RESUMO
O presente artigo tem por objetivo demonstrar, através da elucidação das funções da Assistência Social, que o referido benefício de prestação continuada confere efetividade e vem consagrar o fundamento expresso na Constituição Federal, a dignidade humana. Utilizar-se-á o método de abordagem indutivo e, de procedimento, histórico e monográfico.
Palavras-chave: Benefício de prestação continuada. Assistência social. Dignidade da pessoa humana.
1 INTRODUÇÃO
Por este trabalho, busca-se discutir a aplicação do Benefício de Prestação Continuada, importante benefício de caráter assistencial, voltado aos idosos e deficientes que comprovem não poder prover a própria subsistência, ou tê-la provida pela família. Este benefício, previsto no art. 203, V, da Constituição Federal e regulado pela Lei nº. 8.742/93, tem sua concessão limitada, dentre outros requisitos, à comprovação da renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
O princípio da dignidade humana é fundamento da República Federativa do Brasil, insculpido no inciso III, do art. 1º da CRFB. Este princípio situa-se na base de fundamentação das funções da Assistência Social, objeto de estudo do segundo capítulo. Porém, faz-se antes uma abordagem da evolução histórica da Seguridade Social no Brasil.
Após discorrer sobre o Benefício de Prestação Continuada, busca-se tratar da hermenêutica constitucional e dos fundamentos da ordem jurídica vigente. O objetivo é demonstrar que o caráter social adotado pela Constituição Federal de 1988 está em consonância com os direitos nela assegurados, e também com a eleição da dignidade humana como fundamento da República.
2 O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA COMO PRESTAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SEGURIDADE SOCIAL
2.1 A evolução da seguridade social no direito brasileiro
O início da proteção social no Brasil é tema divergente entre os doutrinadores. Alvim (apud BERBEL, 2005, p. 123), crê que o início se deu com a criação da Santa Casa de Misericórdia de Santos, em 1543. Martinez (2003, p. 69) considera o Montepio de Beneficência dos Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha, de 1795, a primeira legislação referente à proteção social. Para Russomano (1962, p. 7), foi a Lei nº 3.397, de 24 de novembro de 1888, que criava uma caixa de socorro às pessoas pertencentes às estradas de ferro pertencentes ao Estado, o registro mais antigo. Oliveira (1996, apud Castro; Lazzari, 2005a, p. 38), credita o início ao Decreto de 1º de outubro de 1821, expedido por Dom Pedro de Alcântara, que concedia aposentadoria aos mestres e professores após 30 anos de serviço, e assegurava um abono de 1/4 (um quarto) dos ganhos àqueles que permanecessem em atividade.
Apesar destas divergências, há de se destacar que nenhum destes benefícios consistia em seguros previdenciários, nos moldes tradicionalmente reconhecidos como tais, visto que não contavam com prévia contribuição por parte de seus beneficiários.
Nestes registros incipientes de proteção social, as ações eram realizadas esparsamente.
O Alvará Régio português de 22 de novembro de 1684, segundo MARTINEZ (2003, p. 72), regulamentou o seguro privado aplicado ao Brasil. Posteriormente, de acordo com o mesmo autor, as regulações da Casa de Seguros de Lisboa, de 11 de agosto de 1791, regraram este instituto.
A Constituição de 1824 garantiu a instrução primária e gratuita aos cidadãos, e, no art. 179, XXXVI assegurou que "A Constituição também garante os socorros públicos".
A Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo (1832) tratava dos cuidados dispensados aos abandonados e doentes (MARTINEZ, 2003, p. 72).
O Ato Adicional de 1834, no art. 10, delegou competência às Assembléias Legislativas para legislar sobre as casas de socorros públicos, conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas (MARTINEZ, 1992, p. 17).
Em 1834, houve a criação da Sociedade Musical de Beneficência (MARTINEZ, 2003, p. 72).
O Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado – Mongeral, criado em 1835, consistiu na primeira entidade de previdência privada do Brasil (CASTRO; LAZZARI, 2005b, p. 49).
O Código Comercial, de 1850, regulava em seu art. 79 o acidente de trabalho, dispondo:
Os acidentes imprevistos e inculpados, que impedirem aos prepostos o exercício de suas funções, não interromperão o vencimento de seu salário, contanto que a inabilitação não exceda a três meses contínuos. (BRASIL, 1998, p. 90).
A Constituição de 1891 utilizou, primeiramente, o termo "aposentadoria", ao tratar da proteção concedida aos servidores (art. 75, "a aposentadoria só poderá ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez no serviço da Nação", prescindindo de contribuição) - (MARTINEZ, 1992, p. 18, grifo nosso).
Em 1892, a Lei nº 217, de 29 de novembro, instituiu a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte dos operários do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (CASTRO; LAZZARI, 2005a, p. 39).
A Lei nº 3.724, de 1919, instituiu a obrigatoriedade do seguro contra acidente de trabalho (COIMBRA, 2001, p. 33).
Segundo atestam Castro e Lazzari (2005a, p. 39), corroborados por MARTINEZ (2003, p. 69), a maioria da doutrina considera a Lei Eloy Chaves o marco inicial da Previdência Social no Brasil. Esta lei, instituída através do Decreto-Legislativo nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923, criou a Caixa de Aposentados e Pensões dos Ferroviários, mediante contribuição dos trabalhadores, das empresas do ramo e do Estado. Os benefícios previstos pela lei eram de aposentadoria ordinária (para empregados com mais de trinta anos de serviço e mais de cinqüenta anos de idade), aposentadoria por invalidez, pensão por morte, assistência médica para os beneficiários e medicamentos a preço reduzido.
A Carta de 1891 recebeu uma emenda, em 3 de setembro de 1926, que autorizava o Congresso Nacional a disciplinar o trabalho e legislar sobre licença, aposentadoria e reformas, que não poderiam ser concedidas, ou alteradas, por leis especiais. (MARTINEZ, 2001, p.39)
Em 1930, através do Decreto nº 19.554, foram extintos os pagamentos das aposentadorias concedidas, em razão de fraudes e denúncias de corrupção.
