1) Introdução
A crise de fontes normativas enfrentada pelo Direito Contemporâneo, notadamente radicada no direito em face do positivismo jurídico, impôs uma grave limitação ao cenário jurídico pátrio, consubstanciada na aplicação mecânica das normas jurídicas, sem margem a um "positivismo crítico".
Por outro lado, a Jurisprudência mais autorizada dá sinais claros quanto à novel compreensão crítica da lei e a necessidade de conformação valorativa do Direito aos princípios gerais, a fim de resgatar a substância da Justiça.
É nesse contexto que se impõe a abordagem acerca da isenção da incidência de Imposto de Renda sobre os rendimentos percebidos por portadores de HIV, nos termos do art. 6º, XIV, da Lei nº. 7.713/88 (Redação dada pela Lei nº 11.052, de 2004).
O estudo é justificado, haja vista a necessidade de tutelar o equilíbrio da relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte portador do vírus do HIV, aliado à leitura do art. 6º, XIV, da Lei nº. 7.713/88, em consonância com as normas constitucionais e a proteção aos direitos fundamentais.
2) A hipótese de isenção de Imposto de Renda sobre os rendimentos do portador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
A isenção tributária é hipótese de não-incidência do tributo. Retira-se do campo de incidência o fato isento, afastando o surgimento da obrigação tributária.
Consoante Roque Antonio Carazza:
(...) a isenção tributária encontra fundamento na falta de capacidade econômica do beneficiário ou nos objetivos de utilidade geral ou de oportunidade política que o Estado pretende venham alcançados.
(...) elas [as isenções tributárias] só podem ser concedidas quando favorecem pessoas tendo em conta objetivos constitucionalmente consagrados (proteção à velhice, à família, à cultura, aos deficientes mentais, aos economicamente mais fracos, isto é, que revelam ausência de capacidade econômica para suportar o encargo fiscal, etc.). [01]
Por seu turno, é certo que o Imposto de Renda tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; ou de proventos de qualquer natureza, ou seja, os acréscimos patrimoniais não compreendidos na hipótese anterior (art. 43 do CTN).
Nada obstante, o art. 6º da Lei nº. 7.713/88 prevê hipóteses de isenção do Imposto de Renda, notadamente o inciso XIV, cuja redação assim preconiza:
Art. 6º - Ficam isentos do imposto de renda os seguintes rendimentos percebidos por pessoas físicas:
(...)
XIV – os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma; (Redação dada pela Lei nº 11.052, de 2004) (grifei)
Veja-se que a literalidade da legislação fiscal, especificamente, o caput do art. 6º. da Lei 7.713/88 em combinação com o inciso XVI, rende o postulado segundo o qual ficam isentos do imposto de renda os rendimentos percebidos por pessoas físicas [caput] portadoras de síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada [inciso XVI].
Em verdade, depreende-se da norma que o legislador quis aferir vantagens significativas, como a isenção de Imposto de Renda, àqueles indivíduos e contribuintes que, seja por razões da velhice ou doença grave, apresentam notória dificuldade financeira para a sua própria subsistência, de modo que a exação fiscal não a comprometa.
Tem-se, no caso, garantias de direito fundamental como elemento determinante da reserva de lei. Desse modo, a precisão jurídica da norma, aliada ao seu viés social, garantem-lhe densidade suficiente para alicerçar posições juridicamente protetivas ao cidadão.
J.J. Gomes Canotilho, quando retrata a concretização das normas constitucionais, silogismo possível ao caso analisado, assenta que:
(...) a delimitação do âmbito normativo, feita através da atribuição de um significado à norma, deve ter em atenção elementos de concretização relacionados com o problema carecido de decisão. Interessa, porém, tornar mais claras as várias dimensões da norma, para se evitar quer as sobrevivências do positivismo quer as encapuçadas desvalorizações da norma (sociológica, ideológica, metodológica). [02]
Assim, não se mostra crível a leitura simplista reiteradamente dada pela Fazenda Nacional durante a lide tributária, segundo a qual o normativo em exame encontra azo, tão-somente, quando atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) ser beneficiário de aposentadoria, reforma e pensão; b) portador de moléstia grave.
Consoante a doutrina de Celso Ribeiro Bastos:
É certo, porém, que a atuação administrativa sofre um cerceamento, resultante da aplicação do princípio da legalidade. A interpretação a que procede é, portanto, muito minguada, por força da necessidade de haver a lei para o Poder Público possa atuar. [03]
Ocorre que a posição acolhida pelo fisco parte da leitura isolada do inciso XVI da Lei 7.713/88, além de o cúmulo propugnado pela Fazenda Nacional (Aposentadoria+moléstia grave) contrariar, significativamente, o mote do legislador, bem como a própria interpretação conforme a ser dada ao dispositivo tributário.
Recentemente, a 3ª. Turma do TRT-MG, nos autos do Processo 01209-2006-105-03-00-8/AP, referendou a ilação segundo a qual os rendimentos de pessoa física portadoras de SIDA/AIDS estão isentos de Imposto de Renda. Veja-se a ementa:
RENDIMENTOS PERCEBIDOS POR PORTADOR DE AIDS - ART. 6º DA LEI Nº 7713/88 - ISENÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA.
