Resumo: Este trabalho tem como objeto o estudo da possibilidade dos agentes políticos serem considerados sujeitos ativos de atos de improbidade administrativa, tal como regulado através da Lei nº 8.429/92. O tema reveste-se de relevância em virtude de sua atualidade. Basta, para tanto, atentar-se para os acontecimentos relativos aos atos da Administração Pública ocorridos nos últimos anos. Entende-se, então, que a discussão acerca do tema não se encontra esgotada, haja vista que atos de improbidade administrativa continuam sendo praticados pelos diversos agentes públicos e atualmente há enorme celeuma em relação à aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos. O presente trabalho está dividido em quatro partes. A primeira analisa a corrupção e sua relação com a improbidade administrativa, passando ainda pela evolução legislativa do combate à improbidade administrativa. A segunda parte cuida da análise dos princípios constitucionais que norteiam a moralidade administrativa, bem como faz uma análise da tríade moralidade, legalidade e probidade. Num terceiro momento aborda-se a sistemática dos sujeitos ativos de atos de improbidade administrativa. Por fim, é analisada a decisão do Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 2.138-6-DF e suas conseqüências para o tema em estudo.
Palavras-chave: Administração pública, improbidade administrativa, agentes políticos.
Sumário: Capítulo 1 - A busca pela moralidade administrativa. 1.1. A cultura da corrupção. 1.2. Corrupção e improbidade administrativa. 1.3. A evolução constitucional e legislativa da repressão à improbidade administrativa no Brasil. Capítulo 2 - Os princípios constitucionais norteadores da moralidade administrativa. 2.1. O princípio da moralidade administrativa. 2.2. O princípio da probidade administrativa. 2.3. Moralidade, legalidade e probidade. Capítulo 3 - Sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa. 3.1. Sujeitos ativos de atos de improbidade administrativa. 3.2. Alcance do termo agente público constante da lei de improbidade administrativa. 3.3. Agentes políticos. 3.4. A improbidade administrativa e os agentes políticos. Capítulo 4 - Crimes de responsabilidade ou atos de improbidade administrativa. 4.1. Crimes de responsabilidade. 4.2. A relação entre crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa. 4.3. A reclamação nº 2.138-6-DF. Considerações finais. Referências.
Capítulo 1 - A busca pela moralidade administrativa
A corrupção é um dos maiores entraves para o desenvolvimento de nosso País. Não é de hoje que assistimos incrédulos a atos de corrupção que atordoam toda a sociedade. Desde os primórdios do Estado brasileiro convivemos – às vezes de forma até muito aceitável – com atitudes que vão de encontro à idéia basilar da Constituição de todos os Estados que é o bem comum. Antagonicamente à eterna procura do bem comum, temos a busca dos interesses individuais, que, infelizmente, em inúmeros casos são alçados a uma posição superior ao bem comum.
A busca pelo interesse individual em contraponto ao bem comum não é exclusividade de particulares que tentam de alguma forma obter vantagem em desfavor do Estado. Encontramos o mesmo comportamento nos agentes públicos, que, para o exercício regular de suas prerrogativas e para que o bem comum seja alcançado, têm poderes que lhes são conferidos pelo povo, poderes estes que algumas vezes são utilizados para fins contrários aos quais foram concedidos. Wallace Paiva Martins Júnior [01] descreve muito bem essa prática:
Embora o poder seja de elementar uso regular do agente público, e nessa medida também represente um dever para o alcance dos fins objetivados pelo direito, muitos investidos nessa condição o empregam como uma fonte inesgotável de aquisição, usufruto, distribuição e transmissão de regalias e mordomias, um modo de obter vantagens ilícitas para si ou para outrem [...], como um meio para distribuir favores ou prejudicar direitos, exercer o poder de maneira abusiva, em concurso com pessoas físicas e jurídicas de direito privado, motivo pelo qual não é de hoje a preocupação legislativa concreta com o fenômeno da imoralidade administrativa.
A corrupção não é um fenômeno recente. Em todas as sociedades pode-se encontrar algum tipo de corrupção, em maior ou em menor escala, entretanto, como afirma George Sarmento [02]: "À medida que a humanidade evolui, as sociedades ficam mais complexas" de tal sorte que a ética se torna mais rígida e condutas que antes eram tidas como normais, hoje não são mais aceitas pela sociedade. E mais: "Atitudes toleradas no Ancien Régime e nos primórdios do regime republicano, hoje, configuram atos de improbidade administrativa".
1.1. A cultura da corrupção.
No Brasil, desde o período da colonização portuguesa convivemos com atos que podem ser considerados como embrionários dos atuais atos de improbidade. Podemos citar como exemplos os inúmeros privilégios que eram concedidos aos que auxiliavam os representantes da Coroa em solo brasileiro: as vantagens ilícitas, o malbaratamento dos recursos públicos, dentre outros.
