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A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual

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05/04/2009 às 00:00
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O objetivo é verificar se o tratamento dispensado ao inimputável pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, evidenciando o descaso político e social com relação ao doente mental infrator.

INTRODUÇÃO

O final do século XX e o início do século XXI, no Brasil, foram marcados por um aumento assustador no número de conflitos de relações inter-pessoais entre os grupos sociais, provocando um somatório alarmante de violência.

A crescente criminalidade assumiu requintes de crueldade e perversidade, tornando difícil considerar que determinados delitos são oriundos de pessoas providas de saúde mental e capacidade de entendimento e determinação.

O Estado, por sua vez, tende a punir os infratores da lei, jus puniendi, sem demonstrar qualquer preocupação em conhecê-los, para que outras medidas sejam aplicadas, além daquelas que visam somente à punição.

No ordenamento atual, as legislações civil e penal estabelecem que a saúde mental e a maturidade psíquica são requisitos para a capacidade civil e responsabilização penal do indivíduo. Nesse sentido, o portador de doença mental que, ao tempo do crime, era inteiramente incapaz de entender a ilicitude do ato ou de determinar-se de acordo com ele, está isento de pena e deve ser submetido à medida de segurança, cuja finalidade é curativa e preventiva.

O presente artigo consiste numa abordagem crítica acerca do instituto da inimputabilidade por doença mental, prevista no art. 26 do Código Penal, seus aspectos legais e implicações no mundo jurídico e social. Buscou-se identificar quem são os inimputáveis por doença mental no sistema penal brasileiro e qual o atual tratamento dispensado a eles.

Nesse contexto, foram analisadas as medidas de segurança no ordenamento pátrio, evidenciando as políticas públicas que, por lei, deveriam ser criadas para a execução desta espécie de sanção penal.

O objetivo é verificar se o tratamento dispensado ao inimputável pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, evidenciando o descaso político e social com relação ao doente mental infrator.


1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DO DIREITO PENAL:

O estudo da inimputabilidade penal do doente mental requer, de início, uma abordagem sucinta acerca da evolução histórica do Direito Penal, para remontar as bases clássicas que buscaram conceituar o crime e definir seus requisitos estruturais.

A Teoria Geral do Crime, também chamada Teoria do Delito, Teoria do Injusto Penal ou do Fato Punível, tem por objeto o estudo dos elementos constitutivos e caracterizadores do ilícito penal, pressupostos legais para a aplicação da sanção penal pelo Estado, seja na espécie pena ou medida de segurança.

O legislador pátrio não conceituou crime no Código Penal, somente preocupando-se em diferenciá-lo das contravenções penais. A doutrina, por seu turno, tem se esforçado para estabelecer um conceito abrangente de delito, tomando como base a evolução do pensamento clássico que permeou a ciência criminal.

Na evolução histórica e social do Direito Penal, predominaram três conceitos de crime mais difundidos e aceitos pelas escolas penais: formal, material e analítico.

Sob a ótica formalista, crime será tudo aquilo que o Estado assim definir por meio de lei. Para que alguém cometa crime, portanto, basta realizar a conduta típica descrita na lei. A teoria material, por sua vez, considera crime toda conduta humana que viola os bens jurídicos considerados fundamentais pela sociedade e que necessitam da tutela do Estado.

Ao longo dos anos, as teorias formal e material sofreram modificações até chegar-se no conceito analítico, que considera como delito todo o fato típico e ilícito. Essa corrente preocupou-se em definir os elementos estruturais do delito. Estando presentes esses dois requisitos, tem-se o crime, cuja estrutura é bipartida.

Todavia, a tendência da doutrina hodierna é enquadrar a culpabilidade como o terceiro elemento estrutural do crime. Esse é o entendimento de Rogério Greco, Cézar Roberto Bitencourt e Guilherme Nucci, que defendem a divisão tripartida da teoria analítica, afirmando que delito é toda ação típica, antijurídica e culpável.

Parte minoritária da doutrina, por sua vez, não considera a culpabilidade como parte integrante do delito, afirmando que essa também é a posição do codex, uma vez que os arts. 1º, 23 e incisos, dispõem que, sem tipicidade e ilicitude, não há crime, ao passo que o art. 26, caput, por sua vez, quando trata de causa excludente de culpabilidade, estabelece as hipóteses em que o agente deverá ser isento de pena, sem desconsiderar a existência do crime.

