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Os limites constitucionais do poder-dever de fiscalização e o uso de força pública

21/03/2009 às 00:00

Resumo:


  • O artigo 200 do Código Tributário Nacional permite que as autoridades fiscais solicitem o auxílio de forças públicas em caso de embaraço ou desacato durante a fiscalização, ou para efetivação de medidas previstas na legislação tributária.

  • Essa medida deve ser utilizada com parcimônia e respeitando as garantias constitucionais, como a inviolabilidade do domicílio e a presunção de inocência, para não caracterizar abuso de autoridade ou violação da imagem do contribuinte.

  • O uso desproporcional de força policial na fiscalização, sem a ocorrência de embaraço ou desacato, pode resultar em indenizações por danos morais e materiais ao contribuinte prejudicado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A relação entre fisco e contribuinte, no que tange à fiscalização que o primeiro pode e deve exercer sobre o segundo, vem explanada, sucintamente, nos artigos 194 a 200 do Código Tributário Nacional (CTN), sendo este último o alvo da presente análise.

Foi dito sucintamente porque os supracitados dispositivos legais não resolvem, por si sós, todos os conflitos de interesse decorrentes dessa relação entre as partes em menção quanto ao direito de fiscalizar inerente ao Estado.

Alguns Estados, como São Paulo (Lei Complementar n. 939/03) e Paraná (Lei Complementar n. 107/05), por exemplo, já legislaram em busca de dirimirem muitos desses conflitos, criando seus Códigos de Defesa do Contribuinte.

Isso se dá em razão de ainda não existir, em nível nacional, uma legislação que norteie a relação fisco – contribuinte, a qual possa tratar de assuntos diversos, dentre os quais os limites da atividade de fiscalização, evitando dubiedade de entendimentos e coibindo abusos, quer do contribuinte, quer do fisco.

Em um procedimento de fiscalização devem ser observadas certas regras por ambas as partes, ou seja, pelo agente fiscalizador e pelo empresário fiscalizado.

O direito de fiscalizar nasce do direito do Estado a receber corretamente os valores relativos às exações criadas pelo ordenamento jurídico para custear os investimentos que o mesmo deve realizar em prol da sociedade na consecução de sua finalidade, qual seja, a de gestão pública.

Assim, em respeito à primazia do interesse público sobre o privado, não cabe ao particular se opor à fiscalização, desde que essa seja conduzida de forma lícita e regular.

Todavia, não pode o fisco se valer de tal poder ao ponto de extrapolar o limite daquilo que se entende por fiscalização. O abuso de poder e de autoridade, hábeis a causar dano à pessoa fiscalizada, seja material ou moral, retira o caráter de licitude de tal procedimento, devendo ser combatido e cabendo, por assim proceder, indenização a quem for lesado.

Nota-se, portanto, que o procedimento do fisco, por meio de seu agente competente, se feito dentro de parâmetros legais, estará cumprindo o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, visando à arrecadação dos tributos legalmente instituídos. Porém, se realizado de forma abusiva, acaba por ferir os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, dentre outros.

Como exemplo, tem-se a situação do empresário que se vê massacrado por uma fiscalização ilícita e abusiva, onde a atuação da autoridade fiscal, a pretexto de cumprir com seu mister, procede de forma vexatória para o contribuinte, fazendo uso descomedido da força pública, com a utilização de policiais que ficam em frente ao estabelecimento fiscalizado, causando grande alarde entre os que avistam aquela cena, proporcionando um vexame público para o sujeito passivo da relação juríco-tributária e até mesmo impedindo a livre circulação de pessoas e bens no local (estabelecimento comercial do fiscalizado), prejudicando a atividade mercantil de quem está sendo submetido a tal procedimento.

Assim, uma vez que o artigo 200 do Código Tributário Nacional concede permissão às autoridades administrativas para requisitarem o auxílio das forças públicas para cumprir seu dever, desde que tenham sofrido embaraços ou desacato, é preciso distinguir duas situações: aquelas em que a própria autoridade administrativa pode requerer o auxílio da força pública e aquelas em que somente por autorização judicial poderá se valer de tal auxílio, evitando-se, dessa forma, que o referido dispositivo legal descumpra garantias constitucionais como a inviolabilidade do domicílio (incluindo-se o estabelecimento comercial nesse conceito de domicílio), a inviolabilidade de correspondências, comunicações telegráficas e telefônicas e de quaisquer dados.