Acerca do período de transição do Império para a República, Rafael Cláudio Simões [03] expõe:
A transformação do nosso regime político de Império para República, em que pese todas as expectativas que existiam naquele período, acabou por se revelar também pouco substantiva do ponto de vista da cidadania e do combate à corrupção. [...] Os poderes públicos continuavam dominados pelas elites e seus interesses e a descentralização serviu, na verdade, para "democratizar" o acesso das elites estaduais ao poder local.
Não podemos esquecer as críticas formuladas pelo saudoso Pontes de Miranda [04] à República Velha:
[...] não há nenhum país em que sejam tão irresponsáveis e irresponsabilizados os dirigentes, os funcionários e os próprios particulares. Nada se apura; só há um limite para os desmandos e dilapidações dos dinheiros públicos, dos incapazes, das instituições: o apetite dos funcionários, governantes e gestores.
Ainda analisando a República, Sarmento [05] expõe o pensamento exarado por Rui Barbosa:
Rui Barbosa comparava a República a um ser ‘multimâmico’, uma gigantesca vaca de milhares de tetas, nas quais se dependuram insaciáveis e contumazes mamadores a sugar infinitamente suas riquezas. Para a mamata não havia desmame. Todos queriam uma boquinha, um emprego de fachada, mordomias nababescas, prestígio e poder. Uma vida de fausto. A metáfora do jurista baiano é uma alegoria que simboliza o descaso das elites brasileiras com o patrimônio público, considerado res nullius – coisa de ninguém – a ser livremente utilizado para fins privados, sobretudo para o enriquecimento ilícito e para a manutenção do empreguismo, isenção ilegal de impostos, multas, concessões gratuitas, etc.
Por sua vez, Graciliano Ramos, antes de se tornar um brilhante escritor, exerceu entre 1928 e 1930 o cargo de Prefeito de Palmeira dos Índios. Enquanto prefeito foi um político honesto e zeloso com os cofres públicos. Sarmento [06], referindo-se a Graciliano, afirma:
[...] embora tenha dado grandes demonstrações de sua integridade pessoal, não conseguiu convencer os seus conterrâneos de que o ato administrativo era isento de lucro pessoal, de que as verbas não podiam ser desviadas para os bolsos de parentes e aliados políticos. [...] Em seu famoso Relatório ao Governador do Estado de Alagoas, demonstrou que a probidade na gestão da coisa pública começa a ser construída a partir da decisão política de romper com o clientelismo provinciano e com o favorecimento a grupos econômicos comprometidos com a fraude eleitoral, com a sonegação de impostos e com o tráfico de influência.
O quadro exposto por Pontes de Miranda, citado há pouco, esteve completamente presente até pouco tempo atrás. Políticos e funcionários graduados tinham certeza da impunidade em relação aos seus deslizes funcionais, tendo por máxima o "rouba, mas faz", que se refletia no conformismo da sociedade.
Nos dias de hoje, não é incomum ligarmos a televisão ou abrirmos um jornal e lermos sobre casos de corrupção. Presenciamos desvios de milhões de reais, tráfico de influência, negociatas e inúmeros outros atos reprováveis. Todos esses atos importam por conseqüência lógica em diminuição de investimentos em saúde, educação, segurança pública, infra-estrutura e outros tantos investimentos afetos ao Estado e extremamente necessários em nosso País.
Nesse sentido, Leonardo da Costa Barreto [07] ressalta que para um País como o nosso a corrupção tem efeitos preocupantes:
A corrupção pública atingiu índices alarmantes nos últimos anos. Segundo pesquisas, a proporção é a seguinte: a cada R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) desviados dos cofres públicos uma criança morre. É que se o referido valor fosse investido em redes de esgoto, por exemplo, evitaríamos uma série de doenças, as quais levam a óbito inúmeras crianças.
A corrupção no Brasil está tão arraigada que é como se fosse parte de sua cultura. Encontramos pequenos atos de corrupção tidos como normais perante a sociedade. Pode-se usar como exemplo o fato de motoristas que subornam policiais rodoviários para evitar que os mesmos multem o condutor do veículo quando encontrada alguma irregularidade. Wallace Paiva Martins Júnior [08] descreve muito bem esse fenômeno de absorção por parte da sociedade da cultura da improbidade:
Essa cultura da improbidade foi fomentada, anos e anos, não só com o incentivo passivo da própria população espoliada [...] como, também, com a confortável impunidade dos autores dos maiores atentados à moralidade que deve presidir os negócios públicos. [...] Tão arraigada na cultura popular brasileira, produziu uma imagem do malbaratamento da coisa pública como regular alicerce do próprio Estado.
Adiante, Wallace Paiva Martins Júnior [09], arremata a questão da cultura da improbidade e as suas conseqüências, bem como, a sua solução, a saber:
Na essência, a cultura da improbidade atribuiu ao patrimônio público, isto é, aos bens, direitos e interesses e valores materiais e morais da sociedade, uma absurda condição de res nullius ou quiçá de res dereclita, quando em verdade se trata de incontestável res omnius. [...] Por isso, a adoção de um sistema composto de meios eficientes para salutar prevenção e exemplar punição dos culpados nas mais variadas instâncias é providência útil para a sagração da credibilidade da democracia e da confiança nas instituições, de forma a remodelar na sociedade brasileira um grau de respeito à coisa pública.
