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O precedente administrativo como fonte do direito material do contribuinte

23/02/2009 às 00:00
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"A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para a frente." (Soren Kierkegaard)

As experiências jurídicas dos órgãos judicantes, entre eles os órgãos de soluções administrativas no exercício regular de pacificar controvérsias, descortinam-se como celeiro inesgotável de atos decisórios. Desta feita, o núcleo de cada um destes pronunciamentos constitui, em princípio, o que a doutrina chama de precedente. O alcance deste somente pode ser depreendido aos poucos, depois de decisões posteriores. O precedente, então, nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar-se a regra de uma série de outros casos análogos.

Dependendo do sistema em que se engasta, a decisão, monocrática ou colegiada, é classificada em precedente vinculante (binding autority: sistema da common law) e precedente persuasivo, ou de fato, ou revestido de valor moral (persuasive autority: em regra, sistema de civil law). No precedente administrativo, entretanto, ocorre um fenômeno curioso. Quando o processo administrativo é julgado contra a Administração Pública, torna-se um precedente vinculante à administração, não podendo ser objeto de questionamento judicial por parte da Administração Pública. No entanto, se o processo administrativo é julgado à favor da administração, é passível que o contribuinte questione-o judicialmente, fazendo com que tal precedente administrativo seja considerando apenas persuasivo no próprio âmbito administrativo. Essa diferenciação é motivada pelo fato de que a própria Administração Pública seria originadora desses precedentes, ou seja, ela própria determina o desiderato do processo administrativo.

O precedente administrativo pode ser definido como a forma reiterada de aplicação de uma norma pela própria administração. O precedente administrativo não pode ser considerado como um costume já que obriga a si mesmo a atuar sempre de igual modo. A questão é se a adoção de um critério pela Administração Pública para um caso concreto vincula a esta para resolver casos semelhantes ou pode, ao contrário, apartar-se deste precedente. Quando a norma permite atuar em dois sentidos igualmente válidos, a discriminação singular a um administrado (contribuinte) poderia determinar a sua validez, com base no princípio da igualdade. Porém, a troca de critério, por si mesmo, não é determinante de invalidez.

Por essa razão, a opinião doutrinária corrente, sob esse aspecto, considera o precedente não como fonte de produção do direito, mas como fonte de conhecimento do conteúdo normativo da lei [01]. O precedente, na verdade, nas hipóteses de dúvida, presta-se a auxiliar o julgador no processo hermenêutico em busca da correta determinação do cânone legal aplicável ao caso concreto. Apresenta-se, assim, como uma particular carga de persuasão pelo simples fato de constituir indício de uma solução racional e socialmente adequada.

A finalidade deste incidente no âmbito do processo administrativo, suscitável por qualquer das partes litigantes, seja a Administração Pública ou o contribuinte, é a de provocar o prévio pronunciamento do órgão administrativo judicante sobre a interpretação de uma determinada norma jurídica, quando a seu respeito ocorrer divergência. Pela ótica da segurança jurídica, qualquer divergência de entendimento dentro de órgãos da Administração Pública passa a ter igualmente interesse público. Por essa razão, já se infere a prevalência da importância de se racionalizar os precedentes administrativos.

A repetição constante, racional e pacífica dos precedentes administrativos que, nesta hipótese, forma a jurisprudência administrativa, pode efetivamente adquirir valor de preceito geral. O precedente administrativo se constitui em valioso subsídio que auxilia a hermenêutica de casos concretos, sobretudo em processos tributários, embora careçam de força vinculante. É importante relevar, a tal propósito, a constante possibilidade de revisão da jurisprudência sedimentada não apenas por iniciativa dos órgãos administrativos judicantes, como o Conselho de Contribuintes, mas, igualmente, por provocação dos próprios contribuintes.

O labor dos órgãos julgadores administrativos, especialmente no âmbito tributário, apesar de despidos de potestas normandi (geração de normas de caráter geral e abstrato), produz rigor na realização efetiva do direito, valorações concretas as quais, uma vez reiteradas, ganham projeção, que acaba afetando de modo inexorável o próprio ordenamento jurídico [02]. Compreende-se, assim, que o equilíbrio entre a eficácia do precedente administrativo e a persuasão racional dos órgãos administrativos representa, sem dúvida, fator essencial para uma eficiente distribuição de justiça.

