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A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual

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05/04/2009 às 00:00
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4. IDENTIFICAÇÃO DA INIMPUTABILIDADE: PERÍCIA MÉDICO-LEGAL:

O ordenamento jurídico pátrio adotou o princípio do livre convencimento motivado, no qual permite ao juiz julgar de acordo com o seu arbítrio, desde que o faça fundamentadamente. O Código de Processo Penal, por sua vez, incorporou o princípio da não hierarquia entre as provas processuais, colocando, no mesmo patamar valorativo, a prova científica e a testemunhal, por exemplo.

Muito embora o juiz seja livre para julgar de acordo com o seu convencimento, em se tratando de inimputabilidade por doença mental, a Lei Adjetiva determinou que a verificação da saúde mental do agente deve, obrigatoriamente, ser diagnosticada por perícia médica. O legislador entendeu que o juiz não é suficientemente apto para verificar e atestar a inimputabilidade do réu, o que requer conhecimentos específicos que, na maioria das vezes, fogem ao magistrado.

Os exames de corpo de delito e as perícias médico-legais estão previstos nos artigos 158 a 184, Capítulo II, do CPP. A finalidade da perícia é produzir uma prova científica a fim de demonstrar um fato. Ponte (2007) esclarece que existem dois sistemas jurídicos que regem a avaliação da perícia pelo juiz: o vinculatório e o liberatório. Pelo primeiro, o magistrado está subordinado às conclusões periciais, enquanto que no segundo, o juiz tem a prerrogativa de rejeitar o laudo pericial ou de acolhê-lo no todo ou em parte.

O Código Processual Penal adotou o sistema liberatório. Importante observar o contexto histórico em que o codex entrou em vigor, através do Decreto-Lei nº 3.639/41, em plena ditadura militar. É sabido que os governos ditatoriais têm como característica o autoritarismo e o desrespeito aos direitos e garantias individuais. O fato de o juiz poder rejeitar a prova científica, naquela época, era conveniente para respaldar as arbitrariedades do governo de exceção.

Atualmente, embora ainda vigore o princípio da não hierarquia entre as provas penais, o juiz, para acatar ou rejeitar um laudo que ateste a inimputabilidade do acusado, é obrigado a fundamentar sua decisão de forma precisa e coerente. Como aduziu Ponte (2007), o poder que a lei lhe confere de não ficar adstrito ao laudo pericial, não quer dizer que possa assumir as funções de expert. O juiz não pode ignorar a perícia sem embasamento científico.

Todavia, caso o magistrado entenda que o laudo pericial é falho, genérico ou incompleto, pode requisitar a retificação. Destarte, não lhe é permitido afastar o laudo como se esse não existisse, nem proferir opiniões pessoais que se sobreponham ao conhecimento científico e irrefutável dos peritos.

Não se pretende, com isso, afirmar que o perito está sempre certo, posto que, como ser humano está passível de erros e ainda de suspeição e impedimento. Por isso, o juiz deve ficar atento ao procedimento da perícia, verificando se obedeceu aos requisitos legais.

As perícias são realizadas nas instituições médico-legais, consideradas órgãos ou entidades públicas oficiais do Estado, ou, por profissionais médicos ou liberais de nível superior da área da saúde (peritos não-oficiais), nestes casos, nomeados pelo delegado de Polícia que presidir o inquérito.

No Estado do Pará, no ano de 2000, o órgão público responsável pelas perícias oficiais ganhou autonomia técnica, científica e orçamentária, tornando-se a primeira autarquia pericial do Brasil. A mudança de órgão para entidade pública, dotada de personalidade jurídica própria, representou um avanço na garantia de imparcialidade dos exames de corpo de delito produzidos no Estado, uma vez que se desvinculou da Polícia Civil.

Os laudos produzidos pelos órgãos ou entidades públicas oficiais gozam de presunção relativa de veracidade e idoneidade, até que se prove o contrário.