A idéia de que as coisas do Estado não são de ninguém como muito bem exposto por Paiva Martins é de extrema repugnância e posicionamento este que deve ser combatida frontalmente. As coisas públicas não são res nullius, muito pelo contrário, a coisa pública necessita, exatamente por ser coisa pública, dos maiores cuidados no seu trato.
Devem-se ressaltar, entretanto, as conseqüências nefastas ao desenvolvimento social do País advindas da corrupção. No dizer de Madeleine de Paula Lima [10]:
Sem dúvida, qualquer desvio de verba pública constitui um prejuízo para a comunidade em geral, alcançando todas as classes, por suas conseqüências nas interações sociais, em prazo maior ou menor. No entanto, o desvio das verbas destinadas às políticas sociais constitui prejuízo maior para uma vasta população, haja vista que enfraquece a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que compõem a base do direito ao desenvolvimento, gerando um círculo vicioso de falta de perspectiva de promoção social e afetando, muitas vezes, várias gerações.
Por fim, os atos de corrupção podem ser classificados, de acordo com o seu grau de complexidade, em atos de microcorrupção e de macrocorrupção. George Sarmento [11] dá como exemplo de atos de microcorrupção "o uso de veículos oficiais, utilização de linhas telefônicas da repartição para fins particulares, [...] peculato, recebimento de propinas ou presentes [...]". Adiante, Sarmento [12] tece alguns comentários acerca da macrocorrupção, dando como exemplo a pilhagem do patrimônio público e que ela atinge "dimensões astronômicas", chegando a afirmar que a movimentação proveniente de crimes financeiros é estimada em U$ 1 trilhão de dólares anuais em escala mundial. Desse montante, estipula-se que U$ 100 bilhões de dólares provêm de atos de improbidade administrativa.
Fala-se, portanto, de uma cifra considerável se levar em consideração que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro se encontra hoje na ordem de U$ 1.3 trilhão [13], de tal sorte que, anualmente, em todo o mundo, movimentam-se valores provenientes de atos de corrupção um pouco inferiores ao PIB da 8ª economia do mundo.
1.2. Corrupção e improbidade administrativa
Após a identificação de que há uma espécie de absorção da corrupção por parte da cultura de determinada sociedade, notadamente, na sociedade brasileira, devemos, então, identificar a conexão entre improbidade administrativa e corrupção.
De início, é importante tecermos alguns comentários acerca do significado do termo corrupção e para tal iremos utilizar o bem dizer de George Sarmento [14] que afirma:
O vocábulo corrupção deriva do latim corruptione, palavra que evoca a idéia de degenerescência, putrefação, decomposição, devassidão, suborno ou peita. Hoje em dia é utilizada para definir a conduta de uma autoridade que abusa do cargo para obter ganhos privados ou lesar os cofres públicos.
Como bem expõe Josenildo da Costa Santos [15]: "a corrupção implica no descumprimento de deveres e quebra de confiança".
Como exposto alhures, a corrupção existe em todas as sociedades, seja em maior ou menor grau, de tal maneira que sempre os Estados procuraram um mecanismo jurídico eficiente para combatê-la, de Atenas até os dias atuais.
Como também já dito acima, atos que eram realizados por agentes públicos em determinados regimes e que eram tidos como naturais hoje seriam considerados atos de improbidade administrativa, portanto, é importante que façamos a identificação do momento em que a sociedade começa a identificar os atos de corrupção como atos de improbidade administrativa.
Sarmento [16] cita como exemplo desta já antiga busca pelo combate à improbidade administrativa a posição defendida pelo romano Cícero que defendia perante seus pares, nos casos mais danosos, a execução sumária dos governantes desonestos. A posição de Cícero já em Roma demonstra, até de forma ferrenha em virtude da pena defendida por ele, o quanto, para aquele senador, a boa administração pública deve ser uma realidade a ser buscada a qualquer custo.
Com o advento da Revolução Francesa, a responsabilização pessoal do funcionário pelos atos de gestão do erário foi erigida a direito fundamental, conforme constante do art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que dispõe: "a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração" [17].
A Revolução Francesa trouxe inúmeros avanços à administração pública ao romper com o antigo regime monarquista onde era consagrado o princípio "the king can do no wrong", ou seja, o rei não erra. Partindo desse pressuposto de rompimento, foi alçado a direito fundamental dos cidadãos a possibilidade de serem cobradas as contas da gestão, conseqüentemente, essa gestão teria que ser eficiente. Apesar de encontrarmos referências dessa busca pela probidade já em Roma, como citado, entendemos que foi em França que o Estado moderno alçou a uma categoria superior o ideal de probidade na administração.
