Com a entrada em vigor da Lei 11.719/08, colocou-se no âmbito do Direito Processual Penal uma questão de inegável complexidade acerca do momento do recebimento da denúncia, em razão da redação dos artigos 396 e 399, ambos do Código de Processo Penal.
Duas correntes doutrinárias têm se formado a partir da interpretação dos mencionados dispositivos.
A primeira corrente entende que o momento em que a denúncia é recebida está previsto no art. 396, do Código de Processo Penal. Considera que a disposição "recebê-la-á" tem espectro mais amplo que simplesmente possuir o magistrado a denúncia em suas mãos e considera que o legislador não desejou a realização de contraditório prévio, posto que alterou a redação do Projeto de Lei apresentado pela Comissão capitaneada pela Dra. Ada Pellegrini Grinover.
Entende, ainda, que seria impossível absolver sumariamente o indivíduo, o que importa em Juízo de mérito, sem que a relação processual esteja devidamente completada, entendendo tal decisão como julgamento antecipado do processo penal, verdadeira inovação no sistema jurídico.
Consideram correta tal interpretação diversos autores de renome, dentre eles: Eugênio Paccelli, Guilherme de Souza Nucci, Luiz Flávio Gomes.
A segunda corrente, por sua vez, entende que permanece a fase de defesa prévia anterior ao efetivo recebimento da denúncia.
Defendem este posicionamento Geraldo Prado, Cezar Roberto Bittencourt e também Paulo Rangel.
É diante deste quadro que se pretende colaborar com as reflexões já realizadas.
Assim, estas ponderações serão capitaneadas pelo exame da diretriz normativa anterior à alteração promovida pela Lei 11.719/08, fazendo-se referência à natureza jurídica da decisão de recebimento da denúncia, passando pela análise da tramitação do Projeto de Lei 4.207/01, que deu origem à mencionada Lei e, por fim, apontando as assertivas que permitem adotar o posicionamento da primeira ou da segunda correntes expostas.
1.Da natureza jurídica da decisão que recebia a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 11.719/08.
O recebimento da denúncia possui natureza jurídica híbrida, eis que a sua aferição tem características processuais penais e penais. Explica-se.
Com efeito, observado sob o ângulo estritamente processual, o recebimento da denúncia é uma das fases do desenvolvimento do processo penal com vistas a apuração do fato descrito na denúncia.
A seu turno, o seu aspecto penal remete à relevância do recebimento do denúncia para a determinação do mesmo como marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva, efeito este eminentemente material, o que demonstra o seu conteúdo penal.
Desta forma, a questão não pode ser analisada estritamente sob o espectro do Processo Penal, mas deve ser observada qual a razão de ser o recebimento da denúncia considerado como marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva.
Do exame dos diversos manuais de processo penal, tem-se que os mesmos não se preocupam em examinar a decisão que recebe a denúncia, debruçando-se, em regra, apenas nas decisões de rejeição e recusa da denúncia, conforme a doutrina que se adote e a consideração que se entenda cabível entre rejeição e recusa da denúncia.
Embora seja sedutor o exame do conteúdo jurídico da decisão que recebe a denúncia a partir da contraposição às decisões que rejeitam e recusam a denúncia, antes de observar tal possibilidade, é necessário buscar qual a razão que embasa a decisão de recebimento da denúncia.
Conquanto não se observe na doutrina processual penal qualquer consideração acerca desta decisão e qual o seu conteúdo jurídico, é inerente ao recebimento da denúncia a consideração pelo Magistrado de que o fato narrado é, em tese, fato típico, antijurídico e culpável (corrente tripartida) ou fato típico e antijurídico (corrente bipartida) ou fato típico, antijurídico, culpável e punível (corrente tetrapartida), conforme a concepção doutrinária que se adote.
Deve, ainda, o Magistrado verificar: a) se há embasamento indiciário que indique a materialidade e autoria do ilícito; b) se existe interesse na apuração do fato descrito em razão da punibilidade não estar extinta. c) se os pressupostos de existência e validade do processo e as condições da ação penal estejam presentes.
Entretanto, dentre todos os aspectos processuais que envolvem o recebimento da denúncia, há um determinado elemento que tem motivação correlata ao direito penal, qual seja, o exame preliminar de que o fato narrado pode ser considerado típico, antijurídico e culpável, além de ser punível.
