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A guarda compartilhada e a Lei nº 11.698/08

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4. A GUARDA COMPARTILHADA E A LEI Nº 11.698/08

Como já mencionado em trechos esparsos deste trabalho, a recente Lei nº 11.698/08 instituiu expressamente no ordenamento jurídico pátrio o instituto da guarda compartilhada. Embora sancionada em 13 de junho de 2008 e publicada no Diário Oficial da União em 16 de junho do mesmo ano, a referida lei somente entrou em vigor no país 60 (sessenta) dias após a citada publicação, por força da vacatio legis instituída no seu artigo 2º.

Nesse capítulo, pretende-se analisar os dispositivos do Código Civil alterados por esta lei para demonstrar que a mesma, embora possua algumas falhas, deve ser muito bem recebida pela comunidade jurídica nacional.

Primeiramente, a lei acrescenta o § 1º ao art. 1.583 do Codex, trazendo no seu bojo o conceito de guarda compartilhada, nesses termos: "Compreende-se por [...] guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns".

Nota-se que o conceito alhures transcrito, praticamente em sua íntegra, vai de encontro com o conceito já apresentado neste trabalho no capítulo 2. Não obstante, o conceito legal possui uma falha que merece ser apontada, ainda que de passagem: ele restringe o exercício da guarda compartilhada aos pais, vedando a utilização deste instituto por outras pessoas que eventualmente venham a cuidar dos menores, vedação esta que se distancia do conceito moderno de família, onde os vínculos de parentesco são muito menos jurídicos, muito mais afetivos (parentesco sócio-afetivo).

Nesse sentido, registre-se que o Professor Sérgio de Magalhães Filho, em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), edição de número 04, ano 2008, páginas 50-62, noticia interessante caso julgado pela justiça paulista antes do advento da lei em que se permitiu o exercício compartilhado da guarda entre a mãe e o tio materno e padrinho de um menor. Nesse mesmo artigo, o autor registra a tendência da jurisprudência pátria de permitir que a guarda compartilhada seja exercida também por terceiros, como se vê do aresto a seguir reprisado:

GUARDA DE MENOR. PEDIDO FORMULADO PELO PAI. MENOR COM 5 ANOS DE IDADE, QUE VIVE SOB A GUARDA DE FATO DE UMA TIA. Interdição da mãe do menor, por deficiência mental. Curadoria exercida pela irmã, guardiã de fato do menor. Concessão da guarda do pai não recomendada. Manutenção do menor junto à guardiã e à mãe. Solução que melhor atende, no momento, aos interesses do menor. Ação julgada procedente. Recurso provido. (TJSP, Apelação Cível 111.249-4, Relª. Zélia Maria Antunes Alves, j. 21.02.00).

A nosso sentir, para que não seja afastada a possibilidade de guarda compartilhada ora em apreciação, não deve ser feita uma interpretação restritiva, taxativa do art. 1.583, § 1º, do Código Civil, mas sim extensiva, permitindo-se, portanto, a participação de terceiros nesta modalidade de guarda, conforme já consagrado pela jurisprudência. Com esse fim, o dispositivo em questão deve ser lido ao lado do teor do art. 1.584, § 5º (antigo art. 1.584, parágrafo único), segundo o qual "Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade".

Prosseguindo na análise da novel legislação, verifica-se que o art. 1.584 do Código foi profundamente alterado por ela. Em um primeiro momento, afirma-se que a guarda compartilhada (ou unilateral também) pode ser decretada por requerimento consensual dos pais ou de qualquer deles (inciso I: "requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar") ou ainda judicialmente (inciso II: "decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe").

Como já referido no capítulo 3, não há que se olvidar que a tarefa de aplicação da guarda compartilhada torna-se muito mais fácil quando há consenso entre os pais a respeito deste instituto. Para tanto, eles devem estar completamente cientes das responsabilidades que irão cumular e, principalmente, dos benefícios que a medida trará aos filhos menores. Atento a tudo isso, o art. 1.584, § 1º, passa a estatuir que "Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas".

O ponto nevrálgico da guarda compartilhada, pelo menos para parte da doutrina civilista, diz respeito à aplicação da medida justamente quando não ocorrer o consenso acima mencionado. Nesse trilhar, diante da existência prévia de litígio entre os pais dos menores, não seria recomendável a fixação desta espécie de guarda, sob pena não só de frustração da medida, mas, sobretudo, de violação do melhor interesse dos filhos.

É com esse fundamento que parcela da doutrina vem criticando o teor do art. 1.584, § 2º, do Código Civil, que assim dispõe: "Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada".

No entender dessa corrente, tal dispositivo, ao estabelecer como regra geral a guarda compartilhada na hipótese de inexistência de acordo entre os pais (por determinação judicial, portanto), implicaria em um franco retrocesso, pois o art. 1.584, no seu caput, antes da alteração feita pela lei, determinava que, nesse caso, a guarda dos filhos será "atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la", o que resguardaria com mais eficiência o melhor interesse do menor.

Em resumo, seria um grave erro impor a guarda compartilhada como regra geral em não havendo acordo dos pais sobre ela, pois seria enorme o risco de frustração dessa medida nessa hipótese, motivo pelo qual deveria ser mantida a regra geral anterior, mais condizente com o princípio do melhor interesse do menor.

Destarte, o problema apontado por essa parcela da doutrina é apenas aparente.

De fato, a redação do art. 1.584, § 2º, do Código Civil, é, sem dúvida alguma, a maior inovação trazida pela Lei nº 11.698/08. Em verdade, tal dispositivo pretendeu afastar a guarda unilateral (mesmo aquela exercida por "quem revelar melhores condições", como afirmava o antigo art. 1.584, parágrafo único) como regra geral, substituindo-a pela guarda compartilhada.

