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Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação de valores

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01/04/2009 às 00:00
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6. Direito e Integridade: coerência e adequação.

Conforme se demonstrou, o Direito, submetido à potestade dos juízos éticos dos magistrados, torna-se extremamente antidemocrático. Apenas um juízo de adequabilidade normativa seria capaz de oferecer uma resposta coerente à aplicação de princípios jurídicos. Mas de que parâmetros disporia o aplicador do Direito para proceder à adequação? Vale dizer, é preciso retornar à pergunta lançada acima: como se escolhe o princípio mais adequado entre os que concorrem prima-facie?

Isto se refere a uma questão fundamental: de onde vêm os princípios jurídicos? Nas palavras de DWORKIN, não existiria um teste de pedigree que oriente a identificação dos princípios; a origem desses princípios jurídicos

(...) não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo. A continuidade de seu poder depende da manutenção dessa compreensão do que é apropriado (2002, p. 64).

É assim que DWORKIN afirma, por exemplo, que se deixar de parecer injusto que as pessoas se beneficiem de seus próprios delitos, então este princípio irá aos poucos ruir, e eventualmente perder seu status de devido. Observe que os princípios são absolutamente distintos das regras neste sentido, já que as regras sempre poderiam estar, dentro de uma ótica convencionalista, hierarquicamente fundadas em uma regra superior que lhes confira validade (daí vem a idéia do teste de pedigree).

Nesse sentido, CHAMON JÚNIOR afirma que princípios nada mais são que sentidos normativos interpretáveis em consonância com uma prática social em sentido constante. Se existem hoje novos direitos, que há vinte anos "não existiam", "já nos é claro que, ao futuro, o reconhecimento de outras novas questões está aberto" (CHAMON JÚNIOR, 2008, pp. 245-246).

E esse projeto moderno de reconstrução democrática do Direito, no bojo da Teoria do Discurso, se coaduna com o pressuposto que já se anunciou acima, qual seja, o que afirma estar a atividade do intérprete sempre direcionada a desvendar as respostas adequadas já existentes no Direito. Para isso, exige-se que se interprete de forma adequada o sistema de princípios. Esta forma adequada implica na busca por coerência, e exige que o Direito considere sua história como um todo fluido, que acumula experiências que devem ser levadas em consideração.

É preciso, destarte, aceitar a noção de DWORKIN de integridade, que corrobora com a proteção da ética da legalidade e dos princípios. Segundo essa concepção, os juízes devem decidir predispostos a encarar o Direito como uma comunidade íntegra de princípios. O raciocínio jurídico envolveria uma interpretação construtiva – deverá refletir a melhor representação de nossas práticas jurídicas desde sempre e até hoje.

DWORKIN metaforiza, com Hércules, um magistrado com capacidade e paciência sobre-humana. Ele deve interpretar a história institucional como um movimento único e constante, partindo de uma completa e pormenorizada análise das fontes do Direito – da legislação, dos precedentes e dos princípios jurídicos aplicáveis aos casos. A metáfora de Hércules tem como objetivo a superação, pelo aplicador do Direito, do tradicional recurso à (duvidosa) vontade do legislador como critério assegurador da objetividade da interpretação do Direito. O Direito é algo que vem se construindo desde sempre, de modo que ele transcende a nós mesmos e nossas compreensões limitadas.

Isso se relaciona diretamente com a idéia de romance em cadeia – cada magistrado deve encarar seu exercício como a continuidade de uma história institucional em que necessariamente é preciso interpretar o passado e a partir dele construir respostas adequadas para os problemas hodiernos sem que se perca o ideal da coerência. Cada magistrado é um romancista, e recebe um livro inacabado, mas com início e desenvolvimento – sua tarefa é dar continuidade ao livro, acrescentando-lhe um capítulo, sem fazer com que ele perca o fio da sua história (coerência). Cada romancista subseqüente ao primeiro interpreta os capítulos anteriores, percebendo o que os outros romancistas construíram coletivamente, e cria um outro (DWORKIN, 1999, p. 276).

Assim é de maneira que o juiz, quando se encontra perante um hard case, não cria uma nova norma particular, mas tão-somente revela qual é o direito no caso em questão. Todas os casos, mesmo aqueles que não são tutelados por regras jurídicas expressas, são abarcados pelo Direito, e possuem uma resposta correta à luz dos princípios jurídicos. É de clareza cristalina como a idéia de integridade de DWORKIN é compatível com a Teoria do Discurso de HABERMAS, e como esta depende daquela.

Assim, HABERMAS não se contenta em criticar a ponderação de valores: ao contrário, inspira-se nas idéias de DWORKIN para propor o seu modelo de aplicação jurisdicional, condizente com os pressupostos da cisão entre justificação e aplicação e, acima de tudo, preocupado em não tratar princípios como valores.