O Decreto nº 20.465, de 1931, englobou as classes ignoradas pelas caixas anteriormente constituídas. Estas caixas tornaram-se institutos, que ampliaram o rol de prestações concedidas a seus beneficiários.
A Constituição de 1934 continha diversas disposições acerca da proteção social. O art. 5º, XIX, c, definia a competência da União para fixar regras de assistência social, e, no art. 10, dividia esta competência com os Estados para cuidar da saúde e assistências públicas e fiscalizar a aplicação das leis sociais. Importante ressaltar que a Carta de 1934 trouxe os fundamentos do seguro social: a tríplice e obrigatória contribuição, a noção social de risco, as prestações comuns e acidentárias e a proteção em especial à maternidade. (MARTINEZ, 1992, p. 20).
Em contrapartida, conforme lição de Martinez (1992, p. 21, grifo nosso.), a Constituição de 1937 limita-se a tratar da previdência social em apenas dois parágrafos, sem trazer inovações relevantes, com a exceção da utilização do termo "seguro social" pela primeira vez.
Importante esclarecimento sobre a evolução do seguro social no Brasil traz Tavares (2003, p. 211)
Foi durante a vigência das Cartas de 1934 e de 1937 que a previdência social se estruturou como seguro de natureza pública no Brasil, com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, divididos em categorias profissionais e mantidos em parte com a contribuição do Estado.
Neste período, informa Coimbra (2001, p. 34), surgiram o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), em 1933, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC) e Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB), em 1934, Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), em 1936 e Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (IAPETEC), em 1938, dentre outros institutos, criados até o início da década de 50. No fim deste processo, quase todas as categorias contavam com cobertura previdenciária, à exceção dos autônomos e dos domésticos. Os autônomos puderam contar com a proteção previdenciária a partir do Decreto n° 32.667/53 (MARTINEZ, 2003, p. 75). Os trabalhadores domésticos, por sua vez, tinham a inscrição facultativa desde 1960, com a Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n° 3.807/60), que se tornou obrigatória com a Lei n° 5.852/73, regulamentada pelo Decreto n° 71.885/73 (MARTINEZ, 2003, p. 76).
Berbel (2005, p. 125) esclarece que estes institutos não possuíam regras uniformes, o que trazia discrepâncias entre as coberturas e procedimentos atendidos por eles. Em conseqüência disto, houve a tentativa de uniformização dos procedimentos dos institutos e da unificação da Previdência Social. O Decreto-lei nº 7.526, de 7 de maio de 1945 (Lei Orgânica dos Serviços Sociais) não conseguiu cumprir o objetivo, pois careceu de regulamentação. A efetiva uniformização deu-se somente na década de 60.
Na Constituição de 1946, o legislador preocupou-se em tratar do seguro social, tendo se tornado um marco na evolução da legislação previdenciária. Seu art. 191 tratava da aposentadoria dos servidores públicos: por invalidez; compulsória, aos setenta anos de idade; e voluntária após trinta anos de serviço, sendo que o custeio destes benefícios era feito integralmente pelo Estado. A Assistência Social teve espaço no art. 164 que a tornava "obrigatória, em todo território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência". (BRASIL, 2005a, grifo autor).
Sob a égide daquela Constituição, em 1960, a Lei nº 3.807, de 26 de agosto, veio consolidar as normas de Direito Previdenciário, fazendo com que os institutos passassem a agir de forma semelhante, porém, com gestão ainda desunificada (BERBEL, 2005, p. 125).
A unificação efetiva só veio a ocorrer com o Decreto-lei nº 72, de 21 de novembro de 1966, através da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). O INPS trouxe novas prestações e outras formas de filiação, maximizando a atuação do órgão previdenciário. (BERBEL, 2005, p. 125-126).
Antes disso, a Emenda Constitucional nº 11, de 31 de março de 1965, havia acrescido um parágrafo ao art. 157, que determinava a obrigatoriedade da existência de correspondente fonte de custeio para criação, majoração ou extensão de prestação de caráter assistencial ou de benefício previdenciário (MARTINEZ, 1992, p. 21).
A Constituição posterior, de 1967, e a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, não trouxeram alterações significativas no âmbito da previdência e assistência social, exceto que essa prevê, ineditamente, o seguro-desemprego e a aposentadoria da mulher. (MARTINEZ, 1992, p. 22).
Martinez (2003, p. 108), corroborado por Coimbra (2001, p. 36), assinala que, a partir da Lei nº 6.439, de 1º de setembro de 1977, que criou o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS, a Seguridade Social foi formada. Este órgão acolhia as ações de saúde (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS e Central de Medicamentos – CEME), de previdência (Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social – DATAPREV e Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social – IAPAS) e de assistência (Legião Brasileira de Assistência – LBA e Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM).
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma grande inovação ao conceituar a Seguridade Social, no art. 194, abrangendo um conjunto integrado de ações, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
A finalidade da seguridade social, no entender de Santos (2003, p. 166, grifo do autor), consiste em
Fornecer proteção que garanta os mínimos vitais, isto é, a proteção das necessidades básicas que, se não supridas, comprometem a existência digna do indivíduo e de sua família.
Entendimento semelhante é descrito por Tavares (2003, p. 188)
A seguridade social, portanto, é um sistema (organizado pelo Estado) de ações destinadas a garantir medidas de segurança social em face de riscos que retirem capacidade de subsistência das pessoas.
Para Sarlet (2004, p. 345), os direitos sociais devem assegurar, através de prestações materiais, uma existência digna aos indivíduos, e conclui que
Neste particular, assume especial relevo a íntima vinculação – destacada especialmente pela doutrina estrangeira – de vários destes direitos com o direito à vida e com o princípio da dignidade humana, o que se manifesta de forma contundente nos direitos ao salário mínimo, assistência e previdência social, bem como no caso de direito à saúde.
Na Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social abrange prestações que demandam prévias contribuições – as previdenciárias – e outras que dispensam tal requisito – as prestações de Assistência Social e Saúde. O art. 195 prevê seu financiamento por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (BRASIL, 2005a).
Seus objetivos encontram-se previstos nos incisos I a VII do artigo 194 da Constituição de 1988, quais sejam:
[...]
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
[...]
II - uniformidade equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
[...]
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
[...]
IV - redutibilidade do valor dos benefícios;
[...]