Aloysio de Carvalho Filho, em obra coordenada pelo eminente Ministro Nelson Hungria, sobre a interrupção da prescrição em razão do recebimento da denúncia, assim se pronunciou:
"Para a justificativa da interrupção do prazo prescritivo busca-se o próprio fundamento do instituto. Se a ação criminal prescreve, ou a pena, em vista da desnecessidade da repressão, pelo esquecimento em que o tempo vai envolvendo o crime, todos os atos praticados no sentido da punição do delinqüente, reveladores do interesse do estado nessa punição devem, logicamente, interromper a prescrição penal (...)
Como se vê a primeira das causas declaradas é a denúncia ou queixa. Pelo claramente disposto, não é a apresentação da denúncia que interrompe o curso da prescrição, mas, sim, o seu efetivo recebimento. Tanto mais se impõe a diferenciação, quanto ao Projeto Alcantara Machado (art. 123, n. 1), falava em apresentação e o Código fala em recebimento.
É que a acusação, expressa numa das duas peças, pode ser rejeitada em determinados casos. Assim, uma denúncia recusada é inoperante para a interrupção do prazo prescritivo" (in Comentários ao Código Penal,Volume n. IV, p. 399-400, 2ª edição, Editora Forense, 1953)
Assim, a decisão que recebe a denúncia tem por escopo, no direito brasileiro, estabelecer o momento em que o Estado-Juiz declara a viabilidade da pretensão punitiva após examinar a denúncia e os elementos indiciários e probatórios que lhe acompanham.
Deste modo, cuida-se de Juízo preliminar positivo quanto à ocorrência de fato típico, antijurídico e culpável, bem como das condições da ação e dos pressupostos processuais.
Esta afirmativa é reafirmada pelas considerações firmadas por diversos autores em obras anteriores à modificação do rito processual pela Lei 11.719/08, segundo os quais o recebimento da denúncia ocorria quando não verificada causa de recusa ou rejeição da denúncia em razão do descumprimento dos ditames do art. 41, do Código de Processo Penal ou no caso de ocorrência de uma das situações previstas no art. 43, do Código de Processo Penal.
Para maior clareza, transcreve-se a antiga redação de tais dispositivos legais:
Art.41.A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas
Art. 43- A denúncia o queixa será rejeitada quando:
I-O fato narrado evidentemente não se constituir crime
II- Já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa
III - For manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.
Assim, a decisão de recebimento da denúncia era a ponderação de que havia, em tese, embasamento indiciário para a realização do procedimento judicial hábil a verificar a ocorrência ou não efetiva de crime perpetrado pelo acusado, que somente poderia ser declarada após o regular trâmite processual com a colheita das provas necessárias.
Anote-se que nem por isso a decisão que rejeitava a denúncia não ensejava o decreto de absolvição do denunciado, antes da realização do contraditório. Explica-se.
Da própria leitura do art. 43, tem-se que a denúncia somente poderia ser proposta novamente nos seguintes casos: a) caso esta fosse rejeitada; b) fosse proposta por pessoa manifestamente ilegítima para o ajuizamento da ação penal. c) se faltasse condição exigida para o exercício da ação penal, acrescentando a doutrina que nesta possibilidade inseria-se a ausência de justa causa, desde que fossem reunidos elementos indiciários que embasassem a denúncia, em interpretação da possibilidade de oferecimento de denúncia após o requerimento do arquivamento do inquérito por ausência de provas.
Desta forma, se a denúncia fosse rejeitada por não ser o fato evidentemente crime ou se já estivesse extinta a punibilidade, isto significava que ao Estado era vedada a repropositura da ação penal contra o acusado em razão dos mesmos fatos já aludidos nos autos.
A declaração de que o fato evidentemente não se cuidava de crime, quando transitada em julgado, ensejava a presunção de que, se o fato imputado a ele não era crime, logo ele era inocente e, portanto, fora absolvido desde logo, isto é, não se permitia sequer a realização de contraditório.
Observe-se que a mencionada decisão, após o trânsito em julgado, impedia a rediscussão da ocorrência do crime e da sua imputação ao acusado, devendo o mesmo ser considerado inocente.
Do mesmo modo, o pedido de arquivamento pelo Ministério Público que apontava não constituir o fato apurado em crime trazia em si a consideração de que o acusado era inocente e, portanto, o pedido de arquivamento em razão do fato não constituir crime era na verdade a consideração pelo Ministério Público, chancelado por decisão judicial, de que o acusado deveria ser absolvido da imputação do fato que lhe foi imputado quando de seu indiciamento.
Assim, o recebimento da denúncia, no sistema anterior ensejava o exame dos pressupostos processuais de existência e validade do processo, bem como as condições da ação e, ainda a existência de indícios de que o fato imputado era crime, fato típico, antijurídico e culpável a existência de punibilidade concreta.