O magistrado que pondera, mesmo que se esforce para interpretar a história institucional, assim como faz Hércules, terminará por partir em uma nova direção, excursionando em uma nova jornada com finalidades e percurso diferentes daquele iniciado juntamente à conformação e evolução da história comunitária, porque assentada em valores particulares e juízos que não podem ser universalizados, conquanto idiossincráticos, dentro de uma perspectiva pluralista.

Diferenciando princípios de políticas [22], DWORKIN, ao contrário [23], faz uma proposta deontológica, através do juízo de adequabilidade, que representa justamente a leitura do livro que conta a história da comunidade e do Direito, e a percepção, pelo juiz, do melhor princípio que pode justificar uma prática (criação do novo capítulo).

Percebe-se, nesse ponto, a influência que a Common Law, assentada na vinculação dos precedentes, exerceu sobre o jurista estadunidense. Não obstante, os precedentes recebem tratamento diferenciado nos sistemas de matriz romano-germânico. Entretanto, isso não implica na incompatibilidade da integridade de DWORKIN com sistemas desta matriz, como o brasileiro. Ao invés, cumpre ressalvar que, no sistema romano-germânico, somente é possível a utilização de um precedente através da integridade, como afirma LÊNIO STRECK:

Para o precedente ser aplicado, deve estar fundado em um contexto, sem a dispensa de profundo exame acerca das peculiaridades do caso que o gerou. Logo, a fundamentação de um princípio por meio da jurisprudência não dispensa o que é mais caro para a common law (sic) – a justificação acerca da similitude do caso que está servindo como holding. (STRECK, 2006, p. 386).

A utilização de precedentes, assim, deve ocorrer de modo excepcional, pois este sistema tem como paradigma e núcleo central a lei (art. 5º, II da Constituição da República). Para STRECK, nem mesmo na Common Law as decisões são proferidas para que sejam precedentes para casos futuros, mas são emanadas para resolver os casos concretos – por isso é que não basta a simples menção do precedente para solucionar a controvérsia, mas deve haver também a justificação e contextualização no caso concreto.

Nesse sentido, demonstra CHAMON JÚNIOR (2008, pp. 255-256) que

O próprio passado do Direito, como vimos, permite-nos vislumbrar que sua história é repleta de equívocos e mal-entendidos do seu sentido. Mas o Direito tem a capacidade de aprender com os tropeços de seu passado, ao mesmo tempo em que se auto-purifica. Afirmar, à melhor luz, que o Direito é uma prática social que permite sua auto-purificação, a partir dos erros e equívocos do passado, implica dizer que o próprio Direito, relendo a si mesmo, pode vislumbrar determinadas decisões – legislativas e administrativas e aqui, em especial, jurisdicionais – como equívocos porque incoerentes com esse projeto do Direito. Esse novo capítulo que se fará ‘escrito’ pode superar pode superar a falta de coerência no tratamento de determinadas questões jurídicas porque capaz de ser adequadamente focado ao que está a exigir o constitucionalismo moderno.

Mas Hércules não estaria imune a críticas por parte de HABERMAS. Este tece um comentário importante sobre o herói de DWORKIN – ressalta seu solipsismo (2002, v.1, p. 278-280). Assim, cita FRANK MICHELMAN para afirmar que

What is lacking is dialogue. Hercules... is a loner. He is much too heroic. His constructions are monologous. He converses with no one, except through books. He has no encounters. He meets no otherness. Nothing shakes him up. No interlocutor violates the inevitable insularity of his experience and outlook. Hercules is just a man, after all. No one man or woman could be that. Dworkin has produced an apotheosis of appellate judging without attention to what seems the most universal and striking institutional characteristic of the appellate bench, its plurality (MICHELMAN, apud HABERMAS, 2003, v. 1, p. 278).

Mesmo Hércules assumiria um viés monológico e, pois, avesso às modernas preocupações da Teoria do Discurso com a produção da decisão judicial. HABERMAS preocupa-se com o isolamento do herói-intérprete, que confia em sua prodigiosa capacidade de analisar minuciosamente sem atentar, contudo, às limitações interpretativas da solidão. Isso sugere que se ancorem as exigências ideais feitas à teoria do Direito no ideal político de uma Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição (e aqui HABERMAS cita nominalmente o famoso trabalho de PETER HÄBERLE), "ao invés de apoiá-las no ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado à verdade" (HABERMAS, 2003, v.1, pp. 277-278).