Essa mudança da regra geral de estipulação da guarda judicial deve ser intensamente comemorada, pois, como já visto ao longo deste trabalho, a guarda compartilhada, por diversos motivos, é aquela medida que mais se coaduna com o princípio do melhor interesse do menor.

A existência de litígio entre os pais não prejudicará o sucesso da guarda compartilhada. Isso porque, conforme trabalhado no capítulo 3, para a aplicação desta medida na referida hipótese, exige-se previamente a realização da mediação interdisciplinar, meio altamente eficaz de resolução de conflitos familiares. Apenas e tão-somente no caso de insucesso da mediação, algo que, na prática, se verifica pouco provável, é que se recorrerá à medida excepcional da guarda unilateral, desde que com os parâmetros definidos no art. 1.584, § 5º (será atribuída a quem revelar compatibilidade com a natureza da medida), tudo em proteção ao melhor interesse do menor.

É com esse raciocínio que deve ser lida a expressão "sempre que possível" indicada no art. 1.584, § 2º, ou seja, em caso de inexistência de acordo entre os pais sobre a guarda do filho, valerá a regra geral da guarda compartilhada, sempre que a mediação previamente feita conseguir semear terreno fértil para a sua consecução, conseguir que o conflito existente entre os genitores, se não for solucionado, pelo menos não interfira no cumprimento conjunto do poder familiar; em não acontecendo tal êxito, aí sim a guarda compartilhada não será possível, devendo ser aplicada a medida excepcional da guarda unilateral, com os ditames estipulados pelo já citado § 5º do art. 1.584.

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Nesse sentido, vale a pena noticiar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente, já sob a égide da Lei nº 11.698/08, entendendo não haver harmonia suficiente entre os pais que permitisse o sucesso da guarda compartilhada, exarou a seguinte decisão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL LITIGIOSA. PEDIDO DE GUARDA COMPARTILHADA. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES PARA DECRETAÇÃO. A guarda compartilha está prevista nos arts. 1583 e 1584 do Código Civil, com a redação dada pela Lei 11.698/08, não podendo ser impositiva na ausência de condições cabalmente demonstradas nos autos sobre sua conveniência em prol dos interesses do menor. Exige harmonia entre o casal, mesmo na separação, condições favoráveis de atenção e apoio na formação da criança e, sobremaneira, real disposição dos pais em compartilhar a guarda como medida eficaz e necessária à formação do filho, com vista a sua adaptação à separação dos pais, com o mínimo de prejuízos ao filho. Ausente tal demonstração nos autos, inviável sua decretação pelo Juízo. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJRS - Agravo de Instrumento nº 70025244955, Sétima Câmara Cível, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 24/09/2008, Publicado em 01/10/2008).

Retomando o raciocínio, constata-se que, com a finalidade de reforçar o posicionamento ora exposto, o art. 1.584, § 3º, assevera que "Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar". Assim, na hipótese do art. 1.584, § 2º, antes da aplicação da guarda compartilhada, deve ser realizada necessariamente a mediação interdisciplinar. A nosso ver, quando o dispositivo afirma que o juiz poderá, na verdade, está a criar um poder-dever para ele, ou seja, desde que imprescindível (caso do art. 1.584, § 2º), o magistrado tem o dever de determinar a prática da mediação interdisciplinar, tanto assim que é possível a sua atuação de ofício, sem qualquer tipo de violação ao princípio da inércia.

Aliás, por faltar conhecimentos técnicos ao juiz para resolução de conflitos deste jaez, não poderia ser outra a alternativa proposta pela lei a não ser impor a prática da mediação interdisciplinar como etapa prévia da aplicação da guarda compartilhada quando não houver acordo dos pais sobre esta matéria.

Em síntese, é positiva a modificação patrocinada pela Lei nº 11.698/08 ao substituir a regra geral da guarda unilateral a quem revelar melhores condições para exercê-la (antigo art. 1.584, parágrafo único) pela guarda compartilhada (atual art. 1.584, § 2º), por ser essa medida a que mais atende ao princípio do melhor interesse do menor. Na hipótese de não haver acordo entre os pais sobre tal medida, ela será aplicada "sempre que possível", ou seja, sempre que for proveitosa a mediação interdisciplinar, a qual deverá ser determinada pelo magistrado. Entretanto, se não houver sucesso na mediação, será aplicada a medida excepcional da guarda unilateral, obviamente a quem relevar compatibilidade com a natureza desta medida, nos termos do art. 1.584, § 5º, tudo em atenção ao melhor interesse do menor.

Embora, portanto, a lei em análise deva ser comemorada pela comunidade jurídica nacional, de outro lado, ela comete um grave erro ao determinar que o art. 1.584, § 4º, tenha a seguinte redação: "A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho". Ora, esse dispositivo fere de morte o princípio do melhor interesse do menor, pois se preocupa muito mais em punir uma conduta irregular dos pais do menor, ignorando que essa punição, na verdade, prejudicará sensivelmente o desenvolvimento do filho, que perderá tempo precioso de convívio com seus genitores.

Concluindo, não obstante suas falhas, as quais devem ser apontadas para aprimoramento da sua aplicação, a Lei nº 11.698/08, por tudo quanto discutido neste trabalho, deve ser bem recebida pela comunidade jurídica nacional.

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Sobre o autor
Leonardo Barreto Moreira Alves

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Especialista em Direito Civil pela PUC/MG Mestre em Direito Privado pela PUC/MG Professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios Professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) Membro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A guarda compartilhada e a Lei nº 11.698/08. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2106, 7 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12592. Acesso em: 3 mai. 2024.

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