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O contrato de trabalho do século XXI e o esquecido princípio da fraternidade

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7. PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE. BREVES APONTAMENTOS

A reestruturação do contrato de trabalho, conforme se colocou, inicia-se pela via interpretativa, com um novo olhar sobre os elementos fático-jurídicos configuradores do vínculo de emprego. Essa nova abordagem, contudo, somente será capaz de modificar a realidade social, não constituindo apenas mais um argumento ideológico, se for norteada pelo esquecido princípio da fraternidade.

É com essa idéia que se tenta colaborar com o "renascer da esperança (...). Esperança de conseguir recompor os agentes de transformação social num amplo bloco de solidariedade. Esperança fundada no agir, no nosso próprio fazer que se fazendo se completa com tantos outros fazeres. O fazer que soma" [45].

O valor da fraternidade foi proclamado pela Revolução Francesa, juntamente com os valores da liberdade e da igualdade. No desenrolar da história, estes dois últimos transformaram-se em relevantes valores jurídicos, declarados de forma explícita em muitas constituições modernas. E o que teria acontecido com o valor da fraternidade, cuja bandeira também se levantou? Seria possível falar de fraternidade como dever jurídico?

Fausto Goria, professor de direito romano da Universidade de Turim, nos responde:

Os juristas romanos evocavam uma espécie de parentesco que liga todos os homens para justificar a proibição de armar ciladas aos outros (...) No entanto, eles não ligavam a isso obrigações de conteúdo positivo. Nos nossos dias, para dar ao quesito uma resposta afirmativa, poderíamos nos referir ao artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1º de dezembro de 1948 [46].

De fato, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1789, base das constituições de vários países do mundo, inclusive do nosso, assim dispõe em seu artigo primeiro:

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São todas dotadas de razão e de consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Vicenzo Buonuomo [47] bem explica que, percorrendo a Declaração Universal, em especial o artigo 29, é possível encontrar uma real indicação dos efeitos da fraternidade, que acompanham a dimensão individual de sua posse e o efetivo exercício dos Direitos Humanos com uma dimensão comunitária: "cada indivíduo tem deveres para com a comunidade, único lugar onde é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade".

A esse respeito, preleciona Daniel Sarmento [48] que a perspectiva de que caberia a cada indivíduo perseguir egoisticamente os seus interesses privados, o que produziria como somatório geral o bem comum, gerou o esgarçamento dos laços sociais e provocou o sentimento geral de vazio existencial, "do indivíduo ‘sozinho na multidão’, ingredientes desta náusea, deste mal-estar na Modernidade que assola as sociedades capitalistas ocidentais". E como resposta a esse quadro social pós-moderno, apresenta o renomado professor uma saída mais moderna, que é o resgate e o aprofundamento, a partir de uma perspectiva racional e republicana de um dos pilares do ideário moderno: "a solidariedade, ou fraternidade, tal como enunciada no lema dos revolucionários, parteiros da Modernidade" [49]

Retomando o caminho percorrido pela humanidade, constata-se que, a partir da proclamação da Declaração Universal, documento de transcendental importância na defesa dos direitos humanos, a sociedade iniciou a luta pela efetivação da trilogia da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

No século seguinte à intuição da Declaração Universal, priorizou-se a liberdade, o que culminou com a afirmação do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa, determinante para a clássica concepção dos direitos fundamentais intitulados de primeira dimensão ou geração. Essa fase foi marcada pela firmação dos direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, proclamando-se a não-intervenção estatal. Apresentam-se direitos de cunho negativo, porquanto dirigidos a uma abstenção e não a uma ação positiva do Estado [50].

O direito à liberdade, no entanto, não engloba só a liberdade física – traduzida no direito de ir, vir e permanecer – mas também várias outras modalidades, com outros significados, como a liberdade de pensamento, de expressão, de crença, de informação, de credo, de associação.