No caso do Brasil, como será demonstrada abaixo, a luta pela probidade na administração só se tornou efetiva em meados do século passado, tendo em vista que o Estado brasileiro ainda está em plena formação. Portanto, não é de estranhar que só agora a sociedade esteja entendendo que a boa administração não é uma opção, é uma necessidade para o desenvolvimento do País. Não é de estranhar porque o Brasil tem um histórico de ser contrário à mudança na velocidade que seria desejável. Temos como exemplo a aceitação da forma com que Portugal nos colonizou, tendo por conseqüência uma independência tardia, e quando a mesma chegou foi adotada uma forma de governo imperial até quase cem anos após a revolução francesa. Embora isso não deva ser levado como justificativa, demonstra que o Brasil ainda está amadurecendo como Nação.
A corrupção pode ser analisada por diversos prismas. Nesse contexto, Sarmento [18] afirma:
Para o filósofo, é considerada transgressão das normas éticas que regem os cargos públicos. O sociólogo prefere encará-la como fato social decorrente de um sistema administrativo ilegítimo e defeituoso. O antropólogo procura explica-la como desvio de conduta ditado pela incapacidade de a autoridade resistir às tentações financeiras ou às pressões políticas para romper o pacto de lealdade ao Estado. Para o jurista dogmático, a improbidade é ato ilícito (contrário à lei) a ser punido civil, administrativa e criminalmente pelo aparelho estatal.
O Direito Penal distingue duas formas de corrupção: a ativa e a passiva. A corrupção ativa consiste em oferecer vantagens – sejam elas pecuniárias ou não – a agente público para que pratique, omita ou retarde ato de ofício. A corrupção passiva, por seu turno, ocorre quando o agente público tira proveito do cargo, função ou emprego público para reclamar, propor, insinuar ou sugerir propina em troca de ato de ofício.
A doutrina internacional, especialmente a espanhola, a francesa e a norte-americana, define corrupção como sinônimo de improbidade administrativa, referindo-se "a um conjunto de condutas desviantes do funcionário público que implica enriquecimento ilícito, que acarreta prejuízos ao erário ou que colida com os valores éticos da administração pública", no bem dizer de Sarmento [19].
Há diversas linhas de definições de corrupção. Alguns entendem que corrupção se restringiria apenas ao crime de peculato, outros, tentam explicá-la pela idéia de abuso do cargo público para satisfazer interesses públicos. Existe, ainda, a corrente doutrinária que a encara como desvio ético da autoridade pública, que se expressa pela transgressão aos princípios da administração pública. Nessa linha, Miguel Seabra Fagundes [20] define corrupção como:
[...] quaisquer modalidades de ação que representem a utilização indevida, isto é, sem motivo ou título hábil, de bens do patrimônio público, ou o custeio, direto ou indireto, de despesas não impostas pela função exercida, senão para o gáudio de agente público de qualquer categoria. E, ainda, os atos de favorecimento, à custa dos cofres públicos, de parentes, amigos e eleitores, como admissões irregulares no serviço público ou estipulação de salários privilegiados.
Não se pode isolar, entretanto, a corrupção no serviço público dos outros fenômenos sociais. A corrupção reflete o momento histórico vivenciado pela sociedade e o estágio de organização social e política, ou seja, quanto mais avançado social e politicamente o País, menores serão seus índices de corrupção.
Josenildo da Costa Santos, ao citar Manuel Villoria Mendieta [21] expõe sobre as diversas concepções de corrupção da seguinte maneira:
Manuel Villoria Mendieta faz referência a quatro grupos de definições de corrupção. Em primeiro lugar, existem as definições vinculadas ao abuso de cargo público e ao descumprimento de normas jurídicas por parte dos agentes públicos. Sob esse ângulo, corrupta seria toda conduta do agente público que, no exercício das suas funções, se desvia das obrigações juridicamente postas, para satisfazer interesse privado, em troca de benefícios pecuniários ou de situações favoráveis. Existem também definições baseadas numa análise econômica da corrupção, pois corrupto seria o funcionário que utiliza seu cargo como negócio, em busca de maximizar resultados; quanto maior a demanda do público, maiores serão seus ganhos. Em terceiro lugar, vêm as definições baseadas no interesse geral e que, por conta disso, precisam ser vistas com bastante sutileza. O agente público é corrupto quando, em razão de vantagens financeiras ou de outra ordem legalmente inadmitidas, favorece os seus protetores, ainda que implementando programas de política pública que vão aproveitar a parcela significativa da sociedade. Por fim, alguns autores repelem uma definição pronta e acabada de corrupção, argumentando que o conceito deve ser formulado a partir de uma análise histórica e sociológica, sendo certo que os critérios utilizados pelos ingleses ou americanos para examinar o fenômeno da corrupção poderão mostrar-se insuficientes ou supérfluos para analisar o tráfico de influência nos países africanos, por exemplo: ressaltando-se, por igual, que condutas atualmente consideradas corruptas já foram aceitas e defendidas. Essa última forma de apreciação da corrupção leva os autores a falar em corrupção negra, cinza e branca. A negra inclui todas as condutas condenadas tanto pelas elites como pelos cidadãos comuns; a cinza corresponde às situações ambíguas ou duvidosas, sobre as quais não há consenso, ou seja, que podem ser condenadas pela elite e aprovadas pelo povo, ou vice-versa; a corrupção branca é tolerada pelo conjunto da sociedade, não recebendo oposição cerrada. Dependendo do momento histórico um caso de corrupção branca pode passar a ser cinza ou negra.
