Em uma época em que os holofotes da mídia praticamente se estacionaram sobre o Direito Penal, somos frequentemente bombardeados por notícias fúnebres e pela exploração sensacionalista da desgraça alheia. Em meio a tantos tristes casos (que vêm sendo descritos, cada vez mais, com uma maior riqueza de detalhes), é impressionante que ainda existam alguns que consigam chocar mesmo espectadores acostumados com a assídua presença da violência na mídia. É sobre um desses casos que passaremos a discorrer.
É sempre preciso ter muito cuidado ao comentar notícias. A uma, porque as informações, especialmente quando envolvem a utilização de conhecimentos jurídicos específicos (como os de Direito Penal) não são cem por cento confiáveis; a duas, pelo fato de se tratar, ainda, de uma especulação, já que não se tem um conjunto probatório formado e tampouco uma condenação em definitivo. Mas, em certos casos, é importante que seja aproveitada a oportunidade criada pela divulgação da notícia, posto que é justamente nesse período que as reflexões e discussões alcançarão um maior número de interlocutores abertos ao debate e encontrarão terreno mais fértil para seu florescimento.
Dito isso, é, no mínimo, estarrecedora a notícia que revela pormenores da infame história de uma criança pernambucana de 9 anos de idade, 1,33 m e 36 kg que, após haver sido repetidamente estuprada por seu padrasto, engravidou (gêmeos!) e foi posteriormente submetida a um aborto. A curiosa continuação dessa história é mais um revés sofrido pela família da vítima e pelos médicos que realizaram o procedimento abortivo: foram excomungados por uma autoridade religiosa orientada por um fanatismo extremamente perigoso (aliás, como todo tipo de fanatismo).
Partindo do pressuposto de que todas as informações disponibilizadas são verídicas, e de que o fato se deu, verdadeiramente, tal como noticiado, torna-se tarefa bastante simples construir um juízo de reprovação sobre o comportamento do agente criminoso. O fato é gravíssimo: o crime é hediondo (estupro), e existem circunstâncias agravantes (a vítima é criança e estava grávida) e causas de aumento de pena (o delito foi cometido pelo padrasto). Encontrar adjetivos para expressar o nível de abjeção deste comportamento não parece ser difícil. A conduta criminosa será censurada, de diferentes formas e com o uso de diferentes palavras, em tom uníssono. Praticamente todos os membros conscientes da sociedade repudiam a infame prática ora relatada. Vale lembrar, aliás, que até aqueles tipicamente excluídos e rotulados de inimigos da sociedade (os condenados, "clientes" do sistema prisional), nutrem ódio pelos autores de crimes contra a liberdade sexual (haja vista a existência de um "código de honra" que os impele a aplicar os mais bestiais castigos sobre os estupradores e violentadores). Em resumo: seria, efetivamente, uma perda de tempo escrever para proclamar a gravidade desse crime e para ressaltar os aspectos mais detestáveis da agressão sofrida pela inocente criança de nove anos de idade.
A discussão proposta, destarte, apesar de recair sobre a notícia, não tem por foco a odiosa conduta do criminoso, e nem a incontestável nocividade da sua obra: a reflexão deve assentar-se na eterna polêmica em que se vê envolto o aborto.
O aborto (interrupção da gestação e destruição da vida intrauterina) é, em regra, um comportamento criminoso em nosso país. Mas, apesar do conservadorismo extraível da Parte Especial do Código Penal de 1940 (surpreendentemente, em vigor, com tímidas alterações pontuais), existem hipóteses em que ele é permitido. Em tais hipóteses, que configuram o chamado "aborto legal" e se encontram dispostas no art. 128 do Código Penal, o comportamento da gestante, e também do médico responsável pela condução da manobra abortiva, é considerado lícito. Significa dizer que este comportamento não é contrário ao Direito; que não viaja na contramão dos interesses estabelecidos e as metas firmadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
As duas hipóteses de aborto permitido são: aborto necessário ou terapêutico, previsto no inciso I do art. 128 ("se não há outro meio de salvar a vida da gestante"), e aborto sentimental, ético ou humanitário ("se a gravidez resulta de estupro [...] [01]"). Por lastimável ironia do destino, no caso da jovem paciente do aborto tão veementemente repudiado pela Igreja, reunidas estão, simultaneamente, as duas hipóteses de aborto legal. A gravidez decorre de estupro e, de outro lado, constitui sério e concreto perigo para a vida da gestante (frise-se: a criança, com 9 anos de idade, 1,33 m e 36 kg, esperava gêmeos).