V - equidade na forma de participação no custeio;
[...]
VI - diversidade da base de financiamento;
[...]
VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (inciso VII alterado pela Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998). (BRASIL, 2005a, p. 110).
As ações relativas à saúde estão enumeradas nos arts. 196 a 200; as que tratam da previdência social, nos arts. 201 e 202 e a assistência social é prevista nos arts. 203 e 204.
Desta forma, as disposições acerca da seguridade social contidas na Carta de 1988 vieram concluir o processo de sistematização e organização, já iniciado na Constituição de 1946.
Em 1990, houve a criação do INSS – Instituto Nacional do Seguro Social, que substituiu as ações prestadas pelo INPS e o IAPAS.
As leis 8.212 e 8.213, ambas do ano de 1991, regulamentaram os planos de custeio e os benefícios da previdência social.
No tocante à seguridade social, cabe tratar da lei 8.742, de 7/12/93, chamada Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, que transferiu os benefícios de renda mensal vitalícia, auxílio-natalidade e auxílio-funeral para a competência da seguridade social.
As alterações que se seguiram, Emendas Constitucionais nº. 20, 41 e 42, alteraram substancialmente os regimes de aposentadorias, os quais não serão tratados neste trabalho e, por isso, não serão abordadas com profundidade.
2.2 A assistência social como política de seguridade social
Santos (2003, p. 95-97) explica que, no início do séc. XX, a classe trabalhadora, engajada em reverter as péssimas condições de trabalho e a fim de limitar a própria exploração pela elite industrial, buscou, através dos sindicatos, o estabelecimento de uma legislação social. Após as duas Guerras Mundiais, a necessidade de reconstrução dos territórios e a massa de desamparados levaram a uma nova concepção de Estado, focado no amparo social de seus membros, conhecido como Welfare State, ou Estado de bem-estar social. No entendimento da autora,
O Estado de bem-estar social constitucionaliza os valores necessários para a garantia do padrão mínimo de existência digna. Depois, elege os mecanismos necessários à implementação desses direitos sociais. É o que ocorre quando estabelece os fundamentos do estado democrático e os objetivos fundamentais da República (SANTOS, 2003, p. 105).
Parte deste rol de direitos assegurados pelo Estado foi abarcado pela assistência social, que, para Tavares (2003, p. 215), consiste em
Um direito fundamental e, para o Estado, um dever a ser realizado por meio de ações diversas que visem atender às necessidades básicas do indivíduo, em situações críticas da existência humana, tais como a maternidade, a infância, adolescência, velhice e para pessoas portadoras de limitações físicas.
Martins (2003, p. 487) assevera que
Realiza-se a assistência social de forma integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia de um padrão social mínimo, ao provimento de condições para atender a contingências sociais e à universalização dos direitos sociais.
No conceito de Martinez (1992, p. 83), configura-se a Assistência Social como
O conjunto de atividades particulares e estatais direcionadas para o atendimento dos hipossuficientes, consistindo os bens oferecidos em pequenos benefícios em dinheiro, assistência à saúde, fornecimento de alimentos e outras pequenas prestações
Importante consideração traz Venturi (1954, p. 270-271 apud Berbel 2005), sobre a função exercida pela assistência social:
Ações de recuperação, por seu turno, serão desenvolvidas pela técnica assistencial. A assistência social, diferentemente da previdência e da saúde, age após a concretização da indigência social, posto que o sujeito hipotético dessa ação é aquele que se encontra em estado de indigência social. Irrelevante, para esta seara, se o indigente tinha ou não capacidade para o trabalho, pois o elemento caracterizador de seu status é a miserabilidade, que pode ser traduzida na indigência cumulada com impossibilidade de trabalho (BERBEL, 2005, p. 140).
Moro (2001, p. 2) elucida que
Direitos como os da assistência social transcendem os objetivos usuais de política assistencialista, visando não somente atender a necessidades materiais, mas também propiciar aos necessitados as condições reais de participação na vida política e social, o que é imperativo do regime democrático.
Em consonância com esses entendimentos está Santos (2003, p. 198):
Os dispositivos constitucionais e legais evidenciam que a assistência social objetiva a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais. O enfrentamento da pobreza e a garantia dos mínimos vitais àqueles desprovidos da proteção previdenciária vêm ao encontro dos objetivos da Ordem Social.
Santos (2003, p. 170) ainda elucida que "a Seguridade está a serviço dos objetivos por ela (a Ordem Social) traçados, isto é, do bem-estar e da justiça sociais". Segundo esta idéia, as prestações da Seguridade Social concretizam os objetivos da Ordem Social, que ilustra o Título VIII da Constituição Federal de 1988, em especial através daquelas prestadas pela assistência social, devido ao seu caráter universal e gratuito em favor do beneficiário.
O art. 4º da Lei 8.212/91 – Lei de Custeio da Seguridade Social estabelece que assistência social é
A política social que provê o atendimento das necessidades básicas, traduzidas em proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, independentemente de contribuição à Seguridade Social. (BRASIL, 1991).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao trazer o maior rol de direitos e garantias já assegurados constitucionalmente no país, assemelha-se ao modelo teórico do Estado de Bem-Estar Social. Dentre estes direitos, consta a assistência social, cujos objetivos estão enumerados no art. 203:
[...]
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
[...]
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
[...]
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
[...]
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência bem como a promoção de sua integração à vida comunitária;
[...]
V - a garantia de um salário mínimo de renda mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família. (BRASIL, 2005a, p. 115).
O art. 4º da Lei 8.742/93 traz os princípios e objetivos que a regem, quais sejam:
[...]
a supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;
a universalização dos direitos sociais, com fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;
o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;
a igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;
a divulgação ampla de benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. (BRASIL, 1993).
Suas diretrizes também estão elencadas no art. 5º, I e II e III da Lei 8.742/93:
descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo;
participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;
primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera do Estado. (BRASIL, 1993).
O art. 1º da Lei 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social, ao discorrer sobre as definições e objetivos desta política pública, dispõe que
A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. (BRASIL, 1993).