Ainda que o direito à liberdade tenha se consolidado no desenrolar do século XIX, percebe-se que, para ser de fato livre, é indispensável que o homem se encontre também livre da miséria, do analfabetismo, do subemprego, da subalimentação, da submoradia, mazelas próprias do capitalismo desumano, explorador da força de trabalho, a que foram conduzidos os homens pelo individualismo dos séculos anteriores.

Assim, o combate pela liberdade continua tanto para conservar as já conquistadas, mas principalmente para assegurar a verdadeira liberdade a todos os povos.

No século passado, em uma tentativa de alcançar a real liberdade, exaltou-se a igualdade. Movimentos surgiram pela luta da igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros, formando-se todo um ideário contra a discriminação por raça, sexo, cor, origem, credo, o que levou à obtenção do reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado uma ação positiva na realização de justiça social.

Porém, conforme lembra a professora Léa Elisa Silingowschi Callil [51]

Não se pode olvidar que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente, os desiguais. Perpetua-se idêntica injustiça diferenciar indivíduos, v. g., por sua cor de pele, como dar tratamento uniforme a pessoas que tem, de fato, motivos para serem tratadas de modo diferenciado (ninguém se sente discriminado pela lei que obriga atendimento preferencial a idosos, grávidas ou portadores de deficiência).

A liberdade neste estágio do desenvolvimento não é mais perante o Estado, mas por intermédio do Estado, que deve agir assegurando a igualdade e liberdade dos indivíduos. Têm-se os denominados direitos de segunda geração, os direitos sociais, que se caracterizam por outorgarem aos homens direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde educação, trabalho, direitos fundamentais dos trabalhadores (férias, repouso semanal remunerado, salário mínimo, limitação da jornada de trabalho). Saliente-se, contudo, que a exemplo da fase anterior, também os direitos sociais se reportam à pessoa individual [52].

E tal como pela liberdade, permanece constante a luta pela manutenção da igualdade.

Agora, neste século, tem-se a defesa prioritária da fraternidade.

A dignidade do homem não deve ser considerada apenas em uma perspectiva individualista, estática e de mão única, mas dinâmica, visando à realização da pessoa em comunidade, a sua participação com outras pessoas, num contexto relacional.

À luz do pensamento de Hasso Hofmann e de Peter Häberle, informa Sarlet [53] que a dignidade deve ser compreendida sob a perspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma categoria da co-humanidade de cada indivíduo, de tal forma que a consideração e reconhecimento recíproco da dignidade no âmbito da comunidade pode ser definida como uma espécie de ponte-dogmática, ligando os indivíduos entre si.

A fraternidade que se pretende difundir exprime igualdade de dignidade em todos os homens:

Faz-se preemente que a solidariedade [54] norteie as ações de governantes, empresários e das pessoas em geral. Neste novo século o foco da proteção dos direitos deve sair do âmbito individual e dirigir-se, definitivamente, ao coletivo. São direitos inerentes à pessoa humana; não considerada em si, mas como coletividade; o direito ao meio-ambiente, à segurança, à moradia, ao desenvolvimento. É necessário que tomemos consciência de que nossos direitos apenas nos serão assegurados de fato, quando estes forem também garantidos para todos os demais. Enfim, é o momento de se realizar o bem comum [55].

Em idêntico sentido, coloca a professora Gabriela Delgado Neves, com apoio em Jussara Maria Moreno Jacintho, ao precisar o conceito de dignidade da pessoa humana:

Inobstante esse seu atributo individual, não há como negar à dignidade da pessoa também uma natureza comunitariamente elaborada. Desse modo, ao tempo em que é individual, peculiar a cada um de nós, pode-se falar também em uma dignidade conjunta, social, justamente em razão de sermos todos iguais em dignidade em direitos, o que fatalmente nos obriga a exercer o direito à dignidade de forma inter-relacional, respeitando-nos na medida em que a igualdade torna-nos todos titulares de um mesmo direito. Não foi outro o entendimento preconizado pela Declaração de Direitos Universal de 1949. [56]