A questão ainda é controvertida. Neste trabalho, compactua-se com o entendimento que considera a culpabilidade como elemento do crime, uma vez que esta representa o aspecto subjetivo do ilícito, isto é, a vontade de delinqüir ou o entendimento do indivíduo acerca da prática criminosa e a capacidade de determinar-se nesse sentido.

Sem o livre-arbítrio de agir criminosamente e sem a potencial consciência da ilicitude, o juízo de reprovação que deveria recair sobre o autor do fato delituoso, deixa de existir. Nessa lógica, não faz sentido considerar criminosa a conduta de um agente inimputável, se esta não é passível de reprovação ou censura.

No Código Penal, o tipo incriminador é formado pela descrição da conduta, seguida da respectiva pena, o que leva à conclusão de que crime é aquilo que a sociedade deseja ver punido com pena, e não, com sanção diversa. Se crime é fato típico e ilícito, merecedor de punição pelo Estado, a culpabilidade é o fundamento legal pelo qual o jus puniendi deverá agir. Desconsiderar a culpabilidade como elemento do crime é ignorar o agente humano que pratica a conduta. E não há delito sem reprovação ou censura social.

Perfilhando desse entendimento, Nucci (2007) sustenta que um fato típico e antijurídico, ausente a culpabilidade, não é crime, e sim, ilícito de natureza diversa. Na concepção deste autor, a conduta típica e ilícita praticada por um inimputável deveria ser classificada como um injusto penal, ao invés de crime, uma vez que, nesse caso, a sanção recomendada é a medida de segurança, e não a pena, como ocorre nos delitos praticados por imputáveis.


2. DA CULPABILIDADE:

Enquanto terceiro elemento integrante do crime, a culpabilidade é o juízo de reprovação ou de censurabilidade que recai sobre a conduta típica e ilícita, através da qual será possível culpar e punir o agente pela prática de um crime. São elementos da culpabilidade, segundo o Código Penal Brasileiro: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Por imputabilidade define-se como a capacidade do agente em entender o caráter ilícito do fato praticado e de determinar-se de acordo com isso. O autor de um crime, para ser considerado culpável, deve reunir condições físicas, psicológicas, morais e mentais que lhe confiram capacidade plena para entender o ilícito. Não basta, para isso, somente a consciência de sua ação, mas também a livre vontade de praticá-la, ou seja, o controle do agente sobre a sua própria vontade.

Essa capacidade está relacionada à existência de fatores biológicos (maioridade penal), psiquiátricos (sanidade mental), psicológicos (discernimento pleno e voluntariedade) e até antropológicos (entendimento dos padrões sócio-culturais que predominam num meio social determinado).

No Código Penal, a imputabilidade foi introduzida no Título III, pela rubrica "Da Imputabilidade Penal" e os arts. 26 a 28 tratam da matéria. O legislador brasileiro adotou a técnica da afirmação negativa, preferindo conceituar o inimputável para, inversamente, definir o imputável. Será imputável aquele que não for inimputável, segundo o codex. Apesar da lei penal não ter definido um conceito positivo de imputabilidade, estabeleceu as hipóteses em que esta não será verificada.

A potencial consciência da ilicitude, por sua vez, é o conhecimento inequívoco do agente criminoso acerca da tipicidade e ilicitude de sua conduta. Para tanto, é essencial que disponha de sanidade mental plena e discernimento, que possam auferir-lhe a possibilidade de saber que praticou algo errado ou injusto.

Para que alguém seja considerado culpável por um crime, é também necessário que o tenha praticado em condições normais e em situação não-adversa, na qual era possível exigir do autor conduta diversa da criminosa, isto é, o agente criminoso teve a chance de praticar comportamento diverso do adotado, todavia, optou pelo caminho do crime.

2.1. DA VERIFICAÇÃO DA INIMPUTABILIDADE:

No ordenamento jurídico, a inimputabilidade não pode ser presumida. Tem de ser provada por meio de perícia e em condições de absoluta certeza. São três os sistemas de aferição da inimputabilidade: biológico, psicológico e misto ou biopsicológico.