Extrai-se do art. 6º, XIV, da Lei nº 7.713/1988, com a nova redação dada pela Lei nº 11.052/2004, que os rendimentos percebidos por pessoa física portadora de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) estão isentos de imposto de renda. Observe-se que o dispositivo legal citado contempla os proventos de aposentadoria ou reforma além daqueles rendimentos percebidos por portadores daquelas doenças nele elencadas. Neste contexto, os créditos trabalhistas objeto de condenação nesta Especializada não sofrem incidência de imposto de renda, quando o empregado é portador de moléstia prevista na lei para fins de isenção. (Publicado em 13/09/2008)
Da decisão retira-se o seguinte excerto:
Extrai-se, portanto, da norma citada que os rendimentos percebidos por pessoa física portadora de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) estão isentos de imposto de renda.
Observe-se que o dispositivo legal citado contempla os proventos de aposentadoria ou reforma por acidente em serviço, além de outros rendimentos percebidos por portadores daquelas doenças nele elencadas.
No mesmo sentido, o art. 39, inciso XXXIII, do Decreto n° 3.000/1999 (Regulamento do Imposto de Renda)
Proposição contrária seria onerar demasiadamente uma pessoa que já tem sob si o peso de uma doença grave.
A Medicina e o Direito são ciências que lidam com vidas, e disso os cientistas da área jurídica jamais poderão esquecer. No caso da Aids, por exemplo, a medicina busca, concede os paliativos e tenta a todo custo conhecer a cura do mal tão mutável; já o Direito tem de proteger o portador, sua vida, sua dignidade, seus direitos, o Direito não pode continuar oferecendo somente os paliativos, (...) o Direito tem de ir também em busca do ideal da justiça, deve fornecer bases para a satisfação do homem (...). [04]
Impende, no ponto, trazer à luz a interpretação perfilhada pelo e. STJ, no REsp 881.323/RN, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11.03.2008, DJe 31.03.2008, para quem a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial.
Nesse passo é que o Magistrado não se circunscreve apenas à aplicação simplista da regra, mas, sim, na construção da norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle da constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais ao caso concreto. [05]
Disso não destoa a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:
Neste contexto, aponta-se para a circunstância de que, na esfera do direito constitucional interno, esta evolução se processa habitualmente não tanto por meio da positivação destes ‘novos’ direitos fundamentais no texto das Constituições, mas principalmente em nível de transmutação hermenêutica e da criação jurisprudencial, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já tradicionais. [06]
Esse postulado é também acolhido pela doutrina processualista mais atualizada. Segundo o entendimento de Luiz Guilherme Marinoni:
Se a lei passa a se subordinar aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais, a tarefa da doutrina deixa de ser a de simplesmente descrever a lei. Cabe agora ao jurista, seja qual for a área da sua especialidade, em primeiro lugar compreender a lei à luz dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais. [07]
Nesse senda, a obrigação do jurista é de projetar a imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais, aos quais são dotados de qualidade de norma jurídica e plena eficácia.
Nessa linha axiológica, extrai-se a real declaração do art. 6º, XIV, da Lei nº 7.713/1988, qual seja, os rendimentos percebidos por pessoa física portadora de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) estão isentos de imposto de renda, sem qualquer outra condicionante.
Portanto, padecendo o contribuinte de doença grave (então submetido a regular avaliação médica de que trata o art. 30 da Lei nº. 9.250/95, o que não sufraga a perícia judicial), classificada na Lei nº. 7.713/88 como causa de isenção do Imposto de Renda, deve ser concedido o benefício fiscal para afastar, definitivamente, as cobranças do encargo do Imposto de Renda sobre seus rendimentos.
3) Conclusão
A tarefa de integração da regra à construção da norma jurídica demanda do Aplicador do Direito um juízo critico das fontes, notadamente as tributárias, que não a leitura minguada da lei.
A necessidade de conformação valorativa desta com a Constituição, o controle da constitucionalidade e os direitos fundamentais reclamam uma nova conscientização quando do exame axiológico da regra e o equilíbrio dos interesses no caso concreto.
Nesse cenário, portanto, cumpre ao Aplicador do direito abordar a hipótese de isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos percebidos por portador de AIDS/SIDA, nos termos do art. 6º, XIV, da Lei nº. 7.713/88, aliado à leitura contemporânea e protetiva dos direitos fundamentais, a fim de resgatar a substância da Justiça.
4) Notas
Bastos, Celso Ribeiro, Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2ª. ed.
Carazza, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 19ª. ed.
Canotilho, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal: Almedina, 4ª. edição.
Marinoni, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2008, V. 1. 3ª. ed.
Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
Notas
- Curso de Direito Constitucional Tributário, São Paulo: Malheiros, 19ª. ed., pág.752.
- Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal: Almedina, 4ª. Edição, p. 1.179.
- Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2ª. edição, p. 72.
- ROCHA, Jólia Lucena da. Estabilidade do portador do vírus HIV. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 167, 20 dez. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4639>.
- Luiz Guilherme Marinoni, Curso de Processo Civil, v. I. São Paulo: RT, 2002, 3ª. ed., p.103.
- A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 56/7.
- Op. Cit., p.47.