E, por fim, arremata Josenildo [22] ao afirmar que:
[...] apesar das diferenças, há um ponto em comum nas várias concepções. Todas fazem referência à ofensa aos valores morais como substrato institucionais do Estado. Basta desviar-se da finalidade institucional para que a conduta seja imoral.
Como pressuposto da boa administração pública, vem surgindo, no dizer de Sarmento [23], a Ética da Administração Pública que:
[...] fundamenta-se em um conjunto de valores morais que regem as condutas das autoridades e orientam as políticas e serviços sociais na consecução do interesse geral. [...] a realização desses valores pressupõe a existência do Estado Democrático de Direito baseado na legalidade, moralidade e respeito aos direitos humanos fundamentais. [...] Apenas nessa ambiência é que se pode falar [...] em improbidade administrativa como ato ilícito. Quando o sistema político é ilegítimo, despótico, ditatorial [...], nem todo desrespeito às normas administrativas é antiético.
Nesse sentido, é necessário relativizar o conceito de corrupção em países com elevado quantum despótico [24].
Aproveitando do conceito criado por Pontes de Miranda, Sarmento [25] afirma:
Do ponto de vista sociológico, podemos afirmar que a corrupção é um fenômeno dotado de elevado quantum despótico na medida em que fraudes, comissões ilícitas, desfalques e a venalidade das autoridades lesam o patrimônio público, impedindo que a população tenha acesso a políticas sociais que lhe assegurem uma boa qualidade de vida. A partir do momento que o poder é ocupado por um grupo político comprometido com a moralidade administrativa, com a concretização dos direitos humanos e com as instituições democráticas, ocorre a liberação de forças adaptativas que pacificam a sociedade, melhoram os serviços públicos e legitimam o poder político.
Percebe-se, portanto, que não é simplesmente a idéia de tais atos serem legais ou ilegais. Sua gênese encontra-se na concepção de tais atos serem morais ou imorais.
Feitas estas colocações, iremos partir para a análise da legislação que busca o combate à improbidade administrativa em nosso País. Desde a sua existência nas constituições pretéritas até a avançada Lei de Improbidade Administrativa que se encontra em vigor.
1.3. A evolução constitucional e legislativa da repressão à improbidade administrativa no Brasil
A Constituição Imperial de 1824 ressalta, em relação ao Imperador, a máxima de que dele não advém erros e no caso de uma possível existência de erros, não há a possibilidade de responsabilização, como exposto no art. 99: "A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada; Elle não está sujeito a responsabilidade alguma".
Por seu turno, os membros de seu Governo poderiam ser responsabilizados por seus atos de acordo com o disposto no art. 133, que dispunha que os ministros de estado seriam responsáveis, dentre outros casos, por peita, suborno, concussão e dissipação de bens públicos. Assim dispõe:
Art. 133. Os ministros de Estado serão responsáveis
I – Por traição.
II – Por peita, suborno, ou concussão.
III – Por abuso do Poder.
IV – Pela falta de observancia da Lei.
V – Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança ou propriedade dos Cidadãos.
VI – Por qualquer dissipação dos bens públicos.
Percebe-se, portanto, que desde a primeira Constituição brasileira há uma preocupação, mesmo que de forma muito tímida, na persecução da boa administração por parte dos membros do Poder Executivo, ressalvando-se, como já afirmado, a pessoa do Imperador. Trata-se aqui da existência de crime de responsabilidade. Não devemos esquecer, de qualquer forma, que essa disposição era apenas literal. Sarmento [26] afirma: "A Corte era administrada por gente ambiciosa e sedenta de poder. A maioria dos fidalgos mantinha fortes ligações com o tráfico de escravos, atividade extremamente lucrativa que contava com a tolerância do poder imperial". Adiante: "A competência para o exercício da função pública era o que menos importava".
A 1ª Constituição Republicana, por outro lado, já trazia em seu bojo a menção à probidade administrativa ao elencar os crimes de responsabilidade do Presidente da República. Constava do art. 54 a seguinte redação:
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra:
(omissis)
6º) a probidade da administração;
(omissis)
Como na atual Constituição, o crime de responsabilidade cometido pelo Presidente era julgado pelo Senado Federal, após a aprovação da declaração de procedência por parte da Câmara dos Deputados. Sistemática esta mantida até os dias atuais.