Juridicamente pensando, nenhum aborto poderia se ver mais fundamentadamente justificado do que este. E, se excluirmos as regras de Direito, e recorrermos ao bom senso, aos sentimentos minimamente altruístas e, possivelmente, aos mesmos fundamentos religiosos apregoados pelos que censuram este aborto "legalíssimo", ainda teremos motivos de sobra para não desaprovar a decisão da mãe da jovem vítima.
Sentimentalmente falando, basta pensar na trágica situação de uma criança de pouca idade que, vítima de abusos sexuais por parte de seu próprio padrasto (figura que deveria aproximar-se ou mesmo ocupar o posto tipicamente cabível ao pai, de protetor e provedor), teria que perder de vez a sua infância, a sua adolescência e mesmo a sua juventude ao assumir, tão precocemente, o papel de mãe. Mãe de um filho (nesse caso, seriam dois!) que, muito além de não estar preparada para gerar ou cuidar, é fruto de uma relação ignominiosa, irreversivelmente traumática (e indubitavelmente pecaminosa aos olhos da mesma igreja autora da reprovação do aborto cometido).
Se deixarmos de lado o trauma psíquico e (se possível), esquecermos que o estupro representa um ultraje físico da pior estirpe, sobra, ainda, a desumanidade que é a exigência de que essa gravidez de alto risco seja mantida. Aqueles que condenaram o aborto a que foi submetida a criança, o fizeram porque defendem o valor inestimável da vida. Mas, afinal, vale só a vida do feto? E a vida da criança, não deve ser preservada? Com base em qual critério se estabeleceu a (falsa) convicção de que a vida em formação é mais valiosa do que a vida da criança?
Se estivéssemos falando de uma gravidez meramente indesejada ou não programada, é bem provável que todo o discurso fosse diferente. Suprimir uma vida humana em formação por capricho, ou para eliminar o "contratempo" decorrente de um "descuido", em nada se assemelha ao caso sob análise. Diante, porém, de uma gravidez resultante de um crime hediondo, em que há absoluta certeza acerca da inocência da gestante, e em que a vida dessa própria gestante se vê submetida a intolerável perigo, fica a pergunta: de onde emana tamanha autoridade para manter o indicador em riste e, sumária e irrefletidamente, julgar e condenar?
A contradição é patente. O mesmo raciocínio que instrui a decisão de defesa da vida em formação deveria ser usado na defesa da vida da jovem gestante. O argumento, bastante conhecido, já forma quase um jargão: "a vida é um dom de Deus, e somente Ele pode dá-la ou tirá-la". Isso não se aplica à vida da gestante? Não se pode tomar a ação da destruição do produto da concepção... mas é permitida a omissão que conduzirá à inútil morte da gestante (pois ela, certamente, levaria consigo os seres em formação)? Em outras palavras: não se pode matar um feto inocente... mas se pode, deliberada e planejadamente, deixar morrer uma criança inocente pela falta de socorro e assistência? Essa omissão, observada sob prisma jurídico, seria penalmente relevante. Permaneceria, do ponto de vista religioso, irrelevante? Como, se as bases éticas e morais da dogmática religiosa tendem a ser bem mais restritas e rigorosas do que a própria lei?
Se não se pode escolher salvar a criança e, para isso, eliminar os fetos, por que é admissível escolher preservar os fetos e deixar a criança perecer? Não atende aos compromissos de humanidade e de cidadania a desculpa de que "a escolha compete somente a Deus". Porque não socorrer a criança é uma escolha (será ela a sofrer). Aguardar uma resolução divina, esquivando-se da responsabilidade da decisão já significa decidir pelo sacrifício da gestante. Deixar a criança entregue à própria sorte, conhecendo o trágico desfecho que a aguarda, tem um quê de crueldade.
De maneira alguma se pode interpretar qualquer das ponderações aqui realizadas como uma forma de apologia ao aborto. A discussão nunca foi essa. [02] Por sorte, o cerne da questão, aqui, é bem mais simples e objetivo: o fanatismo, seja ele religioso ou de qualquer outra espécie, é sempre extremamente nocivo. Legou-nos Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, vários pensamentos que demonstram que o fanatismo é mais perigoso do que o próprio ateísmo. De fato, já se viram muitas guerras e atrocidades sendo praticadas (sem autorização, é claro) em nome de Deus; mas ainda não foi vista guerra alguma em nome de "não Deus".