As atribuições da assistência social são exercidas atualmente pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que, através da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), realiza a gestão da Política Nacional de Assistência Social. A Secretaria Nacional de Assistência Social, instituída pelo Decreto nº. 5.074, de 11 de maio de 2004, divide-se em Departamento de Gestão do Sistema Único de Assistência Social, Departamento de Proteção Social Básica, Departamento de Proteção Social Especial e Departamento de Benefícios Assistenciais. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2006).
A SNAS é responsável pela gestão do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, regulamentado pelo Decreto nº. 1.605, de 25/08/95 e que "tem por objetivo proporcionar recursos e meios para financiar o benefício de prestação continuada e apoiar serviços, programas e projetos de assistência social" (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2006).
O FNAS está sob orientação e controle do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, órgão superior de deliberação colegiada, pertencente à Administração Pública Federal (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2006).
Demonstrada a estrutura que trata do exercício de políticas de assistência social, importante revela-se a análise das duas modalidades de assistência social, trazidas por Pereira (1996, p. 40). A primeira delas, nomeada assistência social stricto sensu, representa
Ação tópica, circunstancial e sem garantia legal (...) direcionada para o problema individual das pessoas em situação de pobreza absoluta e cujo mínimo vital encontra-se ameaçado ou já atingiu níveis profundos de deteriorização. (PEREIRA, 1996, p. 50).
Esta modalidade revela-se amadora, sem planejamento e incapaz de distribuir riquezas e é a que predomina no Brasil. Em contrapartida, a assistência social lato sensu, respaldada no movimento da sociedade e em garantias legais, vem integrar o projeto político de proteções sociais, trazendo uma proposta de democratização e inclusão social amparado no princípio da universalização. A autora antevê um perfil de assistência social lato sensu no Brasil, ao analisar que, na Constituição Federal de 1988, esta extrapola a Seção IV da Ordem Social e inclui-se em várias outras previsões, como nos capítulos referentes à Educação, Cultura, Família, dentre outros. Bem como, não se restringe às instituições criadas com fins assistenciais e vai alojar-se em diversos programas federais, estaduais ou municipais que tratam da erradicação da pobreza ou de desigualdades sociais (PEREIRA, 1996, p. 40, 50-51).
A autora analisa que
Sem a assistência social, as políticas sociais setoriais tendem a se elitizar, a se fechar na sua especialização e a se pautar por critérios que privilegiam mais a exclusão do que a inclusão social de sujeitos que, não obstante pobres, são portadores de direitos (PEREIRA, 1996, p. 51).
E conclui:
Isso porque, é ela quem tem o mister de lidar com os segmentos populacionais situados na base da pirâmide social e de se colocar como a via de denúncia da cidadania negada, no plano operacional, a estes segmentos. (PEREIRA, 1996, p. 51).
A análise supracitada respalda o objetivo deste trabalho, que é demonstrar que a Assistência Social visa alcançar objetivos elencados na Constituição Federal de 1988 e, por isso, suas medidas devem abranger todos aqueles que dela necessitam.
2.3 O benefício de prestação continuada
O Benefício de Prestação Continuada está previsto no art. 203, V da Constituição Federal:
A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria subsistência ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. (BRASIL, 2005a, p. 115).
Martins (2003, p. 496, grifo nosso) informa que este benefício foi instituído inicialmente como "renda mensal vitalícia", pela Lei nº 6.179/74, e "correspondia à metade do salário mínimo". Com a Carta de 1988, seu valor passou a corresponder a um salário mínimo. O autor ainda elucida que o art. 40 da Lei nº 8.742/93 extinguia a renda mensal vitalícia, com a implantação do benefício de prestação continuada.
O benefício foi regulamentado pela Lei nº 8.742/93, Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, pelo Decreto nº 1.744/95 e pela Lei nº 9.720/98.
Os requisitos para a sua concessão são sintetizados por Castro; Lazzari (2005a, p. 307):
- comprovação da deficiência ou da idade mínima de 65 anos para o idoso não-deficiente;
- renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 do salário mínimo;
- não estar vinculado a nenhum regime de previdência social;
- não receber benefício de espécie alguma.
Importante se faz analisar os requisitos do Benefício de Prestação Continuada.
O requisito etário restou modificado pelo art. 34 da Lei nº 10.741/03 – Estatuto do Idoso – e passou de 67 (sessenta e sete) para 65 (sessenta e cinco) anos de idade. Pela redação original da Lei nº 8.742/93, a idade mínima para concessão do benefício deveria corresponder a 70 (setenta) anos de idade. A Lei nº 9.720/98, no art. 38, modificou-a para 67 (sessenta e sete) anos. A comprovação da idade será realizada através da apresentação de algum destes documentos: de certidão de nascimento, certidão de casamento, certidão de reservista, carteira de identidade, carteira de trabalho e previdência social emitida há mais de cinco anos, certidão de inscrição eleitoral.
O conceito de deficiência está contido no art. 2º do Decreto nº 1.744/95:
Aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho em razão de anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênitas ou adquiridas, que impeçam o desempenho das atividades da vida diária e do trabalho. (BRASIL, 1995).
O requerente ficará sujeito a exame médico pericial e laudos realizados pela perícia médica do INSS, como estabelece o §6º do art. 20 da Lei nº 8.742/93. Martins (2003, p. 498) esclarece que
Na hipótese de o exame médico indicar procedimentos de reabilitação ou habilitação para pessoa portadora de deficiência, ser-lhe-á concedido o benefício enquanto durar o processo de reabilitação ou habilitação, de caráter obrigatório, ocorrendo ser cancelamento quando for constatada a interrupção do processo mencionado
Na lição de Castro e Lazzari (2005a, p. 308), por família entende-se
O conjunto de pessoas que vivam sob o mesmo teto, assim entendido o cônjuge, o companheiro ou a companheira, os pais, os filhos, inclusive o enteado e o menor tutelado, e irmãos não emancipados de qualquer condição, menores de vinte e um anos ou inválidos.
A vedação de cumulação com outro benefício oriundo da seguridade social está inserta no §4º do art. 20 da Lei nº 8.742/93.