O codex, em seu art. 26, adotou o sistema híbrido denominado de biopsicológico, que combina os dois critérios anteriores. Primeiramente, deve-se verificar se o agente, ao tempo da ação/omissão, era portador de doença ou desenvolvimento mental retardado ou incompleto. Caso negativo, não será inimputável. Se, positivo, verifica-se se era capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com essa consciência.

Somente depois de averiguadas e constatadas ao menos uma dessas duas hipóteses, é que será atribuída a inimputabilidade ao indivíduo. A inimputabilidade, portanto, deve existir na ocasião do delito, pois a superveniência de enfermidade mental depois do cometimento do crime, não exclui a culpabilidade.

No que concerne às causas excludentes de culpabilidade, estão divididas em dois grupos no Código Penal: relativas à pessoa do agente e ao fato criminoso. Quanto ao agente, podem ser por: doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput [01]), por embriaguez decorrente de vício e, ainda, por menoridade (art. 27).

O art. 26 isenta de pena o indivíduo que pratica ato típico e ilícito quando, no momento da ação/omissão delitiva, era portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto (menoridade ou retardado), e era completamente incapaz de compreender a ilicitude de sua conduta ou de determinar-se de acordo com ela.

Ou seja, para ser inimputável, não basta a pré-existência de doença ou capacidade mental incompleta ou retardada. Exige-se, também, que, ao tempo da ação ou omissão, o agente, em razão da enfermidade, não tenha sido capaz de compreender o fato criminoso, ou, caso o fosse, não conseguiu controlar o impulso delitivo.

Nessa lógica, a inimputabilidade, para ser reconhecida, exige a presença dos requisitos causal (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado), cronológico (ao tempo da ação ou da omissão) e consequencial (inteira incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com ele).

Excetua-se dessa regra o indivíduo que, voluntariamente, coloca-se em estado de inimputabilidade, com vistas a cometer o delito. Nestes casos, deve vigorar o princípio da Actio Libera in Causa, segundo o qual se presume o ato delitivo no momento da tomada da decisão pelo agente. É o caso do salva-vidas que, objetivando omitir-se do dever legal de agir, ingere substâncias entorpecentes de maneira voluntária e se mantém inerte diante do afogamento de uma criança.

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A incapacidade de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação diante da conduta criminosa, portanto, constituem requisitos da inimputabilidade. O parágrafo único do art. 26, por sua vez, admitiu a hipótese da imputabilidade parcial ou semi-imputabilidade, quando o indivíduo possui meia consciência da ilicitude ou da liberdade de agir. São os casos fronteiriços, em que o agente tem sua capacidade diminuída.

Nesta hipótese, a pena pode ser reduzida de um a dois terços se o mesmo, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se nesse entendimento.

O citado dispositivo, ao tratar da semi-imputabilidade, emprega a expressão "perturbação de saúde mental", no lugar de doença mental, o que constitui um minus, isto é, uma mera turbação na capacidade intelectiva e volitiva, onde há perda parcial da capacidade de entender e de querer.

Verificada a semi-imputabilidade, o juiz terá duas opções: reduzir a pena de 1/3 a 2/3, ou impor medida de segurança, o que não exclui a imputabilidade do agente, pois, nesse último caso, a sentença continuará sendo condenatória, o que não acontece com os inimputáveis, cuja medida aplicável é a absolvição imprópria. A escolha por medida de segurança dependerá do entendimento do juiz acerca do laudo pericial, quando assim recomendar.


3. DA INIMPUTABILIDADE POR DOENÇA MENTAL:

Conforme visto, o Código Penal vigente, ao tratar da inimputabilidade por anormalidade mental, adotou o sistema misto ou biopsicológico, segundo o qual não basta a existência da doença para isentar o agente da pena.

Exige-se, primeiramente, a existência do elemento biológico, de natureza patológica, que é a enfermidade mental. O segundo elemento é o cronológico/temporal, ou seja, o autor, no momento do crime, em razão da doença da qual é portador, precisa apresentar um estado de anormalidade psíquica que o torne incapaz de entender o sentido ético-jurídico de sua conduta ou, caso tenha esse entendimento, ter a doença e seu estado de perturbação psíquica eliminado a sua capacidade volitiva. Em suma, é necessário que a anormalidade cause o vício de entendimento e de vontade.