E o fanatismo tem bradado alto em nossa sociedade. Há fanatismo nos bastidores da criação e da aplicação da "Lei Maria da Penha" (em que vigora, na prática, uma presunção quase jure et de jure acerca da culpabilidade prévia do homem); há fanatismo no trato dos crimes de trânsito em que seja constatado o envolvimento de bebidas alcoólicas, excesso de velocidade, ou disputas por espírito de emulação (sugere-se, inicialmente, uma intragável presunção de dolo eventual para quase cem por cento dos casos); há fanatismo no pretenso combate à pedofilia (na quase totalidade dos casos, afirma-se que a pedofilia constitui crime, o que revela nítida ignorância acerca do que realmente vem a ser a pedofilia [03]). Há fanatismo movendo muitas outras caças às bruxas. E houve fanatismo na manifestação do pensamento do líder religioso que, muito além de expressar sua opinião de desaprovação, impôs sobre a já vitimada família da criança estuprada uma sanção social: a segregação do meio religioso (e, possivelmente, pelo menos reflexamente, do próprio meio comunitário). Detalhe: a segregação (excomunhão) não será imposta ao agressor (estuprador), nem mesmo se ele for condenado. O agente que supostamente praticou reiteradamente o crime hediondo que deu causa à gravidez de risco da criança, apesar de constituir a raiz do problema, cometeu, no dizer da autoridade religiosa encarregada do exame da questão, um crime menos grave do que o dos envolvidos no aborto.
Pausa para uma ligeira reflexão: com base no mesmo raciocínio usado para reprovar o aborto discutido, a igreja deve excomungar todos os que, em legítima defesa, eliminarem uma vida humana para a proteção da sua própria (ou mesmo para a proteção da vida de um terceiro inocente).
Se a questão é a completa inocência da vida que foi eliminada pelo aborto, tudo bem. Mas não seria inocente, também, a criança de pouca idade tão ignobilmente violada?
Se é certo que os líderes religiosos têm liberdade assegurada para expressar suas opiniões, proclamar seus dogmas e mesmo "punir" os seus seguidores e fiéis, não menos certo é o fato ser o líder religioso um cidadão. E, como cidadão, é sujeito de direitos e de deveres. Mais importante ainda: tratamos de um cidadão tido como modelo, com papel social comumente diferenciado. Frequentemente investido de certa autoridade e alvo de reverência, é um grande formador de opiniões. Suas condutas e seus discursos influem nas vidas das muitas pessoas que os observam e reverenciam. Por isso, o cuidado deve ser redobrado.
Em muitas situações, somos forçados a lidar com um confronto principiológico pernicioso: o embate entre a garantia da inviolabilidade do direito à vida e à saúde e a liberdade de culto e de crença. A liberdade de culto e de crença deve ser respeitada, sem dúvida. Mas o seu limite se estende até o ponto em que é colocada em risco a vida, a integridade física ou a saúde das pessoas (ou mesmo outros bens jurídicos importantes). É por isso, por exemplo, que não se pode tolerar uma prática religiosa que, escudada sob uma bandeira de fé, promova sacrifícios humanos ou crueldade contra os animais. É por isso, também, que já se encontra resolvida a antiga questão da sobreposição da vontade do médico sobre a vontade do paciente e de sua família, se o procedimento (cirurgia, transplante ou transfusão), apesar de não autorizado por essas pessoas, for julgado como necessário para a preservação da vida. [04]
Quando defendemos o direito que a Igreja tem (seja ela qual for) de expressar seus dogmas e de realizar seus juízos de reprovação (e isso é correto), não podemos nos esquecer, de outro lado, que esse direito deve ser exercido com responsabilidade. O limite – repita-se – é, entre outros, a vida, a integridade física e a saúde dos cidadãos. No caso em tela, o problema nunca foi uma ação diretamente criadora de risco pela Igreja. O problema está na recomendação de uma omissão criminosa. Recomendar que os responsáveis legais aguardem o natural falecimento da criança grávida pela insuportabilidade da evolução da gestação significa induzir ou instigar à ruptura do dever de cuidado e proteção a que eles estão submetidos. Por força do art. 13, § 2°, do Código Penal, os médicos e responsáveis legais envolvidos ocupam a função de garantidores. Se for seguida a recomendação religiosa, será adotada uma inércia que deixará de evitar a morte da criança, quando tais pessoas podiam e deviam agir para impedir esse resultado, por obrigação legalmente imposta. Daí a constatação de que a orientação religiosa deve ter limites.