Nesse sentido, Hugo de Brito Machado assevera:

"Tais garantias constitucionais impõem limitações ao alcance do art. 200 do Código Tributário Nacional, que há de ser então interpretado de conformidade com a Constituição. Assim, a autorização de requisição da força pública diretamente pela autoridade administrativa fica restrita às hipóteses na quais o mesmo pode ser validamente aplicado. (...)

Nos casos em que o uso da força pública possa estar em conflito com as garantias constitucionais do contribuinte deve este ser objeto de prévia autorização judicial, (..)". [01]

Da mesma forma se posicionou Leandro Paulsen, in verbis:

"O STF tem entendido que, inobstante a prerrogativa do Fisco de solicitar e analisar documentos, os agentes fiscais só podem ingressar em escritório de empresa quando autorizados (pelo proprietário, gerente ou preposto). Em caso de recusa, não podem os agentes simplesmente requerer auxílio de força policial, eis que, forte na garantia da inviolabilidade do domicílio, oponível também ao Fisco, a medida dependerá de autorização judicial". [02]

E Luciano Amaro traz a seguinte lição acerca do dispositivo em comento:

"É óbvio que, também aqui,é preciso cautela para evitar eventuais abusos de autoridade. Como assinala Miguel João Ferreira de Quadros, é compreensível que a autoridade requisite força policial para efetivação de certos atos (por exemplo, bloqueio de estrada para verificação de mercadorias em trânsito), ou em casos de desacato, mas isso não tem sentido quando se trate de puro e simples embaraço à fiscalização, através, por exemplo, da sonegação de livros e documentos". [03]

Pela análise das lições acima já é possível delinear o alcance da regra insculpida no artigo 200, afinal, se a simples não autorização para os fiscais averiguarem os livros contábeis, por exemplo, não é motivo para requisitar auxílio de força policial, por razões óbvias tal requisição de auxílio também não será válida se não houver sequer a indigitada recusa.

Nesse passo, utilizar-se de força policial, impedindo a entrada e saída de bens e pessoas no estabelecimento fiscalizado, prejudicando a imagem do local perante o público, sem ter havido qualquer recusa, embaraço ou desacato, fere princípios constitucionais como o da razoabilidade e da proporcionalidade, o direito à honra e à imagem, fazendo nascer o direito de reparação pelos danos experimentados.

Isso posto, é preciso adentrar no âmago da questão, isto é, analisar o alcance do dispositivo em comento, o artigo 200 do CTN, levando-se em consideração o interesse público, o princípio da razoabilidade e as condutas abusivas que vem sendo apresentadas constantemente pela atuação fiscal.

Fica evidente a condição imposta no artigo 200 do CTN. A autoridade administrativa pode requisitar o auxílio de força pública quando vítima de embaraço ou desacato no exercício de suas funções, ou quando necessário à efetivação de medida prevista na legislação tributária, mesmo que o ato não se configure como crime ou contravenção.

Nessa medida, parece que somente após o agente fiscal ter sofrido algum tipo de embaraço ou desacato, ou ainda no caso de o auxílio de força pública ser necessário para cumprimento de certa medida legalmente prevista, é que se poderá requisitar tal auxílio.

Sem ocorrer uma dessas hipóteses, é descabida a medida de auxílio, ainda mais quando se trate de amparo policial, que constranja o contribuinte, espante sua clientela, impeça a entrada e saída de mercadorias e pessoas do estabelecimento fiscalizado, dentre quaisquer outras medidas ilícitas e abusivas como essas.

Toda vez que o uso de força pública for descomedido e ocorrer sem haver uma das hipóteses condicionantes do artigo 200 do CTN, resta caracterizado o dano ao contribuinte (pessoa física ou jurídica), seja moral, seja material, por ferir o direito que assiste ao mesmo de exercer livremente e sem embaraços sua atividade profissional, devendo ter sua honra e imagem preservadas.