Em Medicina, o estudo das doenças mentais chama-se Patologia Mental ou Psiquiatria. Toda doença tem causa infecciosa, tóxica, orgânica, psíquica e outras.

Entre as causas biopsicossociais que podem levar à irresponsabilidade penal, está a doença mental. O estudo dos transtornos mentais se faz necessário uma vez que, na prática, verifica-se que os operadores do Direito enfrentam dificuldades ao tratar do assunto, posto que, em sua maioria, são leigos e fazem confusão entre os conceitos de doença mental (de origem biopsicossocial), as anomalias advindas de retardo mental (origem biológica) e os desvios de personalidade (de origem psicossocial), o que acaba por prejudicar o réu e a correta aplicação da lei ao caso concreto.

Nesse sentido, nem todo criminoso sexual, por exemplo, será portador de doença mental, mas sim, de transtorno de personalidade, que nem sempre é sinônimo de loucura.

No entendimento de Nucci (2007), o conceito de doença mental deve ser analisado em sentido lato, abrangendo tanto as doenças de origem patológica, como as de origem toxicológica.

O médico Hélio Gomes, por sua vez, em Medicina Legal, referiu:

[...] as codificações sempre lutaram com grandes dificuldades toda vez que tiveram de fazer referências aos doentes mentais. Não há na Psiquiatria uniformidade entre os autores a respeito do sentido exato das expressões que usa e emprega. Essa falta de uniformidade entre os técnicos não poderia deixar de se refletir sobre os leigos, que são, em geral, os legisladores, a respeito das questões psiquiátricas. (GOMES, 1995, p. 799-800).

É por esse motivo que deveria ser obrigatória na grade curricular dos cursos de graduação em Direito, o estudo da Medicina Legal, bem como da Psicologia Jurídica, dada a complexidade do instituto da inimputabilidade penal.

O Código Criminal do Império, ao referir-se aos inimputáveis por doença mental, utilizou a expressão "loucos de todo o gênero". A aludida expressão, bem como outras que a sucederam, tais como "imbecilidade nativa", foram alvo de muitas críticas, não somente por estarem incorretas, do ponto de vista médico, mas por serem preconceituosas e pejorativas.

O codex atual, em seu art. 26, utiliza as expressões "agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado [...]". Em seguida, no parágrafo único deste dispositivo, ao tratar da semi-imputabilidade, dispõe que "a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental [...]".

A expressão doença mental disposta no CP, recebeu fervorosas críticas de doutrinadores que se opõem ao sentido genérico do termo, o qual abriga uma diversidade de transtornos, razão pela qual, acaba dificultando a identificação da doença quando da análise do caso concreto.

Entre esses autores está Leiria (1980), segundo o qual, o conceito psiquiátrico de doença mental, embora sirva de base para a formulação do conceito jurídico, nem sempre coincide exatamente com este. Igualmente, não é de se confundir a perturbação da saúde mental, com a doença mental propriamente dita. Nas enfermidades psíquicas, há sempre uma perturbação da saúde mental, mas tais perturbações nem sempre decorrem de uma doença mental, na concepção científica do termo.

Segundo Ponte (2007), o termo doença mental, na seara penal, engloba todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se tanto às psicoses endógenas ou congênitas, como também às neuroses e aos transtornos psicossomáticos.

De acordo com a Psiquiatria, são consideradas doenças mentais as chamadas psicoses. O psicótico costuma apresentar perda de contato com a realidade e sintomas produtivos, tais como delírios e alucinações. A grave alteração da consciência é capaz de provocar no indivíduo o efeito de estar sempre convicto da verdade, o que o impede de ver a realidade dos fatos.

A psicose pode ter origem orgânica (disfunções cerebrais) ou funcional (psicológica ou comportamental). São exemplos de psicose: a) esquizofrenia, b) transtorno bipolar de humor, c) paranóia.

Também podem ser consideradas doenças mentais o alcoolismo e a toxicomania.

A Lei Penal isenta de pena o agente que, em razão de dependência química, ou sob o efeito de substância psicotrópica, proveniente de caso fortuito ou força maior, comete crime. (art. 28, § 1º, II).