Em uma interessante abordagem, Salvador Morillas Gómez [57] concluiu que cada norma jurídica, ao impedir a lesão dos direitos alheios, contém, em si, o princípio da fraternidade e lista algumas normas que vão além do neminem laedre e impõem os direitos jurídicos, cuja observância tutela os sujeitos relacionados: princípio da boa-fé (dever de manter comportamentos corretos e leais nas relações, para além do estipulado pelas partes); proibição do abuso do direito (coíbe o exercício do direito anti-social); proibição de fraudar a lei (a empresa que considera algo como benefício para sua gestão, mas na realidade omite a finalidade de obter um benefício próprio, encobre a lesão dos direitos alheios – terceirização trabalhista). Especialmente nas relações de trabalho, ressalta o autor que prevalece a exigência de tutelar a parte mais fraca, em caso de conflito (princípios in dúbio pro operário, da norma mais favorável, da condição mais favorável e da indisponibilidade dos direitos, entre outros) e no trato entre o empregado e o empregador, torna-se evidente a fraternidade diante da obrigação mútua de cumprir os próprios deveres dentro dos princípios da boa-fé e da diligência, sendo que esses deveres ampliam-se nas relações entre os colegas de trabalho e, ainda, com a hierarquia da empresa.

Contudo, é certo, não se pode sustentar que a fraternidade seja o ponto focal das estruturas empresariais e do modo de sua atuação. Mas, será que não seria possível percorrer esse caminho?

Amy Uelmen, com amparo em Uma teoria de justiça de John Rawls, apresenta uma proposta:

Ralws vê o princípio da diferença como um modo para ir além do mero sentimento e poder dar à fraternidade um espaço maior e universal nas teorias de justiça. Explica: "família, na sua concepção ideal e, muitas vezes, na prática, é um dos locais no qual o princípio de maximizar a soma das vantagens é rejeitado. Em geral, os membros de uma família não desejam ter alguma vantagem, a não ser que com isso promovam os interesses dos membros restantes.

Se levarmos isso em consideração, como conceito fundamental, poderá ter impacto profundo no modo de olhar para o Direito societário [58].

É importante deixar claro que não se está aqui a defender a imposição do dever legal de cada indivíduo ser fraterno, até porque não há como atuar objetivamente no campo afetivo do ser humano; apenas se pretende que cada indivíduo se comporte como se o fosse ou o sentisse.

Sob esse enfoque, Maria Celina Bodin de Moraes [59] cita como exemplo de atitude fraterna nas relações de trabalho a concessão da gratificação natalina. Por um bom tempo, o patrão bondoso, generoso, solidário, voluntariamente concedia a seus empregados, além do salário, uma quantia a mais às vésperas do Natal. Com o passar do tempo, o legislador entendeu que não se deveria ir contra esse comportamento fraterno e, mais, ele deveria ser estendido a todos os empregados do país, instituindo, por lei, o pagamento do conhecido 13º salário. Isto é, tornou-se impositiva a atitude fraterna de o patrão agraciar seus empregados nas vésperas das festas natalícias, ainda que não mais exista esse sentimento ou desejo.

Nesse encadeamento de idéias, o empregador que proclama aos quatro cantos a sua liberdade de contratar, de terceirizar ou sublocar a força de trabalho humana, que invoca a igualdade de condições com empresários do mundo inteiro e, por intermédio dessa suposta igualdade, consegue o direito de reduzir custos sacrificando o valor-trabalho, deve também se lembrar da fraternidade que o coíbe de possuir, em seu estabelecimento, trabalhadores em idênticas condições, mas auferindo diferentes salários, simplesmente porque alguns deles são "terceirizados". É o princípio da fraternidade que também o lembrará de conferir tratamento digno a todos os seres humanos, sejam eles seus companheiros de negócio, sejam eles seus empregados. Será, pois, a fraternidade que fixará o ponto de harmonia entre a liberdade e a igualdade, uma vez que constitui um dos objetivos deste Estado Democrático de Direito [60].