Os contribuintes que devam se submeter à fiscalização não podem ser tratados como se tivessem cometido alguma infração ou delito sem que realmente o tenha feito. E essa é a impressão que se passa quando o fisco age sem motivo com o auxílio de força policial.

Desse modo, a utilização de força policial para realizar uma fiscalização sem que tenha havido qualquer embaraço ou desacato por parte do fiscalizado, colocando-o em situação vexatória, ou sem que seja necessária tal medida para a prática de algum ato legal, é atitude similar à imputação, ao fiscalizado, de uma infração ou delito que ele não cometeu, ferindo o princípio da presunção de inocência.

Atente-se, também, para as lições de Eduardo de Moraes Sabbag, transcritas a seguir:

"Em qualquer hipótese, todavia, deve imperar, na utilização da prerrogativa em comento,a máxima parcimônia, uma vez que o emprego da força, divorciado da guarida legal, pode ensejar o crime de excesso de exação (art. 316, § 1º, CP) ou de violência arbitrária (art. 322, CP)". [04]

Percebe-se, nitidamente, que o dispositivo analisado dá guarida à fiscalização, mas o faz dentro dos limites legais e constitucionais, nas hipóteses previstas pelo próprio artigo 200 e desde que utilizada em prol do fisco com bom senso, ou, no dizer do professor acima citado, com parcimônia.

Se a fiscalização se utiliza do auxílio de força policial da forma apresentada pelo exemplo ora analisado, essa atitude do fisco afronta diversos princípios e o próprio artigo 200 do CTN, cuja aplicação não deve ocorrer da forma como vem se apresentando por alguns agentes fiscais.

O interesse público pode e deve ser resguardado, tendo o fisco o direito de realizar a fiscalização e o contribuinte o dever de a ela se submeter, mas tudo dentro dos parâmetros instituídos pelo ordenamento jurídico.

Se entre o motivo pelo qual se requereu o auxílio, ou quiçá a ausência de motivo para isso, e a atuação da administração tributária no que tange à forma como se vale da força pública não houver um nexo que justifique a medida, dentre outros, estará ferido o princípio da razoabilidade.

Traz-se à baila, novamente, os valiosos ensinamentos de Hugo de Brito Machado, o qual chama a atenção para os limites da atuação fiscal face ao dispositivo em análise:

"Em qualquer caso, é pressuposto de legitimidade da requisição o fato de haver sido a autoridade administrativa vítima de embaraço ou desacato no exercício de suas funções, ou também o fato de ser o auxílio da força necessário à efetivação de medida prevista na legislação tributária"(grifado). [05]

Impõem-se, então, continuar delineando o alcance do artigo 200 do CTN e, para tal finalidade, salutar o entendimento de Marcelo Viana Salomão, transcrito ipsis litteris:

"Ainda sobre os procedimentos iniciais de fiscalização gostaríamos de acrescentar que não só neles, mas em todo o decorrer da atividade fiscal, a imagem do cidadão fiscalizado deve ser respeitada. Em termos práticos isso quer dizer que fiscal não precisa iniciar seu serviço perante os clientes da empresa fiscalizada. Ele pode aguardar o atendimento acabar para se apresentar ou, se o movimento estiver grande naquele momento se apresentar e dizer que precisa ter contato com o responsável pela empresa, tudo com discrição, sem a necessidade de evidenciar aos consumidores ali presentes que a empresa passará por um processo de fiscalização.

Embasa este entendimento o art. 5º., X, da CF, que inclusive prevê expressamente o direito de indenização por aquele que tiver a imagem violada.

Não se quer dizer que a fiscalização não pode fiscalizar, absolutamente não, é seu dever, porém existem limites que, uma vez ultrapassados merecem punição nos termos da Constituição Federal.Exemplifica bem esta situação a visita de fiscais para o início de uma fiscalização já com a presença da polícia. Vemos como altamente ofensivo à imagem do cidadão fiscalizado, vez que está recebendo tratamento digno de bandido, pois polícia não tem função administrativa de fiscalização tributária.

Parece-nos inegável, o dano à imagem causado, por exemplo, a uma loja de um shopping center que receba a visita de um ou mais fiscais acompanhados por um ou mais policiais, o que dizer então se a fiscalização se fizer acompanhada por um verdadeiro exército.