Se o indivíduo, ao tempo da ação/omissão, possuía capacidade parcial de entendimento ou determinação, a pena é reduzida, conforme o § 2º do referido dispositivo. A embriaguez voluntária ou culposa, no entanto, não exclui a imputabilidade. O indivíduo responde pela conduta criminosa como se sóbrio estivesse.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o alcoolismo uma doença física, espiritual e mental. A Psiquiatria hodierna entende que o alcoólatra (patológico) não merece ser tratado como criminoso e deve ser isento de pena. Enquanto doença mental, a embriaguez patológica do agente (psicose alcoólica), caso detectada, constitui causa de exclusão da imputabilidade.

Com relação aos dependentes de drogas ilícitas, a Lei nº. 11.343/06, em seu art. 28, deixou de prever pena privativa de liberdade ao usuário de drogas, que deverá ser submetido a medidas educativas. O dependente químico, em razão do vício, tem diminuída sua capacidade de entendimento e de autodeterminação. E caso provada a dependência física e psíquica com relação ao tóxico, poderá ser isento de pena se cometer um crime, sendo submetido à medida de segurança.

É necessário, todavia, averiguar o grau de dependência do agente e suas condições subjetivas no momento do crime, pois nem todo usuário de entorpecentes é um irresponsável penal. Alguns autores consideram que o dependente leve é responsável, o moderado semi-imputável e o gravemente dependente um inimputável.

Para Führer (2000), a dependência capaz de gerar a inimputabilidade é aquela que induz o dependente à falta de conhecimento e entendimento do ilícito ou à incapacidade de controlar a sua vontade.

Ao lado da doença mental, entre as causas que excluem a imputabilidade do agente está o desenvolvimento mental retardado ou incompleto. São os casos em que a capacidade mental do indivíduo é incompatível com o estágio de vida em que se encontra, estando aquém do desenvolvimento normal para sua idade cronológica. Em razão da baixa capacidade mental, fica impossibilitado de avaliar racionalmente as situações da vida e, por conseguinte, é inimputável por não possuir o pleno entendimento e discernimento acerca de seus atos. Cita-se como exemplo os oligofrênicos e os portadores da Síndrome de Down.

Também estão enquadrados nesta hipótese, aqueles que ainda não amadureceram por falta de tempo, em razão da pouca idade cronológica (menoridade) ou da falta de convivência em sociedade (silvícolas).

Ponte (2007) estabeleceu a diferença entre desenvolvimento mental retardado e doença mental, referindo que esta abrange todas as manifestações mórbidas do funcionamento psíquico, impedindo o indivíduo de adaptar-se às normas reguladoras da vida em sociedade. Desenvolvimento mental retardado, por sua vez, dirige-se àqueles que não alcançaram um estágio de maturidade psicológica razoável, ou que, por causas patogênicas ou do meio ambiente em que vivem, tiveram retardado o desenvolvimento de suas faculdades mentais.

Há ainda que se falar nos chamados transtornos de personalidade anti-social. Segundo a definição de França (1998), são grupos nosológicos que se distinguem por um estado psíquico, capaz de determinar profundas modificações no caráter e no afeto. Não são, essencialmente, personalidades doentes ou patológicas, pois seu traço mais marcante é a perturbação da afetividade e do caráter, enquanto a inteligência se mantém normal ou acima do normal.

Em se tratando de personalidades psicopáticas, a grande polêmica diz respeito ao parágrafo único, do art. 26, da Lei Penal, que define esses indivíduos como semi-imputáveis.

Os perturbados mentais ou detentores de personalidades anormais ou desajustadas, não são, propriamente, portadores de doença mental. A Lei os considera semi-imputáveis pela capacidade de entendimento e posição fronteiriça com os enfermos mentais, o que constitui um grande equívoco, pois a realidade tem mostrado que os portadores de personalidades psicopáticas estão por trás da maioria dos crimes considerados bárbaros, com alto grau de violência e perversidade.

Os psicopatas, embora desprovidos de doença mental de origem orgânica, são fruto do meio social hostil em que vivem e acabam por desenvolver personalidades desajustadas, em razão de traumas sofridos e em decorrência de anomalias do caráter e do afeto. Das situações adversas, incorporaram à sua psiquê valores amorais e nocivos. Como disse França (1998), são privados do senso ético, deformados de sentimentos e inconscientes da culpabilidade e do remorso.

