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Sobre o momento de consumação do crime de aborto consentido pela gestante.

Comentando o artigo "Brincando com a soberania alheia"

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Palavras Chave: aborto, consentimento, tentativa, crime, material, teoria monista, atos preparatórios.

Assistindo a empolgante aula ministrada pelo ilustre professor Mohamad Ale Hasan Mahmoud em curso de especialização latu sensu em direito penal e processo penal, em Brasília, deparamo-nos com a seguinte colocação do renomado docente: a figura típica da segunda parte do artigo 124 do Código Penal é crime de perigo abstrato, que se consuma quando a gestante dá seu consentimento para a prática daquele que comete o crime do artigo 126 do estatuto repressivo.

O exercício do pensamento que resultou nesta posição foi transcrito em artigo publicado pelo eminente Professor, onde sustenta a tipicidade da conduta daquelas gestantes que esperavam em fila o embarque para o navio da ONG Holandesa Women on Waves com o escopo de realizar procedimento abortivo em águas além das 12 milhas náuticas do território brasileiro, porque além deste limite territorial o Brasil não mais possui soberania absoluta segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, aplicando-se assim a lei da bandeira do país de origem da embarcação. Como na Holanda a conduta de aborto não é criminosa, a conduta das gestantes não seria típica, ilícita e culpável. Naquela situação, estaria, inclusive, segundo o Professor, autorizada a prisão em flagrante delito [01].

Embora sejam bem construídos os argumentos que sustentam o posicionamento do ilustre Professor, discordamos, respeitosamente, de tal linha de pensamento.

De início, cumpre dizer que o crime de aborto é delito material que se consuma com o perecimento do produto da gravidez. A morte do feto é exigida em todos os tipos penais, quando a gestante comete o aborto em si mesma, ingerindo, por exemplo, o medicamento Citotec e causando a morte do feto; também quando terceiro provoca o aborto sem o consentimento da gestante, como o homem casado que, utilizando-se de fraude, dá suco misturado com o mesmo Citotec à amante grávida, causando a morte do feto; ou mesmo quando o terceiro realiza o aborto com o consentimento da gestante, figura prevista no artigo 126 do Código Penal que ocorre quando, por exemplo, a grávida entra em acordo com médico e este realiza o aborto. O presente artigo trata da última conduta, haja vista que intrinsecamente ligada à segunda parte do artigo 124 do Código Penal.

A natureza de crime material de todas estas condutas pode ser extraída inclusive de interpretação lógica da norma penal, haja vista que o nomem iuris dos tipos é aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento no 124 e aborto provocado por terceiro para os artigos 125 e 126 do Código Penal, ficando clara a necessidade do resultado naturalístico morte do feto.

Como é de conhecimento notório, determina o artigo 29 do Código Penal que quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. O texto legal, alterado pela reforma de 1984, alterou o nomem iuris do referido artigo de co-autoria para concurso de pessoas, permitindo uma maior independência da participação criminosa que outrora era sufragada pela própria norma legal.

Pois bem, referido artigo encerra no ordenamento jurídico penal a idéia da teoria monista do crime ou teoria monística da ação, segundo a qual, diante de um resultado no mundo dos fatos que encontra perfeito enquadramento na norma penal, todos aqueles que concorreram para o resultado respondem pelo crime, na forma de co-autoria ou participação.

Em que pese ser esta a regra geral do direito penal brasileiro, há nítida exceção para os crimes de aborto consentido. É que a conduta de consentir prevista na segunda parte do artigo 124 do Código Penal excepciona a regra da teoria monística da ação, haja vista que sua realização implica obrigatoriamente na existência simultânea da conduta do artigo 126, ou seja, enquanto a grávida consente para a realização do aborto é obrigatória a existência de um terceiro que venha a realizar o aborto com este consentimento. Assim, gestante e agente do aborto cometem respectivamente os crimes dos artigos 124 e 126 do Código Penal, excetuando-se a regra do artigo 29 do Código Penal.

Desta forma, aquele crime depende deste em concurso necessário. A união de ambos é que forma a conduta do aborto com o consentimento da gestante.

