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Relativização da violência sexual presumida e a tutela do menor

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31/05/2009 às 00:00
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A aplicação da violência ficta somente é cabível quando se tratar de menores de doze anos e, ainda sim, a presunção será relativa, tendo em vista a possibilidade de ocorrência de erro de tipo quanto à idade da vítima.

RESUMO: Diante da atual realidade social do país, resolveu-se fazer o presente estudo sobre o tema "presunção de violência sexual infantil", cujos objetivos foram demonstrar a necessidade de redução do limite etário previsto no art. 224, "a", do CP, e confirmar a relatividade da presunção de violência sexual prevista no referido artigo. Chegou-se à conclusão de que é necessária a interpretação do dispositivo legal de acordo com o ordenamento infraconstitucional vigente e com a sociedade em que está inserido, o que leva à aplicação da violência ficta somente quando se tratar de menores de doze anos e, ainda sim, a presunção será relativa, tendo em vista a possibilidade de ocorrência de erro de tipo quanto à idade da vítima..

Palavras-chave: Penal. Constitucional. Crimes sexuais. Presunção de violência. Menor.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. ANÁLISE HISTÓRICA DO TEMA; 3. ASPECTOS POLÊMICOS; 3.1. A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA PREVISTA NO ART. 224, "A", CP, FACE À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PREVISTA NO ART. 5º, LVII, CF/88; 3.2. CRIMES SEXUAIS PRATICADOS MEDIANTE VIOLÊNCIA FICTA E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS; 3.2.1. A aplicação do art. 9º, da lei 8.072/90; 4. A INCOMPATIBILIDADE ENTRE O DISPOSTO NO ECA E NO ART. 224, "a", CP; 5. A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL NA LEGISLAÇÃO, DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA; 5.1. A DISCIPLINA PREVISTA NO CÓDIGO PENAL MILITAR; 5.2. A POSIÇÃO DOUTRINÁRIA ACERCA DO TEMA; 5.3. O HISTÓRICO VOTO DO MINISTRO MARCO AURÉLIO; 5.4. É PRESUNÇÃO ABSOLUTA OU RELATIVA? POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

O direito à liberdade sexual, por ser um dos mais íntimos bens jurídicos do ser humano, é, desde as épocas mais remotas, objeto de atenção especial dos Estados. E o tema "crimes sexuais", justamente por afrontar esta liberdade que, lato sensu, é constitucionalmente garantida no art. 5º, caput, mereceu atenção especial do legislador pátrio, que previu, no Título VI – Dos Crimes Contra os Costumes –, Capítulo I - Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual –, do Código Penal, uma tutela específica à violação à liberdade sexual.

Como não poderia deixar de ser, previu o legislador, ainda, proteção penal especial em caso de afronta à liberdade sexual dos menores, que, por serem incapazes de consentir (nos termos da exposição de motivos nº 70 do Código Penal), não podem "querer" ter qualquer tipo de relação sexual. Surge, assim, o instituto da presunção de violência sexual infantil, prevista no art. 224, "a", CP, que será detidamente analisada no presente trabalho.

Em um primeiro momento, faz-se uma análise histórica do tema "crimes sexuais" e, como conseqüência, da violência sexual ficta, demonstrando que o tema é objeto de discussões doutrinárias e jurisprudenciais desde Código Penal de 1890.

Posteriormente, é feita uma abordagem dos aspectos polêmicos que envolvem o tema, quais sejam a constitucionalidade da violência ficta diante do princípio da presunção de inocência previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal; a natureza hedionda dos crimes sexuais praticados sem violência real; e a possível aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 9º, da Lei de Crimes Hediondos, que determina o aumento de pena em caso de lesão corporal grave ou morte se a vítima estiver em qualquer das situações previstas no art. 224, CP.

Após dissertar sobre os aspectos polêmicos que envolvem a presunção de violência sexual, discute-se, no quarto capítulo, a necessidade de atualização e interpretação do art. 224, "a", do Código Repressivo, de acordo com os costumes e legislação vigente, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente, que faz nítida diferenciação entre criança e adolescente ao estabelecer limite etário para cada fase. Diante disto, propõe-se a aplicação da presunção de violência somente quando se tratar de vítima menor de 12 anos.

No quinto capítulo, é feita uma análise sobre a natureza jurídica da violência sexual ficta – se absoluta ou relativa – na legislação, doutrina e jurisprudência brasileiras. Confronta-se o silêncio do legislador de 1940 com a disposição do Código Penal Militar, que, expressamente, previu a relativização da violência sexual praticada contra menores. Ademais, analisa-se o histórico voto do Ministro do STF, Marco Aurélio de Melo, que se posicionou, já em 1996, sobre a relatividade da presunção; e, finalmente, faz-se um apanhado sobre a posição doutrinária e jurisprudencial acerca da presunção de violência sexual perpetrada contra menores.