Observada a natureza jurídica da decisão que recebe a denúncia e o seu conteúdo jurídico, necessário se faz verificar a tramitação do Projeto de Lei 4.207/01, o qual deu origem à Lei 11.719/08 para que se possa verificar quais os elementos legislativos que deram origem á norma em questão, para que então se possa fazer o confronto entre o conceito aqui estabelecido e o novo ditame legal e observar quais as suas correlações.
2.Do trâmite do Projeto de Lei 4.207/01, que deu origem à Lei 11.719/08:
Da consulta ao trâmite do Projeto de Lei 4.207/01, originário da Câmara dos Deputados no site da internet daquela Casa de Leis (http://www.camara.gov.br), tem-se que o mesmo ingressou na Casa de Leis por força da apresentação do projeto ao Plenário da Câmara dos Deputados em 12.03.2001, como proposta do Poder Executivo.
A redação dada pela Câmara restou devidamente aprovada em 17.05.2007 em razão da emenda substitutiva 4.201/01-B, cuja redação final coube ao Deputado Federal Flávio Dino de Castro, onde consta expressamente a redação do atual art. 396, como art. 395, do Código de Processo Penal.
Anote-se que o Deputado Federal João Campos, dentre outros, apresentou naquela oportunidade emenda de plenário substitutiva ao Projeto 4.207/01, tendo esta sido recebida como o Projeto 4.207/01 a partir daí, como se denota da expressa leitura da Emenda Parlamentar substitutiva.
Importante notar que por ocasião do exame da proposição originária pela Comissão de Constituição e Justiça em 2002, o então deputado relator, Ibraim Abi-Akel consignou que o projeto previa o contraditório prévio ao recebimento da denúncia (http://www.camara.gov.br/sileg/integras/19605.pdf) e que a denúncia poderia ser rejeitada liminarmente , proposição esta que restou modificada pela redação dada pela emenda substitutiva apresentada pelo Deputado João Campos.
Importante, ainda, destacar que o Deputado Flavio Dino, em seu parecer à emenda então aprovada como substitutivo e que acabou por adotar o mesmo número do projeto original, apontou que nada foi modificado no espírito da norma pela efetivação da emenda proposta pelo Deputado João Campos, mas realizadas apenas adequações técnicas.
Após a aprovação da Emenda ao Projeto 4.207/01 na Câmara dos Deputados, o mesmo foi remetido ao Senado Federal em 23.05.2007.
No âmbito do Senado Federal, através do sistema de busca SISCON, verificou-se que o projeto foi recebido e foi apresentado substitutivo em 18.09.2007, pela Senadora Ideli Salvati, sendo certo que foi lido parecer pela aprovação do substitutivo em 01.11.2007, o qual recebeu o n. 36/2007.
Encaminhado o substitutivo à Câmara dos Deputados, é possível se constatar que no Projeto Substitutivo encaminhado pelo Senado, o art. 396 do Código de Processo Penal já possuía redação próxima à atual, apenas não existindo menção ao recebimento da denúncia se não fosse liminarmente rejeitada.
Em parecer publicado em 13.05.2008, complementado em 20.05.2008 e reiterado em 27.05.2008, o Deputado Regis Fernando de Oliveira manifestou-se acerca do substitutivo, sobre a proposta de se retirar o termo "recebê-la-á" do texto da norma:
"Emenda n. 8: pretende-se alterar no caput do art. 395, do Código de Processo Penal o termo "recebê-la-á, sob a justificativa de que o ato de recebimento da denúncia está devidamente previsto no art. 399.
O instrumento que é o processo, não pode ser mais importante que o direito material que se discute nos autos. Sendo inepta de plano a denúncia ou queixa, razão não há para se mandar citar o réu e, somente após a manifestação deste, extinguir o feito. Melhor se mostra que o Juiz ao analisar a denúncia ou queixa ofertada fulmine relação processual infrutífera" (http://www.camara.gov.br/sileg/integras/566075.pdf)
Ao mesmo tempo, deve-se observar que os regimentos internos das Casas Legislativas determinam que a observação dos Substitutivos de Projetos de Lei da Casa Legislativa apresentadas pela outra serão consideradas como várias emendas, na forma do art. 287, do Regimento Interno do Senado Federal e art. 190, parágrafo único, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Assim, quando da análise do Projeto Substitutivo do Senado pela Câmara, esta desaprovou a modificação realizada pelo Senado no art. 395, do Projeto da Câmara dos Deputados, mas esta redação fora rejeitada pelo Senado Federal ao aprovar o substitutivo.