As perícias podem ser realizadas em pessoas vivas ou mortas, em animais e nos objetos. Exame de corpo de delito é o nome genérico que se dá às diversas espécies de perícias. In casu, interessa abordar os exames periciais de sanidade mental aos quais se submetem os réus suspeitos de serem inimputáveis. O laudo dos psiquiatras forenses deve ser solidamente fundamentado, referindo qual a patologia mental do examinado, o tratamento a ser dispensado e o grau de sua periculosidade.

A infeliz realidade é que, no Brasil, em seus diversos Estados, existe carência na quantidade de peritos especialistas em psiquiatria forense, o que contraria a crescente demanda para a produção de exames de insanidade mental e seus respectivos laudos.

A escassez de profissionais e a falta de interesse do poder público em investir na formação destes, acaba por acarretar a paralisação de inúmeros processos judiciais que dependem de laudo pericial para seu andamento, o que compromete a eficácia da prestação jurisdicional.

A demora na realização dos exames e na confecção dos respectivos laudos, constitui ofensa explícita ao art. 150, § 1º, do Código de Processo Penal, o qual estabelece que o prazo para realização do exame de sanidade mental será de 45 (quarenta e cinco) dias, prorrogável somente em caso de necessidade devidamente fundamentada.


5. INIMPUTABILIDADE NO PROCESSO PENAL:

A inimputabilidade do agente pode ser verificada em sede de inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente (art. 149, § 1º, CPP). No entanto, somente o juiz poderá determinar a realização de perícia para apurar a higidez mental do indiciado. O magistrado poderá agir ex ofício, ou ainda, por requisição do Ministério Público ou do curador, defensor, ascendente, descendente, irmão ou conjugue do acusado.

Se considerar que a requisição não tem razão de ser, ou constitui medida meramente protelatória ou tumultuária, poderá o juiz indeferir a realização do exame (art. 184, CPP). Para isso, devem inexistir dúvidas acerca da integridade mental do acusado, caso contrário o indeferimento constituirá cerceamento de defesa. Mas, quando existem fundadas suspeitas acerca da higidez mental do réu, o exame é obrigatório.

A realização de perícia psiquiátrica durante o inquérito policial não obedece ao princípio do contraditório. Entretanto, uma vez que o exame é realizado, deve o juiz, concomitantemente, instaurar portaria para realização do incidente, perante o juízo da futura causa. Uma vez determinado o exame no curso do inquérito, antes da sua realização, é nomeado um curador ad cautelam ao indiciado.

Findo o inquérito, caso a perícia conclua pela insanidade mental do indiciado, os autos do incidente são encaminhados em apenso ao Ministério Público, para o oferecimento da denúncia. Caso o representante do Parquet seja favorável ao laudo pericial, deverá pugnar pela absolvição imprópria do denunciado (art. 386, VI, do CPP).

Mas caso o juiz receba a denúncia ou queixa, o curador do denunciado será formalmente citado para oferecer defesa prévia e atuar nas demais fases do processo judicial.

A recente reforma no Código Processual Penal introduzia pela Lei n. 11.719/08, trouxe a possibilidade de o juiz fazer o julgamento antecipado da lide, através da absolvição sumária, nas hipóteses do art. 397 e incisos. O inciso n. II, por sua vez, exclui a inimputabilidade, dada a imprescindibilidade desta ser atestada mediante exame de corpo de delito, conforme visto, não podendo o juiz julgar a questão sem a apuração da mesma durante a instrução.

No curso regular do processo, o juiz, de ofício ou a requerimento das pessoas legitimadas, é o competente para instaurar incidente de insanidade mental, hipótese em que lhe será nomeado curador, cuja falta acarretará nulidade absoluta (art. 149, § 2º, CPP).