Segundo Cezar Roberto Bitencourt "essa exceção à teoria monística, no crime de aborto consensual, fundamenta-se no desnível do grau de reprovabilidade que a conduta da gestante que consente no aborto apresenta em relação à daquele que efetivamente pratica o aborto consentido. Com efeito, a censura da conduta da gestante que consente, na ótica do legislador, é consideravelmente inferior à conduta do terceiro que realiza as manobras abortivas consentidas. O desvalor do consentimento da gestante é menor que o desvalor da ação abortiva do terceiro que, concretamente, age, isto é, realiza a atividade de realizar o aborto. Consentir merece determinado grau de censura, ao passo que executar a conduta consentida, definida como crime de aborto, recebe uma censurabilidade bem mais elevada, pois implica a comissão do aborto criminalizado: a conduta da primeira assemelha-se à conivência, embora não possa ser adjetivada de omissiva, enquanto a do segundo é comissiva.

Convém destacar que o aborto consentido (art. 124, 2ª figura) e o aborto consensual (art. 126) são crimes de concurso necessário, pois exigem a participação de duas pessoas, a gestante e o terceiro realizador do aborto, e, a despeito da necessária participação de duas pessoas, cada um responde, excepcionalmente, por um crime distinto" [02].

De outro lado, sob a ótica da cadeia de eventos que antecedem a morte do feto, também se infere que a consumação do crime previsto na segunda parte do artigo 124 não depende somente do consentimento tácito ou expresso da gestante, mas deste consentimento no momento da realização do aborto por aquele que está a cometer o crime do artigo 126. Os atos perpetrados pela gestante que antecedessem aquela conduta, seriam, em nosso entender, tão somente preparatórios para o consentimento do aborto, impuníveis diante do nosso Código Penal.

Essa conclusão se torna inarredável quando analisamos o conatus, ou, mais de perto, a intersecção entre os atos preparatórios e os atos de consumação do delito de aborto. Suponhamos, para outro crime, a seguinte situação: "A", munido de uma faca, pula na frente de "B" e movimentando o objeto pérfuro cortante da esquerda para a direita passa a fazer uma espécie de coreografia de ataque, anunciado aos berros: " – vou te matar, vou te furar". Não chega a atacar, mas continua com a faca apontada em direção à suposta vítima anunciando sua intenção. Neste momento, a polícia chega e o prende em fragrante. Responderá "A" por tentativa de homicídio? A resposta é negativa, pois não chegou a dar início à realização do tipo penal, ou, melhor dizendo, não começou a atacar o bem jurídico vida, protegido no homicídio. Poderá, obviamente, responder por outro tipo penal, como a ameaça do artigo 147 do Código Penal.

Anota o mestre Aníbal Bruno que "o ataque ao bem jurídico para constituir movimento executivo de um crime tem de dirigir-se no sentido da realização de um tipo penal. O problema da determinação do início da fase executiva há de resolver-se em relação a cada tipo de crime, tomando-se em consideração sobretudo a expressão que a lei emprega para designar a ação típica. É em referência ao tipo penal considerado que se pode decidir se estamos diante da simples preparação ou já da execução iniciada" [03].

Imaginemos agora o seguinte evento no mundo dos fatos: "A", linda jovem de tenros 18 anos de idade, toma ciência de que está grávida de seu namorado. Chama então o jovem para um lanche no shopping e, sentados na praça de alimentação, o comunica do fato. Imediatamente ouve a seguinte proposta: – esse filho vai estragar nossa vida, nossos pais vão nos matar! Vamos tirar? "A" responde imediatamente: - sim, vamos. Não há dúvida que entendida a segunda parte do artigo 124 como crime de perigo abstrato restaria consumada a conduta do consentir, o que não nos parece razoável, até porque, como já dissemos, o crime é material e depende do resultado naturalístico extinção do produto da gravidez. Neste sentir, como estamos diante de concurso necessário entre os tipos do artigo 124 e 126, admitir a consumação do crime naquela situação seria tornar impunível a conduta do namorado, cuja reprovabilidade social foi mais elevada do que a da gestante.

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Diante destas colocações, vê-se que a gestante que se coloca na fila à espera de pequena embarcação que a levará ao navio da ONG Women on Waves, infelizmente, não pode ser punida no Brasil, porque não está a realizar a conduta típica do consentir, mas tão somente realizando os atos preparatórios para, fora das águas alcançadas pela soberania penal brasileira, consentir na realização da conduta prevista no artigo 126 do Código Penal, dando seu consentimento.