E, por fim, será considerado incapaz de prover a subsistência do idoso ou deficiente a família cuja renda mensal per capita de seus integrantes seja inferior a 1/4 do salário mínimo, conforme dispõe o inciso III do art. 2º do Decreto nº 1.744/95. O art. 13 do Decreto nº 1.744/95 estabelece os meios de comprovação da renda:
Art. 13. A comprovação da renda familiar per capita será feita mediante a apresentação de um dos seguintes documentos por parte de todos os membros da família do requerente que exerçam atividade remunerada:
I - Carteira de Trabalho e Previdência Social com anotações atualizadas;
II - contracheque de pagamento ou documento expedido pelo empregador;
III - carnê de contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS;
IV - extrato de pagamento de beneficio ou declaração fornecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS ou outro regime de previdência social público ou privado;
V - declaração de entidade, autoridade ou profissional a que se refere o art. 12. (BRASIL, 1995).
O parágrafo primeiro do referido artigo prevê que a apresentação de algum dos documentos de que trata o dispositivo legal não obsta a faculdade de o INSS de emitir parecer sócio-econômico da família do beneficiário.
O benefício concedido a um membro da família passará a compor a renda familiar e não impedirá a concessão de um segundo benefício, desde que respeitado o requisito de renda (art. 19 do Decreto nº 1.744/95). Este artigo contém a ressalva contida no parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/03 – Estatuto do Idoso – a saber:
[...]
Art. 34. Aos idosos, a partir de sessenta e cinco anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de um salário mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS. (BRASIL, 2003a).
O art. 21 da Lei nº 8.742/93 prevê que o Benefício de Prestação Continuada deve ser revisto a cada dois anos para verificação das condições que lhe deram origem. O parágrafo primeiro deste artigo estabelece que "o pagamento do benefício cessará no momento em que forem superadas as condições que lhe deram origem, ou em caso de morte do beneficiário". E será cancelado caso seja constatada irregularidade na sua concessão ou utilização (BRASIL, 1993).
Cumpre destacar que o benefício é intransferível e não gera direito à pensão, conforme estabelece o art. 36 do Decreto nº 1.744/95 (BRASIL, 1995).
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome criou o Departamento de Benefícios Assistenciais, que compõe a estrutura da Secretaria Nacional de Assistência Social – SNAS. O art. 15 do Decreto nº 5.074 de 11 de maio de 2004 estabelece as competências do Departamento de Benefícios Assistenciais, quais sejam:
I - coordenar, normalizar e implementar os benefícios assistenciais, articulando-os aos demais programas e serviços da assistência social objetivando a elevação do padrão de vida dos usuários;
II - gerir a concessão, manutenção e revisão do BPC;
III - acompanhar a manutenção da Renda Mensal Vitalícia;
IV - propor critérios e normas para a implementação de benefícios eventuais;
V - formular diretrizes e promover ações intersetoriais com vistas à potencialização e à qualificação dos benefícios para atendimento das necessidades básicas;
VI - fornecer subsídios para formação dos agentes envolvidos na concessão e revisão de benefícios;
VII - propor estudos, pesquisas e sistematização de informações e dados acerca da implementação dos benefícios eventuais e de prestação continuada;
VIII - manter organizado um sistema de informações e dados sobre os benefícios, com vistas ao planejamento, desenvolvimento e avaliação das ações; e
IX - atuar junto ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS e aos três níveis de governo, com vistas ao aperfeiçoamento da gestão do benefício de prestação continuada. (BRASIL, 2004a).
Segundo informações do Ministério do Desenvolvimento Social, em 2004, o Benefício de Prestação Continuada executou R$ 5,8 bilhões e atendeu a 1,1 milhão de deficientes e 933 mil idosos. Em 2005, havia previsão de investimento de R$ 9 bilhões e a meta era de beneficiar 1,2 milhão de idosos e 1,2 milhão de portadores de deficiência. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2006).
3 HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1 Fundamentos constitucionais da ordem jurídica vigente
O art. 1º da Constituição Federal qualifica a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito.
Tavares (2003, p. 137) conceitua este como
um modelo de Estado surgido do pensamento liberal, tendo por princípios a divisão de poderes, a garantia de direitos individuais, a subordinação da Administração à lei e o controle das leis pelo Judiciário.
O autor acrescenta que, a partir dos valores informadores do exercício do Poder Constituinte e dos princípios fundamentais, o Estado brasileiro passa a representar um "Estado Social de Direito" (TAVARES, 2003, p. 139, grifo nosso).
Serau Júnior (2005, p. 75, grifo do autor) aponta com clareza o caráter social do Estado brasileiro
Embora fuja ao âmbito do presente trabalho dissertar sobre o mais adequado modelo político-constitucional, não é despiciendo anotar que o constituinte brasileiro fez uma opção clara pelo Estado Social de Direito: além de estabelecer a submissão do Estado ao ordenamento jurídico – Estado de Direito -, nossa configuração jurídico-constitucional possui, sobretudo, feição social, o que implica desdobramentos verificáveis em todo o restante do ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional: o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 ordena que o Estado brasileiro é "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos"; ademais, são objetivos fundamentais do Estado brasileiro, consagrados no art. 3º da Constituição Federal, "construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos".
Em consonância com este entendimento está Silva (2003, p. 120), para quem a Constituição Federal de 1988
Abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve (sic), e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.
Sarlet (2004, p. 63) é claro no sentido de que
Apesar da ausência de norma expressa no direito constitucional pátrio qualificando a nossa República como um Estado social e democrático de Direito (o art. 1º, caput, refere apenas os termos democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisto parece existir um amplo consenso na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental de Estado social deixou de encontrar guarida em nossa Constituição.
O mesmo autor aponta que
Cumpre frisar, ainda, que a idéia do reconhecimento de determinadas posições jurídicas sociais fundamentais, como exigência do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre, consoante leciona Klaus Stern, da concepção de que "homogeneidade social e uma certa medida de segurança social não servem apenas ao indivíduo isolado, mas também à capacidade funcional da democracia considerada em sua integralidade". (SARLET, 2004, p. 63).
As análises feitas pelos doutrinadores deixam evidente o que o Constituinte de 1988 preocupou-se em garantir um amplo rol de direitos sociais, seja através de princípios ou de determinações positivas ao Estado, o que conferiu à Constituição dele decorrente, um caráter eminentemente social.