Assim, é necessário se ponderar que a divergência entre as casas legislativas ensejaria a não aprovação da redação do art. 395, do Projeto encaminhado ao Senado pela Câmara dos Deputados.
Portanto, não foi aprovada por ambas as Casas Legislativas a alteração do marco para o recebimento da denúncia, restando a consideração acerca da constitucionalidade da redação do art. 396, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/08 sob suspeita, devendo ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade da expressão "recebê-la-á, se não a rejeitar liminarmente" ou então interpretá-la conforme a Constituição Federal a fim de permitir ao Juízo que impeça o início da ação penal que não satisfizer as condições previstas no art. 395, do Código de Processo Penal, e postergar o Juízo acerca do recebimento da denúncia para o momento previsto no art. 399, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/08.
3- Da interpretação dos artigos 396 e 399, do Código de Processo Penal:
Do que foi exposto até o presente momento, tem-se que o recebimento da denúncia requeria, sob a égide da redação dos artigos 41 e 43, do Código de Processo Penal, que fossem considerados tantos os aspectos formais como os aspectos minimamente materiais acerca dos indícios de materialidade e autoria para que se pudesse receber a denúncia ou queixa, pois o exame de todas estas situações é que permitiria ao Magistrado verificar a viabilidade da pretensão punitiva que justificasse a interrupção do prazo prescricional.
Entretanto, sob a égide da nova legislação, os casos de rejeição de denúncia foram remetidas à inépcia da denúncia, prevista no art. 41, do Código de Processo Penal, a falta de pressuposto processual ou condição da ação para o exercício da ação penal ou justa causa para a ação penal, na forma do art. 395, do Código de Processo Penal.
A seu turno, as hipóteses que ensejavam o impedimento à repropositura da ação penal, quais sejam, a verificação, extreme de dúvidas, de que não ocorreu crime pelos elementos indiciários coligidos aos autos, seja porque há excludente de ilicitude manifesta, exista causa excludente de culpabilidade manifesta, salvo no que tange a inimputabilidade em razão da aplicação da absolvição imprópria na qual é aplicada sanção penal e depende de regular instrução ou seja porque não há crime ou que a sua punibilidade esteja prescrita, agora são denominadas como causas de absolvição sumária.
Embora se tenha consignado o nome de absolvição sumária, estas causas impeditivas do prosseguimento da ação penal são suficientes para ensejar o não recebimento da ação, eis que não haveria justo motivo para que fosse interrompida a prescrição da pretensão punitiva nas situações em que mesmo antes de se alcançar a fase do contraditório, a pretensão já se encontrasse fulminada.
Observe-se que a justificativa da interrupção da prescrição pelo recebimento da denúncia está justamente na solidez do argumento exposto pelo Ministério Público e considerado viável, ao menos em tese, pelo Magistrado.
Observe-se que a consideração de que a interrupção da prescrição se dá antes do magistrado examinar, de forma superficial, a viabilidade da ação penal em vista dos indícios de materialidade e autoria é reverter a própria razão do recebimento da denúncia e mesmo do efeito dele decorrente e estabelecido no Código Penal.
Há que se observar, ainda, que em nenhum momento, há notícia de que a alteração realizada no texto pretendesse modificar o momento em que a denúncia seria recebida ou não, com a consideração de que o exame preliminar acerca da materialidade e autoria e a apresentação de defesa após o recebimento da peça acusatória, mas tão somente permitir ao magistrado obstar o prosseguimento da demanda que antes mesmo de qualquer análise relacionada aos indícios de materialidade e autoria, já se mostrasse inviável, buscando-se, com isso, a racionalização da Justiça Criminal.
Por estas razões, a natureza jurídica do recebimento da denúncia, o qual restou inalterado em função da sua razão de ser sob o ângulo da prescrição da pretensão punitiva e o seu próprio conteúdo jurídico, bem como à vista do procedimento legislativo de construção da Lei 11.719/08, parece ser correto afirmar que o efetivo recebimento da denúncia somente ocorrerá após o exame dos indícios de materialidade e autoria, na fase do art. 399, do Código de Processo Penal, sendo este o momento entendimento como interruptivo da prescrição da pretensão punitiva.
Fica esta reflexão para exame e contra-argumentação para que se chegue, logo, a um consenso acerca do procedimento a ser adotado e se acabe com a insegurança jurídica acerca do tema, criada pela redação dada pela Lei 11.719/08 aos artigos 396 e 399, ambos do Código de Processo Penal.