Em relação aos Ministros de Estado, a Constituição de 1891 também previa o julgamento dos Ministros por crimes de responsabilidade, conforme disposto no art. 52, entretanto, não fazia menção à probidade administrativa:
Art. 52 - Os Ministros de Estado não serão responsáveis perante o Congresso, ou perante os Tribunais, pelos conselhos dados ao Presidente da República.
§ 1º - Respondem, porém, quanto aos seus atos, pelos crimes em lei.
§ 2º - Nos crimes, comuns e de responsabilidade serão processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e, nos conexos com os do Presidente da República, pela autoridade competente para o julgamento deste.
Apesar da disposição constitucional de crime de responsabilidade do Presidente da República nos atos de improbidade administrativa, a República nascia com os mesmos vícios constantes da época do Império. Sarmento [27] define bem tal momento histórico:
Com a proclamação da república, em 1889, o sistema monárquico foi substituído pelo mandonismo dos chefes políticos e dos patriarcas rurais. Os cargos públicos foram loteados e distribuídos entre apadrinhados políticos e cabos eleitorais. Os primeiros anos da República foram marcados por barganhas partidárias e pela impunidade dos governantes.
Tais afirmações nos levam a diagnosticar que ainda permanecia em vigor um princípio já em desuso, que seria o da irresponsabilidade do agente público, instituído legalmente no Brasil a partir da Constituição Imperial e mantido, agora apenas como costume, por nossos administradores.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1934, mantém a mesma idéia já defendida no bojo da Constituição de 1891. O art. 57 possui praticamente o mesmo teor do antigo art. 52, tendo sido mantida a responsabilização do Presidente da República no caso de improbidade administrativa.
Entretanto, difere da Constituição anterior por caracterizar também como crimes de responsabilidade atribuídos aos Ministros os atos constantes do art. 57, que tratam da responsabilização do Presidente da República, caracterizando, portanto, a sujeição, agora Constitucional, dos Ministros de Estado à probidade administrativa, conforme disposto no art. 61:
São crimes de responsabilidade, além do previsto no art. 37, in fine, os atos definidos em lei, nos termos do art. 57, que os Ministros praticarem ou ordenarem; entendendo-se que, no tocante às leis orçamentárias, cada Ministro responderá pelas despesas do seu Ministério e o da Fazenda, além disso, pela arrecadação da receita.
§ 1º - Nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os Ministros serão processados e julgados pela Corte Suprema, e, nos crimes conexos com os do Presidente da República, pelo Tribunal Especial.
A Constituição Federal de 1937 manteve a mesma sistemática que vinha sendo utilizada nas Constituições anteriores ao manter a probidade administrativa como crime de responsabilidade do Presidente da República, conforme disposto no art. 85:
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República definidos em lei, que atentarem contra:
(omissis)
d) a probidade administrativa e a guarda e emprego dos dinheiros público;
A Constituição Federal de 1946 utiliza a mesma sistemática adotada na Constituição de 1934, repetindo, inclusive, a redação dos artigos referentes. Entretanto, o art. 141, § 31 indica a possibilidade de o Estado poder reaver legalmente dinheiros que foram desviados do Erário, passando a compor patrimônio privado. Assim, dispõe o referido artigo:
A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(omissis)
§ 31 - Não haverá pena de morte, de banimento, de confisco nem de caráter perpétuo. São ressalvadas, quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar em tempo de guerra com país estrangeiro. A lei disporá sobre o seqüestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica. (grifo nosso)
Esta norma necessitava de regulamentação, não sendo auto-aplicável. O País passava naquele momento por um aumento desenfreado da corrupção, sendo o primeiro escalão do Governo Vargas denunciado sistematicamente de envolvimento em escândalos financeiros. Foi nesse contexto que o Deputado Ari Pitombo, ainda de forma muito tímida, em 1951, propôs um projeto para regulamentar o supramencionado dispositivo. Tal iniciativa foi pioneira, e propiciava a proposição de ação civil contra os servidores que praticavam tais atos.
Mesmo sendo a aprovação de uma lei regulamentando tal dispositivo constitucional, e, acima de tudo, uma lei de extrema importância que visava moralizar, mesmo que timidamente, o serviço público, a mesma só veio a ser aprovada em 1957, recebendo o nº 3.164, e, o seu relator o Deputado Gódoi Ilha já demonstrou, naquele instante, a necessidade de se manter a independência das instâncias cíveis e penais. Mesmo que o acusado viesse a ser inocentado das acusações em processo criminal, tal julgamento não impediria a possibilidade de ação civil objetivando a perda dos bens ilicitamente adquiridos.
Tal lei ficou mais conhecida como a Lei Pitombo-Godói Ilha, e, deve-se a ela a introdução dos seguintes institutos no ordenamento brasileiro, na síntese de Sarmento [28]:
Medida cautelar de seqüestro de bens do agente público acusado de enriquecimento ilícito;
Reversão à fazenda pública dos bens adquiridos por influência ou abuso de cargo público;
Competência do juízo cível para a apreciação da ação civil pública;
Independência das esferas cível e criminal em matéria de improbidade administrativa;
Criação do registro público obrigatório de valores e bens pertencentes ao patrimônio privado dos servidores da União, Estados e Municípios;
Obrigatoriedade de atualização bienal dos bens dos agentes públicos e respectivos cônjuges, sob pena de demissão na hipótese de falsidade das informações;
Legitimação do Ministério Público para a propositura de ação cível de ressarcimento ao erário.