As previsões de vastos direitos sociais encontram-se em consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoal humana, conforme atestaram doutrinadores citados anteriormente.
A relação que envolve o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos sociais prestacionais é analisada por Tavares (2003, p. 158, grifo do autor) da seguinte forma:
Em relação aos direitos sociais, da dignidade humana resulta a obrigação de o estado garantir um mínimo de recursos materiais suficientes para que, a partir daí, a pessoa possa exercer sua própria autonomia. A dignidade humana, ao servir de princípio fundamentador dos direitos prestacionais, consolida o conceito de "mínimo social" e gera, por conseqüência, a incorporação dos direitos prestacionais mínimos à concepção material de direitos fundamentais.
As concepções e a eficácia deste princípio, bem como seu envolvimento com os direitos assegurados constitucionalmente, e em especial, aquele constante do art. 203, V da Constituição Federal, do qual se originou o Benefício de Prestação Continuada, será tratada em itens posteriores deste trabalho.
Outrossim, no âmbito da Seguridade Social, o art. 194 da Constituição Federal, conforme já colacionado no presente trabalho, enumera os objetivos que devem ser observados na sua organização.
Santos (2003, p. 174, grifo nosso) assevera que estas disposições têm natureza jurídica de princípios, porquanto se caracterizam pela generalidade e porque seu conteúdo se refere a "valores que o sistema jurídico deve preservar".
Dentre estes princípios, destacam-se a universalidade e a seletividade. O princípio da universalidade é tratado como "universalidade da cobertura e do atendimento". No entender de Santos, (2003, p. 175, grifo do autor)
O "dever-ser" contido na universalidade indica ao legislador que deve respeitar a igualdade, garantia fundamental prevista no art. 5º da Constituição, não podendo haver excluídos da proteção que cabe à seguridade social (sic) fornecer. (...) Todos têm direito constitucional a um mínimo de bem-estar".
Castro e Lazzari (2005a, p. 58), a esse respeito, entendem que
Por universalidade da cobertura entende-se que a proteção social deve alcançar todos os eventos cuja reparação seja premente, a fim de manter a subsistência de quem dela necessite. A universalidade do atendimento significa, por seu turno, a entrega das ações, prestações e serviços de seguridade social a todos os que necessitem, tanto em termos de Previdência Social – obedecido o princípio contributivo – como no caso da saúde e da assistência social.
Os mesmos autores, ao tratar do princípio da seletividade, analisam que este
pressupõe que os benefícios são concedidos a quem deles efetivamente necessite, razão pela qual a Seguridade Social deve apontar os requisitos para a concessão de benefícios e serviços. (Castro ; Lazzari, 2005a, p. 59).
O inciso III do art. 194 da Constituição Federal prevê, juntamente com a seletividade, a distributividade na prestação dos benefícios e serviços, razão pela qual os autores afirmam que o último "[...] é de ser interpretado em seu sentido de distribuição de renda e bem-estar social, ou seja, pela concessão de benefícios e serviços visa-se ao bem-estar e à justiça social". (CASTRO ; LAZZARI, 2005a, p. 59).
De acordo com estes entendimentos apresenta-se Santos (2003, p. 181, grifo do autor), para quem
A seletividade destina-se à garantia dos mínimos vitais necessários à obtenção de bem-estar. A distributividade visa à redução das desigualdades sociais e regionais, com o que implementa a justiça social.
E acrescenta:
A Constituição e a Lei n. 8.742/93 não selecionaram as contingências, adotando a posição de que os mínimos vitais prescindem de causas para serem supridos pelas políticas assistenciais.
Foram selecionadas as necessidades, todas elas referentes a condições mínimas necessárias à existência digna do homem. Estão protegidas as necessidades das famílias, da maternidade, da infância, da adolescência, da velhice, das crianças e dos adolescentes carentes, a promoção das pessoas portadoras de deficiência e a sua integração à vida comunitária (SANTOS, 2003, p. 200).
Resta claro que os princípios comentados relacionam-se diretamente com o caráter social que a Constituição Federal confere ao Estado brasileiro, ao que direcionam a Seguridade Social a uma prestação ampla e que visa ao bem-estar e à justiça social.
3.2 O princípio da dignidade da pessoa humana
3.2.1 Origens do princípio
Ao tratar do princípio da dignidade da pessoa humana, adota-se o pensamento de Sarlet (2006, p. 30) sobre o tema. O autor, ao discorrer sobre as origens deste princípio, analisa que dentro da filosofia e da política da antiguidade clássica, a dignidade da pessoa humana (dignitas) relacionava-se com a posição social ocupada em sociedade e o grau de reconhecimento perante os membros da comunidade. A partir desta quantificação, havia pessoas mais, ou menos dignas.
[...] no pensamento estóico [01], a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz respeito a sua natureza, são iguais em dignidade. (SARLET, 2006, p. 30).
Comparato (2005, p. 12, grifo nosso) informa que foi no período axial [02] da história que houve o despertar da idéia de igualdade entre os homens. Entretanto, assinala que
[...] foram necessários vinte e cinco séculos para que a primeira organização internacional a englobar a quase-totalidade dos povos da Terra proclamasse, na abertura de uma Declaração Universal de Direitos Humanos que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e respeito".
Em Roma, a partir das idéias de Cícero, pode-se verificar surgimento da análise do caráter moral, que se aliava ao sentido sóciopolítico preexistente, para formar a dignidade de cada indivíduo. (SARLET, 2006, p. 30).
No pensamento cristão, a noção de dignidade da pessoa humana encontra-se presente no Velho e Novo Testamento, especialmente na noção da criação humana à imagem e semelhança de Deus, a qual evoluiu para o ideal de que o ser humano "é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento" (SARLET, 2006, p. 30).
Santo Tomas de Aquino (apud SARLET, 2006, p. 31) fez referência expressa ao termo "dignitas humana" e, no seu entendimento, a dignidade é fundada na noção da criação humana à imagem e semelhança de Deus, juntamente com a capacidade de autodeterminação humana, dos quais resultam a existência do homem em função da própria vontade.