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Assim, o que se propõe é que a fraternidade, elevada ao status de princípio constitucional, deve nortear não só o legislador, mas de forma decisiva também o operador do direito, na solução judicial de conflitos trabalhistas.

Aqui, alguém pensará, trata-se de uma utopia?

Certamente que não, mas se a resposta é negativa ou positiva nada importa, afinal, o que seria desse mundo e dos homens sem a utopia, que é a força que impulsiona a luta, o desbravar de novos caminhos, a criação de novas regras de convivência social. A liberdade e a igualdade também não foram, um dia, grande utopia?

Aliás, João Baptista Herkenhoff [61], militante de Direitos Humanos no Brasil, diz que é justamente "esta concepção de ‘utopia como motor propulsor do Direito’" o que tem aguçado a sua reflexão nos últimos tempos.

Retomando a trilha, cabe lembrar, ainda, que o princípio da fraternidade atua também promovendo a efetividade jurisdicional e, nesse aspecto, ele já é uma realidade jurídica; não utopia, pois.

Em recente mesa-redonda, cujo tema foi Desafios e Possibilidades para a Efetividade da Jurisdição Trabalhista, a terceira do 5º Curso de Formação Inicial da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), Mônica Sette Lopes relatou várias experiências práticas para combater a litigiosidade "com inteligência". Para ela, é importante ressaltar a força que um juiz tem quando é sereno nas audiências, evitando acirrar ainda mais os conflitos e promovendo conciliações. Outro ponto por ela lembrado foi a cordialidade com os advogados [62]. Ora, trata-se da prática da fraternidade, promovendo a dignidade humana de todos, não só do empregado, mas também do empregador, dos advogados e da própria Justiça, que, assim, apresenta-se célere e eficaz na entrega da prestação jurisdicional.

Outro exemplo da atuação da fraternidade a promover a dignidade da pessoa humana é a proposta das professoras Miracy Gustin e Sielen Caldas: "a ênfase dos cursos de Direito deveria ser, pois, aquela voltada para o campo dos direitos humanos e da realização da cidadania [63]".

Elas justificam:

Já não bastam, portanto, instituições de ensino superior com estruturas modernizadas (ou supostamente modernizadas) que desconheçam as novas condições de aprendizagem de inserção nas culturas local, nacional e globalizada. Os cursos deverão se preocupar com indivíduos emancipados que sejam capazes de construir suas carreiras em sintonia com as demandas e opções sociais e possuir habilidades suficientes para adequar seu conhecimento às características da sociedade, aos grupos profissionais e aos novos tipos de organizações e movimentos sociais, que se transformam incessantemente. Entendidas como trajetórias sociais, essas carreiras deverão pressupor, portanto, o re-pensamento e a reinvenção do mundo e dos processos de deliberação democrática [64].

Esse modelo de ensino favorece os alunos, que têm a oportunidade de conhecer e melhor se preparar para atender a demanda que os esperam após o jubilamento, e também os professores e, ainda, toda a sociedade, principalmente os excluídos sociais que poderão contar com a incessante atuação de pessoas preparadas para lidar com as suas necessidades, promovendo a participação delas na riqueza social. É a vida em "elevadas condições de dignidade [65]".

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Sobre a autora
Andréa Aparecida Lopes Cançado

mestranda em direito do trabalho pela PUC-MInas, especialista em direito do trabalho pelo CAD, assistente de desembargador do TRT da 3a. Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CANÇADO, Andréa Aparecida Lopes. O contrato de trabalho do século XXI e o esquecido princípio da fraternidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2083, 15 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12462. Acesso em: 20 mai. 2024.

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