Logo, esses direitos seriam indetermináveis sem a intervenção do legislador, cuja liberdade encontraria limites apenas no princípio da confiança e na necessidade de justificação das medidas reducionistas. Contudo, a aceitação dessa concepção outorgaria ao legislador o poder de disposição do conteúdo essencial dos direitos fundamentais sociais, ocasionando fraude à Constituição por violação à própria dignidade humana;

  2. é a alegada equivalência entre retrocesso social e omissão legislativa. Sucede que, embora correlatas, não há equivalência entre ambas, pois o retrocesso social pressupõe um ato comissivo, formal, do legislador, que venha de encontro aos preceitos constitucionais. Já a omissão, embora censurável do ponto de vista jurídico-constitucional, não se trata de ato sujeito a refutação;

  3. refere-se ao fato de uma norma constitucional, ao concretizar um direito social prestacional, passar a ter força de norma constitucional, isto é, ocorre a constitucionalização do direto legal. A tese é rebatida ao argumento de que há possibilidade de um processo informal de modificação da Constituição por meio da ação do legislador, que teria como justificativa a evolução da própria Lei Maior;

  4. suposta maior força, e, portanto, maior proteção, que seria atribuída aos direitos sociais em detrimento dos direitos de liberdade. Contrapõe-se a afirmação com a constatação de que a Constituição brasileira não estabelece diferenciação substancial entre os direitos fundamentais sociais e os direitos de liberdade, conferindo a ambos a mesma proteção; e

  5. refere-se ao caráter relativo do princípio em face da realidade fática. A concretização legislativa dos direitos fundamentais sociais não pode dissociar-se da realidade. Assim, o princípio da proibição de retrocesso social não é absoluto, podendo ser, inclusive, objeto de ponderação. Dessa ponderação estará excluída, em regra, a possibilidade de integral supressão da regulamentação infraconstitucional de um direito fundamental social ou de uma garantia constitucional relacionada com a manutenção desse direito. Porém, para além desse núcleo essencial do princípio é admitida a alteração do grau de concretização legislativa.


3. Considerações Finais

Após uma brevíssima leitura doutrinária e jurisprudencial do princípio da proibição de retrocesso social, facilmente se constata a residência implícita dele no sistema jurídico-constitucional brasileiro. As objeções à existência e à aplicação do princípio devem ser rechaçadas pelos motivos já expostos.

Mas aqui, ao final, cabe alertar que, como princípio que é, a proibição de retrocesso social não é absoluta, sendo sempre passível de ponderação. Significa dizer que, em determinadas situações fáticas, será admissível que outros princípios venham a prevalecer sobre o princípio da proibição de retrocesso social, desde que observado o núcleo essencial dele, que veda ao legislador a supressão pura e simples da concretização de norma constitucional que permita a fruição, pelo indivíduo, de um direito fundamental social, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios.

Assim, ainda que exista espaço para a ponderação do princípio da proibição de retrocesso social, estará dela excluída, em regra, a possibilidade de integral supressão da regulamentação infraconstitucional de um direito social ou de uma garantia constitucional que esteja relacionada com a manutenção de um direito social. Todavia, para além desse núcleo essencial do princípio, pode-se admitir a alteração do grau de concretização legislativa da norma constitucional, isto é, a substituição da disciplina legal por outra, mantido, sempre, o núcleo essencial da norma.


4. Bibliografia

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Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 493. p.

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Sobre o autor
Narbal Antônio Mendonça Fileti

Juiz do Trabalho Titular na 12ª Região (SC). Especialista em Teoria e Análise Econômicas e em Dogmática Jurídica pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Professor do Curso de Graduação em Direito da UNISUL, do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da AMATRA 12 e da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC. Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC e da Escola Superior da Advocacia - OAB/SC. Membro Efetivo do Conselho Fiscal da ANAMATRA (2003-2005). Atual 1º Vice-Presidente da AMATRA 12 (SC). Autor da obra "A Fundamentalidade dos Direitos Sociais e o Princípio da Proibição de Retrocesso Social", Editora Conceito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILETI, Narbal Antônio Mendonça. O princípio da proibição de retrocesso social.: Breves considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12359. Acesso em: 22 dez. 2024.

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