Para ilustrar: se alguém faz preces e rezas, em meio a outros rituais, com o sincero intuito de abençoar e curar, pode até ser alegada a liberdade de crença para o afastamento, num primeiro momento, do crime de curandeirismo (art. 284, CP). Mas se esse alguém passa a realizar rituais arriscados ou prejudiciais à saúde das pessoas (cirurgias em massa sem esterilização de instrumentos e sem equipamentos de segurança e emergência, por exemplo), excede os limites dessa liberdade religiosa. O mesmo ocorre se passa a induzir os "fiéis" a não procurar o auxílio médico (pois isso representaria ausência de fé a e bênção seria perdida), nos caos de real necessidade e gravidade. Poderia haver responsabilidade pelo delito aludido e até mesmo por outros mais graves.
Se a Igreja está no seu papel de censurar, com base em seus dogmas, não pode fazer isso livremente, sem quaisquer limites. Os representantes religiosos estão obrigados (juridicamente) a agir de modo a não colocar em risco a vida, a saúde ou a integridade física das pessoas. E a reprovação prévia do aborto num caso concreto, sob a ameaça de pena da excomunhão, nas situações em que o aborto é uma necessidade real para fins de preservação da vida, excede os limites da liberdade de religião ao expor a perigo o bem jurídico mais precioso da gestante. Dizendo de outro modo: a Igreja (ou seus representantes) pode professar que o aborto é pecaminoso. Pode, também, excomungar em sinal de reprovação. O que não pode fazer é, em tom de ameaça, sugerir, num caso concreto, determinado, que seja adotada uma conduta afrontosa ao ordenamento jurídico e lesiva à vida e à integridade física dos féis (ou "infiéis").
Guardando as devidas proporções, e apenas para fins de explicitação, do mesmo jeito que líder religioso nenhum poderia recomendar o suicídio impunemente (mesmo alegando a liberdade religiosa), líder religioso nenhum poderia recomendar que a gestante aguardasse, inerte, a chegada da morte certa pela evolução de uma gravidez destrutiva. Ainda guardando as devidas proporções, nos dois casos, o conselho dado nas entrelinhas seria o de abraçar a própria morte.
Felizmente, no caso em questão, parte da família da vítima e os médicos envolvidos sustentaram firmes suas posições e convicções. E ainda bem que o Estado não regrediu à Idade das Trevas. Se a antiga fusão entre Estado e Igreja fosse revitalizada, e as convicções religiosas impostas soterrassem direitos e garantias arduamente conquistadas, o ordenamento jurídico voltaria a ser um "adorno cultural" inútil.
Não precisaríamos de leis e de juízes, mas apenas de livros sagrados e sacerdotes. E como seria? A religião da maioria aniquilaria as minorias e seria imposta a todos? Ou a sociedade teria dezenas (na verdade, centenas) de ordenamentos, contraditórios e sobrepostos, vigendo ao mesmo tempo?
A sociedade, como um todo, deve compreender que o único ponto de convergência de normas comportamentais é o ordenamento jurídico. Disso deflui que mesmo temas altamente inflamáveis, como aborto e eutanásia, são tópicos eminentemente jurídicos. Abordá-los juridicamente não é uma opção. É uma necessidade. Pois a nossa sociedade não é regida por ordenamentos religiosos. Isso é – e parece-nos que sempre será – inviável, tendo em vista que as dissidências são muitas e são demasiadamente profundas para qualquer unificação. Se houvesse uma política criminal elaborada a partir de referenciais religiosos, teríamos que lidar, fatalmente, com o esmagamento das liberdades de crença e de manifestação do pensamento.