Uma vez instaurado o referido incidente, os autos principais ficam suspensos até o julgamento do mesmo, que dependerá da conclusão do exame pericial e do respectivo laudo. O prazo para elaboração do exame é de 45 dias, o qual poderá ser prorrogado a critério do juízo, caso os peritos demonstrem a necessidade de dilação (art. 150, § 1º). Ao acusado, é garantido o direito de oferecer quesitos.

A suspensão do processo principal, em virtude do incidente, não obsta o prosseguimento da instrução processual e não impede a produção de provas documentais, testemunhais, dentre outras. O prazo prescricional tem curso regular e não se submete a causas interruptivas ou suspensivas.

Da decisão que determina ou indefere a realização do exame de sanidade mental, não caberá recurso, o que não é sensato, posto que a natureza da matéria discutida é de ordem pública e de interesse geral. O incidente terá prosseguimento, ainda que uma das partes desista da realização do exame, posto que uma vez determinado pelo magistrado, não há como voltar atrás.

O laudo pericial que concluirá pela imputabilidade, semi-imputabilidade ou inimputabilidade do acusado, poderá ser homologado ou impugnado pelo magistrado. Na última hipótese, o juiz deve apresentar argumentos consistentes e determinar a feitura de novo exame.

No caso do laudo ser homologado, cabe ao juiz reconhecer ou não a inimputabilidade ou semi-imputabilidade do réu. Reconhecida a insanidade mental, nomeará curador ao réu (art. 151) para acompanhar o trâmite, uma vez que o acusado tem sua capacidade processual afetada e é impedido de desempenhar atos em juízo.

O incidente de insanidade mental se processa em autos apartados e somente após a apresentação do laudo, será apenso ao processo principal (art. 153, CPP).

Encerrada a instrução criminal e superadas as fases dos arts. 499 e 500 do CPP, no rito ordinário, o juiz sentencia a causa. Se reconhecer a inimputabilidade, absolve impropriamente o réu, que significa isentá-lo de pena e submetê-lo a medida de segurança em estabelecimento de custódia ou ambulatorial, de acordo com o caso.

A absolvição imprópria, ao contrário do que muitos pensam, não exime o autor de responder pelo ilícito, nem o deixa impune, uma vez que a medida de segurança é uma espécie de sanção penal, de caráter preventivo e conteúdo condenatório, cuja finalidade é afastar o agente do convívio social e submetê-lo a tratamento curativo.

Pode ocorrer da insanidade do réu ser superveniente ao cometimento do crime, o que acarretará a suspensão do processo até o restabelecimento do estado de saúde. Se restabelecida, o feito retoma o trâmite regular. Neste caso, o juiz poderá ordenar a internação do acusado em hospital de custódia. O mesmo acontece com o condenado cuja pena já está sendo executada e a quem sobreveio doença mental.

No procedimento do Tribunal do Júri, caso atestada a inimputabilidade na fase de pronúncia, o juiz deverá absolver sumariamente o réu, conforme o art. 415, IV, da Lei Processual Penal [02]. A sentença que absolve o réu sumariamente é de mérito e produz coisa julgada. O art. 416 estabelece que contra a sentença de absolvição sumária caberá apelação.

Importante observar o parágrafo único [03] do citado art. 415, introduzido pela Lei nº 11.689/2008. De acordo com ele, nos casos de inimputabilidade por doença ou retardo mental, o réu, na fase da pronúncia, não será absolvido sumariamente, salvo quando esta for alegada como única tese defensiva. Caso contrário, o juiz deverá pronunciar o acusado para que o Júri, com base nas provas, decida a questão.

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Precisa é a lição de Antonio Carlos da Ponte, em Inimputabilidade e Processo Penal:

Justifica a absolvição sumária a existência de prova cristalina, límpida, segura e incontroversa da existência de causa excludente da ilicitude ou dirimente da culpabilidade. A mínima dúvida extraída do conjunto probatório a respeito da veracidade de uma ou outra versão traz a certeza de que a absolvição liminar não tem lugar no processo, sendo caso de pronúncia. (PONTE, 2007, p. 110).