Em 1958, foi sancionada a Lei nº 3.502, que complementava a Lei Pitombo-Godói Ilha. Apesar do surgimento da primeira lei visando o combate à improbidade administrativa, o País vivia um momento de escalada da corrupção, chegando a colocar em risco as instituições democráticas. Em relação ao descontentamento da sociedade, Francisco Bilac Pinto [29], filho do autor do projeto de lei, definiu muito bem tal descontentamento:
Em nosso país, atualmente, ninguém se anima a denunciar as falhas de conduta moral de políticos e servidores públicos, pela certeza de que seu zelo pela decência da administração não encontrará eco favorável nas esferas responsáveis pela direção do respectivo serviço público. [...] Os que ousam denunciar os escândalos administrativos de que têm conhecimento, correm o risco de receber punição disciplinar por essa imprudência. (grifo no original)
À época, a improbidade administrativa era tratada como sinônimo de enriquecimento ilícito, e foi nesse sentido que a Lei nº 3.502/58, conhecida por Lei Bilac Pinto, buscou se tornar eficaz instrumento de combate à improbidade, e, no dizer de Sarmento [30], introduziu as seguintes matérias:
tipificação dos atos de enriquecimento ilícito, através da descrição das transgressões mais comuns no serviço público;
ampliação do conceito de servidor público;
equiparação dos atos de enriquecimento ilícito aos crimes contra a administração e o patrimônio público;
especificação do procedimento cautelar de seqüestro dos bens do agente público acusado de enriquecimento ilícito;
inclusão do ressarcimento ao erário e indenização por perdas e danos como sanções aplicáveis às hipóteses de enriquecimento ilícito.
O surgimento dessas duas leis infelizmente não tiveram o resultado esperado. Ambas se tornaram letras mortas e não foram utilizadas como meio de coibir atos de improbidade e não é noticiado nenhum julgamento exemplar. É evidente que não houve vontade política suficiente objetivando a plena aplicação da lei, que, embora reducionista no conceito de atos de improbidade administrativa – limitando-se a caracterizar tais atos apenas os casos de enriquecimento ilícito – não foi plenamente levada a cabo, até mesmo pela ausência da independência do Poder Judiciário.
George Sarmento [31], com muita propriedade, em relação ao conceito reducionista de corrupção, leciona:
[...] a concepção reducionista de corrupção, que restringia o delito aos casos de enriquecimento ilícito, foi incapaz de conter o crescimento das novas formas de improbidade administrativa, cada vez mais sofisticadas e eficientes. Isso sem falar nas condutas flagrantemente desonestas que ficavam impunes em razão da ausência de previsibilidade legal. O financiamento de campanhas políticas foi o exemplo mais contundente desse vazio normativo.
A Constituição de 1967 e sua respectiva Emenda Constitucional de 1969, que transformou a Constituição de 1967 em outra muito diferente de seus ideais originais, manteve a mesma sistemática adotada anteriormente nas outras Constituições sobre os atos de improbidade administrativa e sua responsabilização.
A Constituição de 1988, por seu turno, deu um salto no que trata da busca pela moralidade administrativa. Ao reforçar os poderes do Ministério Público, dando-lhe atribuições para combater a má gestão e a corrupção, confere legitimidade aos Promotores de Justiça para propor ações civis públicas contra atos de improbidade administrativa.
Em quatro disposições, a Carta Magna emprega o termo "probidade", ou, na forma negativa, "improbidade". A primeira menção se encontra no art. 14, § 9º:
Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (grifo nosso)
Adiante, em seu art. 15, a Constituição Federal dispõe:
É vedada a cassação de direitos políticos cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(omissis)
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Ademais, a Constituição de 1988, brilhantemente, em seu art. 37, desde a sua redação original, contemplou o princípio da moralidade como fundamental ao funcionamento da Administração pública. Ele tinha a seguinte redação: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade [...]". Com o advento da Emenda Constitucional nº 19/98 foi adicionado, aos princípios já existentes no caput do referido artigo, o princípio da eficiência, traduzindo, portanto, uma nova concepção de Administração Pública, concepção esta, que busca tornar a administração da coisa pública eficiente sem deixar de lado a moral ímpar que deve servir como base nos atos dos administradores públicos.