Acreditamos que nunca existirá uma unanimidade a respeito de assuntos como eutanásia e aborto. E, se o consenso é impossível, a única solução legítima é a da vitória da maioria. É somente por meio de um ordenamento jurídico de bases democráticas e respaldado por valores e preceitos sociais consagrados em nível constitucional que se pode tratar de assuntos como esses. Sem agradar a todos, mas, pelo menos, com a adoção de um processo democrático que respeita a racionalidade humana. Em suma, é pelo ordenamento jurídico, que vincula todos os cidadãos, independentemente da crença praticada, que esses mesmos cidadãos deverão se guiar. Pois fazem parte de um corpo social cujo comportamento é norteado por decisões e políticas que, uma vez determinadas pela maioria, são impostas e exigíveis a todos.
A sociedade brasileira precisa amadurecer e enfrentar, frontalmente, questões como o aborto e a eutanásia. Questões já enfrentadas por tantos outros países ao redor do planeta. Não se deve legalizar ou descriminalizar porque isso já foi feito por países de "primeiro mundo". Também não se deve conservar a postura tradicionalista por puro comodismo. O assunto deve ser suficientemente discutido e refletido para, ao fim, ser adotada uma política criminal condizente com os valores sociais médios contemporâneos. Pois o Direito Penal, como todas as demais ramificações do Direito, deve estar a serviço da sociedade; deve atuar no sentido da proteção dos seus interesses e do alcance das suas finalidades.
É preciso entender que as convicções religiosas não são automaticamente negadas ou atropeladas tão-só pela discussão do tema. Este autor, bem como a imensa maioria dos leitores, certamente possui suas convicções religiosas. Ter convicções religiosas, e mesmo defendê-las, é bastante diferente de impô-las ao alto custo do assassínio dos direitos alheios. A uma, porque a Constituição assegura a liberdade de crença e de culto (aliás, com isso, também a liberdade de "não crença" e "não culto"!); a duas, porque é terminantemente impossível, numa sociedade cada vez mais multicultural, deixar de cultivar a tolerância. Já disse Claus Roxin [05] que "o homem moderno vive numa sociedade multicultural na qual também a tolerância frente a concepções do mundo contrárias à própria é uma das condições da sua existência".
O exercício da tolerância não enfraquece as convicções religiosas. E ele, de outro lado, fortalece a cidadania. Mais do que isso, ele inspira a noção de respeito à individualidade que é necessária para uma convivência social mais harmônica e saudável.
No fim, resta uma única certeza: no mesmo Livro em que se abeberou o líder religioso para encher-se de autoridade e acusar, julgar e condenar, sobram elementos para absolver. Uma análise minimamente coerente desse Livro revelaria que, em razão de ensinamentos proferidos há pouco mais de dois mil anos atrás, as pedras não mais deveriam ser atiradas. Infelizmente, sobraram ainda algumas pedras. E não falta quem queira arremessá-las.
Notas
- Cabe aqui uma crítica em separado à nossa legislação. Melhor seria se a redação dispusesse que "Não se pune o aborto: [...] II – em caso de gravidez resultante de crime contra a liberdade sexual").
- Até porque este autor não tem, sinceramente, uma opinião religiosa, ética ou moral a respeito do assunto que possa ser considerada definitiva. E talvez nunca chegue a ter, já que a certeza da necessidade de tolerância e a convicção de que cada caso deve ser apreciado de acordo com as suas particularidades dificulta a construção de uma opinião inabalável. E justamente daí advém a necessidade de uma reflexão constante. Cada caso pode e deve ser pensado. Cada caso demanda uma análise individualizada. O próprio ordenamento jurídico, que estabelece regras, não o faz de maneira estática. Regras estáticas não atendem aos interesses de seres dinâmicos (como os seres humanos). Opinião é algo que se deve ter como produto de uma reflexão. E algo sempre suscetível de mutações quando usadas novas perspectivas e inseridas novas variáveis.
- A título de esclarecimento: a pedofilia, como a necrofilia e a zoofilia, por exemplo, é uma parafilia. É uma preferência sexual anômala, distorcida. Não constitui crime pelo simples fato de se referir a um comportamento interno, psíquico, subjetivo. Enquanto não for posto em prática, atingindo a liberdade sexual de alguém, é definitivamente irrelevante juridicamente. Obviamente, se algum ato sexual vier a ser praticado com crianças, seja ou não movido pela pedofilia, constituirá crime (de estupro ou de atentado violento ao pudor, conforme o caso).
- Art. 146, § 3°, CP: "Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida".
- ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 23.