Por fim, são feitas as considerações finais acerca do tema, demonstrando-se a necessidade de atualização do Código Penal, a conseqüente aplicação de presunção de violência somente quando se tratar de vítima menor de doze anos de idade, e, ainda sim, a relatividade da presunção de violência sexual prevista no art. 224, "a", do Código penal, quando ocorrer erro de tipo, que é objetivo maior do presente trabalho.


2 ANÁLISE HISTÓRICA DO TEMA

O tema "crimes sexuais" é objeto de preocupação dos diversos povos desde as épocas mais remotas, onde não só puniam-se estes crimes, como tal punição era feita de maneira bastante severa. Conforme pontuado por Magalhães Noronha [01], "Na legislação hebraica, aplicava-se a pena de morte ao homem que violasse mulher desposada, isto é, prometida em casamento". Também era punido da mesma maneira quem praticava "violência carnal" contra mulheres na Grécia, em Roma (com a Lex Julia de vi publica), na Espanha (com a Fuero Viejo) e na Inglaterra [02].

No Brasil, o crime de estupro era severamente punido pelas Ordenações; a pena era a morte natural. Ressalta o Eminente Magalhães Noronha [03] que a pena de morte era mantida, inclusive, se o agressor se casasse com a vítima. O Código de 1930, contudo, abrandou a punição e previu a pena de prisão de 03 a 12 anos para quem mantivesse cópula carnal por meio de violência ou ameaça com mulher honesta.

É de se salientar, ainda, que, não obstante os Códigos anteriores preverem punição para os casos de "violência carnal", a denominação estupro somente fora consagrada pelo Código Penal de 1890 (art. 268).

A violência presumida, ficta ou indutiva, nos crimes sexuais, na forma como se apresenta no Direito Penal brasileiro, remonta ao Direito Romano. Carpzovio, um prático da Idade Média, foi o primeiro a estabelecer a violência presumida baseado no Digesto: "aquele que não pode querer, logo não quer (qui velle non potuit, ergo noluit)" [04] Tal princípio foi adotado por diversas legislações, contudo com critérios variados quanto à idade mínima para a validade do consentimento do menor para a prática sexual [05].

No contexto brasileiro, foi o Código de 1890 que, pela primeira vez, abordou a presunção de violência (art. 272); a inocentia consilii dos menores prevista neste ordenamento já ensejava posições doutrinárias diversas e a ampla maioria dos doutrinadores inclinava-se a reconhecer, neste caso, a presunção juris et de jure ou absoluta [06].

É de se ressaltar, no entanto, que, diversamente do atual Código Penal, a incapacidade de consentir prevista no Código de 1890 era atribuída aos menores de 16 anos. Afirmava-se, à época, que a presunção de violência em matéria sexual era indiscutível, "houvesse ou não consentimento da vítima, conhecesse, ou não, o agente a idade da vítima na data do fato" [07]. A afirmação era justificada porque

[...] a lei considerava o menor até a idade de dezesseis anos como incapaz de consentir livremente, inadmissível sendo qualquer indagação de sua honestidade ou bons costumes, pois estes pressupunham o conhecimento do mal, coisa que não se podia esperar em uma pessoa menor daquela idade. [08]

Contudo, apesar de a maioria da doutrina pender para o absolutismo da presunção, havia quem considerasse [09] ser tal presunção relativa, verbis:

Aceitamos o princípio do limite fixo que tem sido adotado na generalidade das legislações, dados os sérios e graves motivos que militam em seu favor, motivos inquestionáveis e manifestos sobre que já discorremos, mas entendemos que não é justo, jurídico, nem tampouco lógico, que essa presunção seja juris et de jure [...]

Finalmente, o atual Código Penal, datado de 1940, dispõe que a violência é presumida se a vítima "não é maior de 14 (quatorze) anos"; "é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância"; e "não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência". E o legislador da época, na exposição de motivos [10] (nº70), justificou a presunção sob o seguinte argumento:

[...] Com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidencia de um fato social contemporâneo, qual seja a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem.

Estendendo a presunção de violência aos casos em que o sujeito passivo é alienado ou débil mental, o projeto obedece ao raciocínio que, também aqui, há ausência de consentimento válido, e ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio. Por outro lado, se a incapacidade de consentimento faz presumir a violência, com maioria razão deve ter o mesmo efeito o estado de inconsciência da vítima ou a incapacidade de resistência, seja esta resultante de causas mórbidas (enfermidade, grande debilidade orgânica, paralisia etc.), ou de especiais condições físicas (como quando o sujeito passivo é um indefeso aleijado, ou se encontra acidentalmente tolhido de movimentos).