Buscando responsabilizar os agentes públicos que praticam atos de improbidade administrativa, a Constituição Federal, em seu art. 37, § 4º, previu várias sanções a serem previstas em lei, nos seguintes termos:
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Adiante, em seu art. 37, §5º, a Constituição Federal ainda consagra o princípio da imprescritibilidade da ação civil pública que objetiva a reparação de prejuízos causados ao erário, tendo em vista a taxatividade de seu enunciado:
A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
Em consonância com o ideal de tornar o controle da moralidade administrativa e da boa administração pública inerente à própria administração e, sendo todo poder emanado do povo, a Constituição conferiu-lhe o direito de propor ação popular em defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa, conforme dispõe o art. 5º, inciso LXXIII:
Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. (grifos nossos)
Por fim, a última menção à probidade administrativa na nossa Constituição Federal se encontra no art. 85 que dispõe:
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(omissis)
V – a probidade na administração
(omissis)
Tendo em vista que a norma constante do §4º, do artigo 37 da CF é de eficácia contida, necessitando, para sua plena eficácia, de regulamentação, as Leis Pitombo-Godói Ilha e Bilac Pinto foram recepcionadas pela Constituição. Entretanto, não eram suficientes para coibir os atos de improbidade administrativa dentro da nova perspectiva do princípio da moralidade administrativa dada pela nova Constituição. De tal sorte que, o então Ministro da Justiça do Governo Collor, Jarbas Passarinho, apresentou ao Presidente da República um anteprojeto que previa a responsabilização de agentes públicos implicados em enriquecimento ilícito. Este anteprojeto foi apresentado à Câmara dos Deputados em 1991.
Aproveitando o interesse do Governo Federal em disciplinar a matéria constante do artigo 37, § 4º, da CF, os Deputados José Dutra e Carlos Alberto Campista e o Senador Pedro Simon apresentaram substitutivos que alteraram completamente o perfil tímido do Projeto de Lei apresentado. A matéria foi aprovada em 1992, nascendo a partir daí a Lei nº 8.429/92, bem mais avançada do que as outras duas leis que já trataram da matéria e que foram revogadas por ela, abrindo assim o caminho para a implantação de um novo paradigma para a administração pública no Brasil.
A Lei de Improbidade Administrativa trouxe muitas novidades em relação às anteriores. Podemos perceber de pronto a ampliação do conceito de improbidade administrativa. Nas outras duas leis já citadas o ato de improbidade administrativa era sinônimo de enriquecimento ilícito. Agora, além do enriquecimento ilícito, foram acrescentadas mais duas espécies de atos de improbidade: a gestão ruinosa do erário e a violação aos princípios da administração pública. Tais atos constam de forma genérica no caput dos arts. 9º, 10º e 11, respectivamente, e seus incisos elencam as transgressões mais comuns não sendo, de maneira alguma, taxativos.
Adiante, a referida Lei estabelece um padrão ético a ser seguido por todos os agentes públicos, ao exigir a estrita observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos (art. 4º). O referido artigo é uma repetição do art. 37 da Constituição Federal em sua redação original – o referido dispositivo foi alterado pela Emenda Constitucional nº 19/98, portanto, muito posterior à edição da Lei de Improbidade Administrativa, razão pela qual o princípio da eficiência não se encontra presente no dispositivo em análise. Embora seja uma mera repetição da Constituição Federal, Marcelo Figueiredo [32] ressalta a importância do referido artigo:
Ressalte-se a importância do comando, notadamente no Brasil, onde os agentes públicos, diretamente, interpretam regulamentos e demais atos administrativos de modo totalmente divorciado da lei. Nunca é demais repetir: a Administração nada pode senão aquilo que a lei lhe comanda e determina.
A Lei de Improbidade Administrativa ainda se preocupou em exigir que os agentes públicos apresentem anualmente declaração de bens e valores patrimoniais, sob pena de demissão, caso recuse-se a prestar a declaração de bens, objetivando o controle da evolução patrimonial de seus servidores (art. 13).
A Lei nº 8.429/92 consagrou a independência das sanções penais, civis e administrativas pela prática do mesmo ato ilícito, independência esta de importância fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, razão pela qual, será mais bem estudada no momento oportuno.
Por fim, outra grande novidade foi a ampliação dos sujeitos passivo e ativo dos atos de improbidade. O art. 1º tem a seguinte redação:
Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.
Parágrafo único: Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
Adiante, o artigo 2º dispõe:
Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
É possível perceber a partir da leitura dos dois artigos citados acima a amplitude dos conceitos tanto do sujeito ativo como do sujeito passivo. Iremos nos debruçar acerca do conceito de sujeito ativo de atos de improbidade administrativa mais à frente.
Assim, Fernando Grela Vieira [33] afirma que a Lei nº 8.429/92 "constitui marco de uma nova cultura no trato da coisa pública, pois até então o gestor público não estava acostumado a ter seus atos questionados e submetidos ao controle judicial, como passou a ser feito".
Vê-se, portanto, desta breve análise acerca de alguns pontos importantes da Lei de Improbidade Administrativa o quanto seus conceitos são elásticos e a importância que a mesma deu ao cuidado da coisa pública. Afastou a idéia de que improbidade administrativa seria apenas o enriquecimento ilícito e adicionou duas novas espécies como já mencionado. Tudo isso leva a crer que temos agora um meio avançadíssimo de controle da coisa pública.