Embora providos de inteligência e capacidade de entendimento, são incapazes de controlar seus impulsos e de autogovernar-se, sendo carentes de um dos principais elementos da imputabilidade que é a capacidade de se determinar (vício de vontade).

São esses indivíduos que deveriam, na ordem penal, serem isentos de pena e submetidos a tratamento curativo nos hospitais de custódia, posto que suas anomalias raramente têm cura. São pessoas anti-sociais, com elevado grau de periculosidade.

Infelizmente, na prática, os aplicadores do Direito, ao arrepio da lei e por razões preconceituosas, acabam condenando o psicopata para cumprir pena privativa de liberdade nos estabelecimentos prisionais, onde convivem juntamente com os criminosos imputáveis e mentalmente sãos.

O resultado é desastroso, pois esses indivíduos, portadores de desvio de personalidade, após cumprirem as suas penas, retornam à sociedade ainda mais periculosos do que antes e, fatalmente, voltam a delinqüir. Ao passo que, se fossem considerados inimputáveis e recebessem medida de segurança, poderiam ficar perpetuamente sob tratamento, caso não fosse atestada, por perícia médica, a sua cura.

O citado parágrafo único do art. 26 do CP, ao colocar os indivíduos sociopatas na condição de responsáveis relativos, preconiza que fazem jus a uma atenuação sensível da pena. A situação é digna de insegurança jurídica.

Conforme visto, é possível a ocorrência da semi-imputabilidade. No entanto, seria mais sensato que o art. 26 do Código Penal fosse alterado, a fim de incluir, expressamente, ao lado dos portadores de doença mental e de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, os indivíduos portadores de transtornos de personalidade anti-social, posto que também se enquadram nos casos de inimputabilidade e isenção de pena.

Com relação ao tratamento penal dispensado a esses indivíduos, o médico-legista Genival Veloso de França, em Medicina Legal, defende que:

A pena está totalmente descartada pelo seu caráter inadequado à recuperação e ressocialização do semi-imputável portador de personalidade anormal. A substituição do sistema do duplo binário – aplicação sucessiva da pena e da medida de segurança por tempo indeterminado – pelo regime de internação para tratamento especializado é o que melhor se dispõe até agora no sistema penal dito moderno. Este é um dos aspectos mais cruciais da Psiquiatria Médico-Legal, não somente no que toca ao diagnóstico e à atribuição da responsabilidade, como também quanto às perspectivas de reabilitação médica e social, já que a incidência criminal entre esses tipos é por demais elevada. As medidas punitivas, corretivas e educadoras, malgrado todo esforço, mostram-se ineficientes e contraproducentes, fundamentalmente levando em consideração a evidente falência das instituições especializadas. É preciso rever toda essa metodologia opressiva, injusta e deformadora. (FRANÇA, 1998, p. 359).

Para Führer (2000), a expressão "perturbação da saúde mental", utilizada pelo Código para tratar do semi-imputável, em verdade, equivale à doença mental, muito embora algumas perturbações mentais não mereçam o nome de doença.

O mencionado autor defende que, atualmente, a distinção entre doença e perturbação mental não é inflexível, pois o conceito jurídico de doença mental é abrangente e se estende aos estados próximos, de modo que toda doença mental perturba a saúde mental, e toda perturbação da saúde mental deve receber tratamento de doença, no mundo do Direito.

É sensato que, no âmbito jurídico, o conceito de doença mental seja elástico. Entretanto, seria mais prudente incluir, no rol dos inimputáveis do art. 26, a expressão "portadores de transtorno de personalidade".

Em se tratando de causas que excluem a imputabilidade, cabe ressaltar que o Código Penal, em seu art. 28, inciso I, não excluiu a imputabilidade do agente que, em estado de paixão ou forte emoção, comete crime. No entanto, atenua a pena daquele que pratica um delito em estado de violenta emoção.

A emoção altera a consciência e a vontade, podendo influir na capacidade de discernimento das pessoas. Marques (1997) equipara a paixão à doença mental, quando afirma que se a emoção ou paixão tiverem caráter patológico, a hipótese se enquadrará no art. 26, caput, do CP.

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Sobre a autora
Farah de Sousa Malcher

Advogada e Jornalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALCHER, Farah Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2104, 5 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12564. Acesso em: 19 mar. 2024.

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