O primeiro escrito a tratar diretamente da dignidade da pessoa humana é atribuído a Giovanni Pico Della Miràndola, que, em 1486, publicou a obra "Oração elegantíssima", título posteriormente transformado em "A dignidade do homem". O tradutor da obra, Luiz Feracine, condensa o pensamento do autor desta forma (DELLA MIRÀNDOLA, [19-?], p. 19):
Segundo Pico, a dignidade do homem está longe de ser algo de dado ou acabado e mecanicamente fixo. Ela é mais uma conquista porque a natureza humana é perfectível. O homem se faz. Como esta perfectibilidade está condicionada pela liberdade, é na dinâmica do processo de conquista de si e de autodignificação crescente que o homem precisa da Filosofia. (...) Assim, o objetivo do livro (...) é propô-la como um meio necessário para ser atingido o fim existencial da dignidade humana.
Della Miràndola ([19--?], p. 38) justifica a escolha do tema, em razão do homem e da posição de supremacia que ocupa:
Por fim, foi me dado entender o motivo de ser ele um ente felicíssimo e por isso mesmo merecedor de toda admiração. Isso acontece em virtude da condição que lhe coube em meio a todo o universo, de sorte a tornar-se alvo de inveja não só para os seres inferiores como até para os astros e mesmo para as inteligências ultraterrestres. Fato esse incrível e estupendo! E como não seria assim? O homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um portentoso milagre.
Durante a expansão colonial espanhola, a idéia de dignidade da pessoa humana recebeu a contribuição de Francisco de Vitória, que pregava, baseado nos pensamentos estóico e cristão, o direito dos indígenas de serem "respeitados como sujeitos de direito, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados com a coroa espanhola". (SARLET, 2006, p. 32).
Nos séculos XVII e XVIII, dentro o pensamento jusnaturalista, a noção deste valor "passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental de igualdade de todos os homens em dignidade e igualdade" (SARLET, 2006, p. 32).
Importante destacar a contribuição do filósofo Immanuel Kant para a concepção de dignidade. A partir de seus escritos, abandona-se o aspecto sacro da noção de dignidade. O autor ainda acrescenta que a doutrina jurídica atual baseia, até os dias atuais, a fundamentação da dignidade da pessoa humana nesta filosofia O conceito de dignidade da pessoa humana para Kant será tratado em tópicos subseqüentes deste trabalho. (SARLET, 2006, p. 32, 34).
3.2.2 A proteção jurídica da dignidade humana
A proteção jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana remonta à origem da expressão direitos fundamentais, surge na França, em 1770, e ensejou a sua posterior previsão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. (ZISMAN, 2005, p. 55).
Anteriores a esta previsão constam os direitos incipientes da Idade Média, obtidos através de concessões dadas pelos reis em troca da confirmação de sua supremacia perante os súditos. Destaca-se, neste período, a Magna Carta Liberatum inglesa, de 1215, que conferia direitos aos súditos. À evolução da Magna Carta, surgiram o Petition of Rights, de 1628, o Habeas Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rights, de 1689. (ZISMAN, 2005, p. 56-57).
Seguiram-se a estas a Declaração de Direitos francesa de 1789 e a Declaração Americana, de 1776, que influenciaram o futuro constitucional das nações. Todavia, ambas caracterizavam-se pela predominância do liberalismo, típica do pensamento da época, sem que fossem assegurados os direitos econômicos e sociais. Estes direitos ganharam destaque nos movimentos iniciados pelo proletariado, ao longo do séc. XIX (ZISMAN, 2005, p. 61). A fusão dos direitos individuais com os direitos sociais foi inaugurada pela Constituição mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar, de 1919.
Após estes períodos de relevantes avanços, no séc. XX, a humanidade assistiu aos horrores das Grandes Guerras Mundiais [03]. Após estes lamentáveis fatos, surgem documentos internacionais, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, voltados a resguardar os direitos fundamentais. Sobre a importância deste documento, assinala Comparato (2005, p. 225, grifo nosso):
Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II.
As proteções jurídicas iniciadas no período do Pós-Guerra são comentadas por Piovesan (2006, p. 29, grifo nosso):
No âmbito do direito constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições européias do Pós-Guerra. Observe-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política.
No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a prever um título próprio dedicado aos direitos fundamentais, bem como a inserir a dignidade da pessoa humana no rol de fundamentos da República.
3.2.3 O conceito de dignidade humana
Ante a dificuldade da doutrina de estabelecer um conceito claro para o valor da dignidade humana [04], cumpre buscar na filosofia de Immanuel Kant as bases para a sua compreensão.
Para a filosofia kantiana, comenta Comparato (2005, p. 21) que
[...] a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita.
E ainda,
Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie e cada ser humano em sua individualidade é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. (COMPARATO, 2005, p. 21-22).
A noção de dignidade humana para Kant (2000, p. 69 apud Martins, 2005, p. 27) está centrada na seguinte fórmula: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio".
Sarlet (2006, p. 33) assinala que Kant, ao construir sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, aponta a autonomia da vontade como fundamento da dignidade da natureza humana.
Ao discorrer sobre a natureza do princípio da dignidade humana, o mesmo autor aponta que
[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que exista em cada ser humano como algo que lhe é inerente. (SARLET, 2006, p. 42)
O conceito de dignidade humana é tratado por outros doutrinadores, que, na tentativa de conceituar o princípio em questão, buscam delimitar os direitos abarcados por ele. No entendimento de Barroso (2003, p. 335),
A dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda que haja sobrevivência, não há dignidade.
Para Silva (2003, p. 105),
Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. (...) Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205), etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.
Na lição de Piovesan (2006, p. 31), "a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade".
Britto (2003, p. 189-190, grifo do autor) afirma que
[...] é no reconhecimento de cada indivíduo como um microcosmo que se intui com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (...) e (sic) um dos mais palpáveis conteúdos da Democracia. E conteúdo tão palpável que nos parece verdadeiro afirmar o seguinte: o próprio entendimento do que seja dignidade da pessoa humana depende de um ar de liberdade pessoal e de pluralismo ético-ideológico-religioso que somente se respira em atmosfera democrática.
3.2.4 A dignidade humana como norma fundamental da ordem constitucional brasileira
O art. 1º da Constituição Federal elegeu a dignidade da pessoa humana como parte de seus fundamentos:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
[...]