Diante de tudo isto, Hércules demonstra ser um juiz prudente, mas solitário e monológico. Ele aos poucos se dá conta de que o fardo que ele carrega precisa ser dividido com os demais intérpretes do Direito. Somente através de uma dimensão argumentativa e democrática, mas que se paute na integridade, será possível aplicar o Direito orientado à descoberta das respostas corretas...


7. Conclusão: interpretação e correção no Direito.

Diante dos pressupostos adotados como hipótese de estudo e o desenrolar dos argumentos empregados para a crítica da metodologia da ponderação, com base na compreensão procedimentalista-discursiva de HABERMAS, podemos concluir que a compreensão de princípios como comandos de otimização pressupõe a interpretação da Constituição como uma ordem concreta de valores, confundindo Direito e Política. Os princípios, tratados desta forma, atendem a um código gradual que se incompatibiliza com o código binário do Direito (lícito/ilícito). Direitos igualmente devidos (e devidos em sua inteireza) não podem ser mitigados por conta de um juízo de preferência remetido a valores.

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Além disto, conclui-se que a estrutura deontológica dos princípios não permite sua aplicação axiologizada. A racionalidade da ponderação derivaria da utilização da fórmula-peso e da lei da ponderação, mas a atribuição aproblematizada de um juízo de importância demonstraria a fragilidade dessa argumentação, dependente de pré-compreensões e juízos axiológicos. Tal metodologia desrespeitaria a ética da legalidade, desconfirmando o discurso de fundamentação das normas e eticizando seu discurso jurídico de aplicação, esvaziando sua juridicidade.

A busca por um resultado adequado exigiria uma criteriosa análise contextual das fontes aliada à interpretação construtiva, ensejando a aceitação de uma concepção jurídica que extravasa a um modelo positivista, no sentido de conceber um sistema coerente de princípios e aceitar a possibilidade de correção do Direito. No entanto, não se vale, aqui, de arbitrariedades travestidas de discursos racionais, como é de gosto da ponderação de valores. Princípios têm sempre primazia sobre políticas, e direitos não podem ser sacrificados, minimamente que seja, em nome do bem coletivo, do preferível ou do mais importante.

Essa leitura é compartilhada também por HABERMAS e GÜNTHER: eles compreendem que os direitos devem ser interpretados pressupondo-se um sistema coerente de princípios. A adequabilidade permite que normas sejam válidas (e, portanto, aplicáveis prima-facie) não havendo colisão, pois a dimensão de aplicação das normas coerentemente seleciona o princípio mais adequado para ser aplicado no caso concreto (de modo que só há um conflito aparente de princípios). Assim, GÜNTHER, com HABERMAS, crê que as normas jurídicas precisam ser válidas no sentido de uma Teoria do Discurso, através de (U), e o sistema coerente de normas pretende dar uma resposta sempre adequada, correta, para os casos concretos. Nesse sentido, a integridade poderá ser compreendida como parâmetro para argumentações de adequação. (GÜNTHER, 2004, p. 414).

A interpretação de acordo com a integridade é condição de possibilidade de produção de decisões democráticas que continuem a municiar o Direito com dados para sua contínua produção coerente de si mesmo. A metáfora do romance em cadeia inspira a atuação do magistrado como um roteirista que, acima de tudo, deve zelar pela coerência da obra.

A procura por respostas corretas, afinal, jamais se dá através do sentimento pessoal sobre o que é bom ou justo. Hércules sabe que não cabe a ele criar o Direito, mas tão somente desvendá-lo, por isso busca oferecer um tratamento adequado aos princípios jurídicos. Ele tem consciência de que deve interpretá-los de acordo os parâmetros da integridade, e sabe também que jamais poderá negligenciar-lhes o caráter deontológico e binário. Hércules discorda da metodologia da ponderação de valores, que considera altamente antidemocrática, afinal ele não tem a pretensão de produzir o Direito.

Por fim, uma última exigência da Teoria do Discurso é produzir decisões judiciais não apenas orientadas para a coerência e em vistas do desvendamento da resposta correta, mas menos solipsistas – uma crítica da qual nem mesmo Hércules foi isento. A metodologia da ponderação, longe de se furtar a tal crítica, é dela o maior exemplo de aplicação, pelo caráter idiossincrático, monológico e valorativo que sua operacionalização assume.

Por torna-se dependente de juízos axiológicos, a ponderação poderia ser comparada à interpretação referida a um ato de vontade, como pretendeu KELSEN; pelo menos seu positivismo era bem franco quanto à discricionariedade da aplicação do Direito pelo juiz...

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Sobre o autor
Marcus Seixas Souza

Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Doutor em Direito pela UFBA, professor de Direito e Tecnologia na Faculdade Baiana de Direito e sócio do 4S Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação de valores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2100, 1 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12518. Acesso em: 24 dez. 2024.

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