Ademais, cumpre ainda lembrar a redação do artigo 31 do Código Penal que apenas reforça essa afirmação: "O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado". A presente disposição legal deve ser analisada em conjunto com o conceito de tentativa fornecido pela redação do artigo 14, inciso II do Código Penal "diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente". A exegese de ambos os artigos à luz das condutas previstas para o aborto, leva o operador do direito a entender que os atos executórios do crime de aborto só têm início com o ataque ao bem jurídico vida intra-uterina. O que vier antes serão atos impuníveis, de cogitação ou preparação.

Voltando ao exemplo da jovem grávida e seu namorado, e apenas para reforçar que aquele ato não saiu da fase de cogitação ou preparação, suponhamos que a conversa tenha ficado apenas no shopping, sem que o casal tenha voltado a cogitar o aborto. Ao ver sua barriga crescer e sentir os singulares sintomas da vida dentro de seu ventre, a jovem se encanta com o fato de estar gerando a vida, e passa a amar de todo seu coração seu futuro filho, sepultando qualquer idéia de abortar. Não seria razoável entender cometido o crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, que é o título do crime do artigo 124, até porque não ocorreu aborto ou sequer sua tentativa.

Como último argumento, vale ainda a lembrança do conteúdo do artigo 15 do Código Penal: "o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados" que insere em nosso ordenamento jurídico as figuras do arrependimento eficaz e da desistência voluntária. É o que comumente a doutrina chama de hipóteses de tentativa abandonada.

Considerando a materialidade da conduta prevista no artigo 124 do Código Penal, externada pelo próprio nomem iuris daquele tipo, é de se aceitar o cabimento de tais institutos, quando na sala do terceiro contratado para a realização do aborto, após este inserir no canal vaginal da gestante o instrumento para realizar a sucção do produto da gravidez, esta determina que o terceiro interrompa sua conduta, pois não mais deseja alcançar o resultado previsto na norma; ou a gestante que após ingerir por sua conta e risco os comprimidos de citotec, esgotando os atos executórios necessários à realização da conduta, procura médico para evitar o resultado, no que obtém êxito. Nessas hipóteses, deveria a gestante responder até o limite dos atos por ela praticados e não pelo crime consumado.

A materialidade dos tipos que implica no cabimento da tentativa e dos institutos do artigo 15 do Código Penal é também externada na obra coordenada por Alberto Silva Franco e Rui Stoco, senão vejamos as anotações de Márcio Bártoli e André Panzeri: "consuma-se o crime, em todas as suas modalidades, com a interrupção da gravidez e o perecimento do feto. A morte do feto é a finalização do crime. O que deve ficar cumpridamente provado no processo é a clara existência de um nexo de causalidade entre a ação abortiva praticada e o resultado morte.

Como crime material, o aborto, em todas as suas modalidades, admite a tentativa. As condutas ilícitas podem ser fracionadas em atos" [04].

Diante desta linha de argumentação, não partilhamos da posição doutrinária do referido artigo, entendendo como materiais ambas as condutas previstas no artigo 124 do Código Penal, estando sua consumação ligada ao extermínio da vida do produto da gestação. No provocar aborto em si mesma, o crime se esgota em sua própria forma e é realizado somente pela gestante; já na segunda figura, quando a gestante consente que outrem lho provoque o crime estará consumado quando o terceiro, que está a realizar a conduta prevista no artigo 126 de provocar aborto com o consentimento da gestante, consegue a morte do feto. Ambos os casos admitem a tentativa.


Nota

  1. Mohamad Ale Hasan Mahmoud. Brincando com a Soberania Alheia. Boletim IBCCRIM, Ano 12, n.ª 141, Agosto 2004, p. 10.
  2. Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal, Parte Especial, Vol. 2. 7ª ed. São Paulo: 2007. Saraiva. p. 135.
  3. Aníbal Bruno. Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1967, vol. 2, p. 234.
  4. Código Penal e sua Interpretação: Doutrina e Jurisprudência. Coordenação Alberto Silva Franco, Rui Stoco. 8ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 667
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Sobre o autor
Antonio Alberto do Vale Cerqueira

Advogado criminalista e empresarial; professor universitário de Direito penal e Processo Penal;especialista em direito penal e processo penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CERQUEIRA, Antonio Alberto Vale. Sobre o momento de consumação do crime de aborto consentido pela gestante.: Comentando o artigo "Brincando com a soberania alheia". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2070, 2 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12391. Acesso em: 19 abr. 2024.

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