I – a soberania;
[...]
II – a cidadania;
[...]
III – a dignidade da pessoa humana;
[...]
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
[...]
V – o pluralismo político.
[...] (BRASIL, 2005a).
Muitos doutrinadores comentam as conseqüências e importância da eleição da dignidade da pessoa humana como fundamento da República brasileira. Dentre eles, destaca-se Santos: (2003, p. 64).
A dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, o que também configura um comando para o legislador infra-constitucional, e mesmo para o constituinte reformador, de legislar no sentido de buscar a igualdade social.
E também Piovesan (2006, p. 26):
Dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art.1º, incisos II e III). Vê-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e dos princípios fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático, tendo em vista que exercem uma função democratizadora.
A partir das noções da importância da dignidade humana estar inserta no rol de fundamentos da República brasileira, mister se faz conceder a aplicação prática ao fato, que se pode traduzir na interpretação da norma constitucional a partir da "interpretação conforme a Constituição". Segundo Barroso (2003, p. 189), a interpretação conforme a Constituição representa
[...] a necessidade de buscar uma interpretação que não seja a que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo. É, ainda, da sua natureza excluir a interpretação ou as interpretações que contravenham a Constituição.
O autor ainda compõe didaticamente o processo desta forma de interpretação nos seguintes elementos (BARROSO, 2003, p. 189):
1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita;
2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto;
3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição;
4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal.
Britto (2003, p.187) sintetiza como elementos conceituais da Democracia os fundamentos da República e as cláusulas pétreas materiais expressas. Conseqüentemente, considera-os "pressupostos mesmos ou o a priori lógico da construção e balizamento de todo Estado brasileiro". A transcrição das palavras do autor esclarecem o tema:
Esses valores mais próximos do centro da Democracia, concebemo-los como os principais conteúdos ou as principais manifestações dela mesma. E sendo assim, eles passam a gozar de uma posição intra-sistêmica do mais alto relevo, pois toda interpretação normativa que os confirmar será uma "interpretação conforme a Constituição". Vale dizer, uma interpretação conforme o ser da Constituição, especifica ou topicamente revelado nos valores que tais. (BRITTO, 2003, p. 187, grifo do autor).
Piovesan (2006, p. 31), traz a concepção de dignidade da pessoa humana como super-princípio constitucional, "a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido". E sintetiza a questão:
[...] o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional. (PIOVESAN, 2006, p. 27-28).
Resta claro que grande parte da doutrina admite o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. A efetivação deste valor se dá através da interpretação conforme a Constituição, que confere sentido e coerência às interpretações das normas legais.
3.3 A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a assistência social
Os conceitos que definem o valor da dignidade da pessoa humana relacionam-se diretamente com as funções da Assistência Social. As prestações que compõe a Assistência Social, responsáveis por garantir o mínimo de direitos sociais aos hipossuficientes, já tratadas em item anterior deste trabalho, efetivam os fundamentos elencados pela Constituição Federal de 1988, bem como os direitos fundamentais previstos na mesma Carta.
A importância do Sistema de Seguridade Social, bem como sua conexão com o princípio da dignidade da pessoa humana é comentado por Rocha. (2004, p. 73, grifo nosso).
Dentro de um contexto no qual o trabalho é pedra angular da ordem social, exsurge a seguridade social como elemento de relevância nuclear para o desenvolvimento e manutenção da dignidade da pessoa humana, sendo-lhe atribuída a tarefa hérculea – ideal quase inatingível, mas o qual deve ser incessantemente perseguido – de garantir a todos um mínimo de bem-estar nas situações geradoras de necessidades.
No Brasil há uma imensa gama de pessoas necessitadas de prestações Estatais [05] que lhes garantam um mínimo de direitos. O contexto social do país, aliado aos direitos que foram previstos na Carta Constitucional, conferem ao Estado o dever de prestação aos que estejam inseridos nos critérios estabelecidos e comprovem necessitar destes benefícios.
Neste sentido, Tavares (2003, p. 217, grifo nosso) elucida que
[...] é dever constitucional do Estado do qual este não pode se desonerar, a construção de mecanismos, como a assistência social (sic), que garantam acesso às oportunidades e ao exercício da liberdade real. É justamente a vinculação dessa parcela de direitos sociais ao valor da dignidade humana que os torna fundamentais.
O mesmo autor lembra o caráter social do Estado brasileiro, tema já abordado no presente trabalho:
Neste tipo de Estado, os direitos são fundados em valores normatizados e a Administração não é considerada apenas como uma ordem potencialmente coatora da liberdade, mas sim como uma instituição mediante a qual se alcançam direitos. (TAVARES, 2003, p. 140, grifo nosso).
Recente relatório do IPEA [06] – Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada – demonstra que após o pagamento de aposentadorias e pensões às famílias pobres (estas consideradas aquelas com renda per capita inferior a 1/2 salário mínimo, valor bastante superior ao limite estabelecido para o Benefício de Prestação Continuada), reduziu consideravelmente a pobreza. Isto se deve, conforme o estudo, em razão da oferta crescente de benefícios e o crescimento no valor real dos benefícios pagos. Importante ressaltar que este estudo deixa clara a importância da Seguridade Social na distribuição de renda brasileira.
Tavares (2003, p. 160, grifo do autor) frisa que
O Estado brasileiro, como dever decorrente dos direitos fundamentais, DEVE implementar as prestações sociais mínimas para garantir a dignidade humana, a liberdade, a igualdade de chances, a exclusão da miséria e da marginalização.
A partir das lições apresentadas, percebe-se que sem o mínimo existencial [07], não há que se falar em liberdade real, ou em dignidade. É o que se entende a partir dos conceitos apresentados de dignidade da pessoa humana, de onde se extrai que este valor, em muitos casos, depende de prestações positivas do Estado. Os destinatários do Benefício de Prestação Continuada se caracterizam como sujeitos da mais pura dependência estatal, os deficientes e idosos que não possuem condições de subsistir. Não configura opção do Estado prestar ou não assistência a estas pessoas. Esta obrigatoriedade decorre do caráter garantista e social que compõem o sistema constitucional brasileiro.