A única hipótese legal que vislumbramos da Administração se fazer acompanhada pela polícia para cumprir seu mister, é por determinação judicial" (grifado). [06]

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Acerca da ausência de razoabilidade na atuação da fiscalização, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região proferiu decisão que pode ser utilizada na compreensão do alcance do artigo 200 do CTN, cujo teor encontra-se transcrito abaixo:

"EMBARGOS À EXECUÇÃO - MULTA - FALTA DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS E LIVROS - AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE - AUTUAÇÃO ABUSIVA - DESRESPEITO AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO - NULIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. 1. Sendo informado à fiscalização que o representante legal da empresa, único conhecedor do local onde se encontram os livros comerciais, retornaria em 21 dias de viagem a país estrangeiro onde estava sendo submetido a tratamento de osteoporose, ofendeu o princípio da razoabilidade a atitude da fiscalização em retornar em prazo mais exíguo e proceder à autuação. (...)". [07]

Ora, se fere o princípio da razoabilidade a conduta da fiscalização de voltar ao estabelecimento antes do prazo de retorno daquele que poderia prestar as informações necessárias, autuando o sujeito passivo, com certeza fere com maior gravidade tal princípio a conduta desproporcional do fisco em iniciar sua fiscalização com o auxílio de força policial, conturbando a rotina do estabelecimento fiscalizado, devendo esta conduta ser rechaçada pelo Poder Judiciário, indenizando-se o fiscalizado.

Ante o exposto, por derradeiro, impende enfrentar diretamente a questão posta, qual seja, o alcance do dispositivo (artigo 200 do CTN).

Mediante a argumentação retro, não pode ser outra a conclusão sobre o alcance do comando de tal dispositivo senão a de que o fisco pode e deve se valer da força auxiliar (policial) na sua atividade de fiscalização, mas desde que dentro dos parâmetros estabelecidos pelo próprio artigo 200, ou seja, desde que a autoridade administrativa seja vítima de embaraço, desacato, ou quando necessário à efetivação de medidas previstas na legislação tributária.

Fora essas hipóteses, e até mesmo quando da ocorrência delas, o fisco não pode ultrapassar o limite do razoável sob a escusa da primazia do interesse público de fiscalizar sobre o interesse privado.

Até mesmo quando se fizer necessário o auxílio policial o fisco não pode ferir os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o direito à honra e à imagem, o direito de exercer atividade sem sofrer embaraço ou restrições sem justa causa por parte do fisco, sob pena de o mesmo arcar com os prejuízos experimentados pelo fiscalizado, por meio da pertinente indenização por danos morais e/ou materiais.

É dentro desse cenário que parece, s.m.j., estar delineado o alcance da regra contida no artigo 200 do CTN.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Constituição da República Federativa do Brasil, publicada no Diário Oficial da União nº 191-A, de 5 de outubro de 1988.

Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

SABBAG, Eduardo de Moraes. Elementos do Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Premier, 2008.

SALOMÃO, Marcelo Viana. Processo administrativo tributário estadual. Material da 1ª aula da disciplina Direito Processual Tributário, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Tributário – UNIDERP / REDE LFG.


Notas

  1. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 255.
  2. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 1238.
  3. AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 480.
  4. SABBAG, Eduardo de Moraes. Elementos do Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Premier, 2008. p. 355.
  5. MACHADO, op. cit., p. 255.
  6. SALOMÃO, Marcelo Viana. Processo administrativo tributário estadual. Material da 1ª aula da disciplina Direito Processual Tributário, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Tributário – UNIDERP / REDE LFG. p. 08.
  7. Tribunal Regional Federal da 3ª Região – 2ª Turma. Apelação Cível – 393115. Processo n. 97.03.069148-0 / SP. Rel. Juíza Sylvia Steiner. DJ: 01/03/200, p. 305.
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Sobre o autor
Ricardo Duarte Cavazzani

Advogado, pós-graduando em direito tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVAZZANI, Ricardo Duarte. Os limites constitucionais do poder-dever de fiscalização e o uso de força pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2089, 21 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12473. Acesso em: 22 dez. 2024.

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