De acordo com o citado autor, a inimputabilidade, per si, não justifica a absolvição sumária do acusado, pois, quando existem dúvidas acerca da autoria do delito, a questão deve ser obrigatoriamente decidida pelo Júri.

No caso do semi-imputável o juiz, independente da matéria alegada pela defesa, deverá submetê-lo ao procedimento do Júri. Esse é o entendimento dominante da jurisprudência, conforme abaixo transcrito:

Se nos crimes da competência do Júri o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de autoria, ainda que comprovada por perícia a semi-imputabilidade do acusado, deve pronunciá-lo, eis que tal circunstância não isenta o réu de pena, apenas recomenda a sua redução" (TJSP – Rel. Des. Cerqueira Leite – RT 756/569).

Caberá ao Júri não somente julgar o semi-imputável como também, no caso de condenação, votar acerca da aplicação de pena ou medida de segurança.

Poderá ocorrer, todavia, da doença mental ser superveniente à pronúncia do acusado. A hipótese gera controvérsias jurisprudenciais a respeito de submeter ou não o réu a julgamento. O art. 152 do CPP preceitua que o processo deve ficar suspenso até que a saúde do agente se restabeleça. Mas há julgados no sentido de que o juiz não poderá excluir do Conselho de Sentença a apreciação da causa, ainda que seja irreversível a perturbação mental do acusado.

Caso seja levado a Júri, o réu acometido por doença mental posterior à pronúncia, será julgado regularmente pelos jurados, que poderão absolvê-lo ou condená-lo, sem preocupação com o atual estágio da anomalia, uma vez que o mesmo não era inimputável no momento do crime. Se condenado, no entanto, o réu deverá ser encaminhado à internação em hospital de custódia. Persistindo a anomalia, o art. 183 da LEP determina que a pena seja convertida em medida de segurança.

Importante destacar a prerrogativa do Júri de produzir prova em plenário, assegurada pelos arts. 478, parágrafo único, e 497, inciso XI, ambos do CPP. Assim como o juiz pode determinar de ofício a instauração do incidente de insanidade mental, os jurados também têm esse direito, cujo indeferimento gera nulidade. Basta um voto para justificar a realização da diligência que, caso não se realize durante a sessão, dissolver-se-á o Conselho de Sentença e nova data será designada para a realização do Júri.

Se a defesa do acusado, durante o Tribunal do Júri, alegar doença mental, sem que haja nos autos qualquer prova nesse sentido, não caberá aos jurados, nem ao juiz togado acolher a inimputabilidade do réu, sem a devida comprovação por laudo psiquiátrico. Nesta hipótese, o juiz-presidente poderá suspender o julgamento e determinar a feitura do exame competente. Caberá aos jurados decidir sobre a inimputabilidade do réu submetido a incidente de insanidade mental.

Questiona-se sobre a possibilidade do Júri discordar das conclusões do laudo pericial. Pelo princípio da soberania das decisões, o Júri não é obrigado a acatar a prova científica. Entretanto, a Lei Adjetiva Penal garante o direito do réu recorrer das decisões do Júri que forem manifestamente contrárias às provas dos autos.

Ponte (2007) refere que os jurados podem repugnar o laudo pericial, desde que disponham de outro documento médico ou de esclarecimentos complementares de outros experts. Para ele, a liberdade do Júri não pode incorrer em abuso.

Nos Juizados Especiais Criminais é possível a composição civil entre o inimputável e a vítima. Na transação penal, o inimputável ou semi-imputável poderá ser submetido a tratamento ambulatorial, medida esta que não implica em privação de liberdade. Para isso, o curador do réu e seu defensor devem aceitar a proposta do Ministério Público que, homologada pelo magistrado, será fixada como condição para a caracterização da medida despenalizadora.

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Sobre a autora
Farah de Sousa Malcher

Advogada e Jornalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALCHER, Farah Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2104, 5 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12564. Acesso em: 21 nov. 2024.

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