O precedente administrativo consolidado garante a igualdade dos contribuintes perante a distribuição da chamada justiça tributária, porque situações assemelhadas são tratadas do mesmo modo e a democracia participativa exige a paridade de trato entre os membros da comunhão social. Esse é um dos fundamentos de existência do próprio Conselho de Contribuintes.

A técnica de invocar precedentes, historicamente enraizado em vários países, tem o condão de aumentar a previsibilidade das decisões e, portanto, aumentar a segurança jurídica dos negócios eventualmente entabulados. Por essa razão, a eficiência dos julgamentos administrativos, bem como a constância de seus precedentes em relação à determinadas matérias de natureza tributária, trazem significativos reflexos no contexto econômico [03]. Ao assegurar certa estabilidade, a observância do precedente administrativo-tributário contribui a um só tempo para a certeza jurídica e para a proteção da credibilidade da tomada de decisão da própria Administração Pública e dos contribuintes.

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A decisão administrativa consolidada garante a certeza e a previsibilidade do direito e, portanto, evita posteriores oscilações e discussões no que se refere à interpretação da lei. Os cidadãos, sobretudo aqueles que se utilizam do direito tributário para planejar o seus negócios, baseiam as suas opções não apenas em textos legais vigentes, mas, também, na tendência dos precedentes, que proporcionam àqueles, na medida do possível, o conhecimento de seus respectivos direitos.

Por conseguinte, a uniformidade do precedente administrativo-tributário passa a integrar o cálculo de natureza econômica, sendo a previsibilidade que daquela decorre um pressuposto inafastável para o seguro desenvolvimento no âmbito jurídico-comercial, ou seja, uma mudança abrupta e não suficientemente justificada da orientação da jurisprudência administrativo-tributária solaparia a estabilidade de muitos negócios.

Verifica-se, afinal, que a evolução dos precedentes administrativos sobre importantes questões socioeconômicas, sobretudo no âmbito tributário, acabou tornando imperiosa a regulamentação para a uniformização de procedimentos administrativo-tributários, que passam a ser o início de uma uniformização dos precedentes administrativos como fonte do direito material do contribuinte.

Não obstante, em que pese ser a uniformização de procedimentos administrativo-tributários uma premissa na nova estrutura do Fisco Federal, principalmente em face da Lei n.º 11.457, de 16 de março de 2007, que cria a Receita Federal do Brasil, torna-se evidente que tal uniformização vai passar por várias rupturas em face do choque iminente que haverá na uniformização dos precedentes do Conselho de Contribuintes, eis que existem uma gama de decisões que são conflitantes entre o Conselho de Contribuintes e o Conselho de Recursos da Previdência Social, os quais passam a ser um só órgão. Por essa razão, sendo o precedente algo tão valioso e importante no âmbito administrativo, principalmente em razão de seu caráter vinculante à própria Administração Pública, é imperioso notar que a criação e implementação da Receita Federal do Brasil passará por um processo penoso, fazendo com que os precedentes administrativos no âmbito tributário federal estejam à mercê de grandes incertezas e inseguranças, conforme já ocorre no cotidiano do Conselho de Contribuintes.


Referência Bibliográfica

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação. São Paulo: Editora Landy, 2001.

ANZON, Adele. Il valore del precedente nel giudizio sulle leggi. Milano: Giuffrè, 1995.

MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 2003.

VILAS, Ramón López. La jurisprudencia y su función complementaria del ordenamiento jurídico. Madrid: Civitas, 2002.


Notas

  1. . ANZON, Adele. Il valore del precedente nel giudizio sulle leggi. Milano: Giuffrè, 1995, p. 121-122.
  2. . VILAS, Ramón López. La jurisprudencia y su función complementaria del ordenamiento jurídico. Madrid: Civitas, 2002, p. 19.
  3. . ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação. São Paulo: Editora Landy, 2001, p. 260.
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Sobre o autor
Daniel Cavalcante Silva

Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Experiência na área de Direito Tributário e Educacional, com ênfase na área de advocacia empresarial. Membro da Associação Internacional de Jovens Advogados. Vários artigos publicados no país e no exterior. Autor do Livro “O Direito do Advogado em 3D” e "Compliance como boa prática de gestão no ensino superior privado". Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas intitulado: Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC). Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Professor de Direito Tributário. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado como um dos “dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012 e 2015”. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Daniel Cavalcante. O precedente administrativo como fonte do direito material do contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2063, 23 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12371. Acesso em: 1 mai. 2024.

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