Assim, verifica-se que o Código Penal vigente, ao não deixar claro a natureza da presunção de violência no caso dos menores de 14 anos – absoluta ou relativa –, manteve acesas as discussões sobre a questão, já instaladas desde o Código Penal de 1890.

Agora, como antes, não faltam juristas que defendam ambas as presunções – relativa e absoluta –, assim como há quem defenda a inconstitucionalidade do art. 224, "a", do Código Penal, a exemplo de Luiz Flávio Gomes [11] e Adelina Carvalho [12]. Da mesma forma, na jurisprudência a diversidade de tratamento da matéria é manifesta.


3 ASPECTOS POLÊMICOS

A violência sexual perpetrada contra menores, além de ser um tema de constante preocupação da Doutrina e Jurisprudência pátrias, tem gerado muitas polêmicas; e mais, diante das "obscuridades" constantes da atual legislação, é foco de interpretações diversas e, muitas vezes, antagônicas.

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Diante deste quadro, serão abordados neste tópico temas correlatos com o objetivo central do presente trabalho, a exemplo da constitucionalidade da violência sexual presumida face à presunção inocência prevista na Constituição Federal [13], art. 5º, LVII; a hediondez ou não dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor praticados mediante violência ficta, bem como a possível ocorrência de bis in idem com a aplicação do disposto o art. 9º da Lei de Crimes Hediondos [14].

3.1 A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA PREVISTA NO ART. 224, "A", CP, FACE À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PREVISTA NO ART. 5º, LVII, CF/88.

O princípio da presunção de inocência, tal qual já previsto em diversas cartas alienígenas, bem como na Declaração Universal de Direitos Humanos [15] e no Pacto de San José da Costa Rica, somente passou a ter assento constitucional no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, que expressamente dispôs, em seu art. 5º, LVII: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Inicialmente, cabe fazer uma abordagem, ainda que sucinta, sobre a redação adotada pelo Constituinte de 1988, que preferiu a expressão "ninguém será considerado culpado" a utilizar expressamente a presunção de inocência. Ao preferir a não culpabilidade, o legislador pátrio distanciou-se dos seus modelos preferidos, quais sejam a Constituição Portuguesa [16] de 1976, art. 32.2, e a Constituição Espanhola [17] de 1978, art. 24.2, que fizeram menção expressa à presunção de inocência. Optou o legislador por alinhar-se ao Direito Constitucional italiano [18], que, em seu art. 27.2, dispõe: "O imputado não é considerado culpado senão depois de condenação definitiva".

Segundo pontua Luiz Flávio Gomes [19], a Constituição italiana (art. 27) (ao menos neste aspecto, fonte da inspiração constitucional brasileira), ao não referir expressamente a presunção de inocência, fez nascer a doutrina dos que entendem haver no dispositivo mera "presunção de não culpabilidade"; o imputado fica em situação "neutra", pois "nem é culpado nem é inocente".

Para Gomes [20], no entanto, não há sentido considerar que no art. 5º, LVII, CF/88, não "está inscrito, com todas as letras, o princípio da presunção de inocência", pois:

A aparente neutralidade do texto constitucional ora analisado (art. 5º, inc. LVII) não consegue esconder (muito menos impedir) o manancial limitador e garantista que emerge do princípio citado. Uma Constituição que tem como fundamento "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), que afirma a inviolabilidade da liberdade (art. 5º), que exige prisão fundamentada etc., evidentemente, parte do pressuposto de que a liberdade individual, no processo penal, vem em primeiro lugar. Só em casos excepcionais, respeitado o devido processo legal (due processo of law), pode haver, portanto, privação ou restrição dessa liberdade.

Superado o aspecto terminológico da norma, é de se salientar, ainda, a questão da presunção de inocência como regra probatória. É dizer, no sistema jurídico brasileiro, todo acusado é presumido inocente até que se comprove legalmente sua culpa; e, nas palavras de Gomes [21], comprovar a culpabilidade "é comprovar o fato típico assim como vínculo, o elo, do acusado com tal fato". Assim, para o referido autor [22], a presunção de inocência comporta uma dupla exigência: a) "que ninguém pode ser considerado culpado até que assim estabeleça uma sentença condenatória"; e b) "que as conseqüências da incerteza sobre a existência dos fatos e sua atribuição culpável ao acusado beneficiam este, impondo uma carga material da prova às partes acusadoras".

E, diante da necessidade de comprovação da culpabilidade, para Gomes [23] e Carvalho [24], o art. 224, "a", CP, conflita com a presunção de inocência, visto que "a presunção legal (de violência) desobriga o acusador de comprová-la" [25]. E mais [26]:

A preocupação do órgão acusador, nos casos em que a lei presume a violência, seria tão-somente comprovar a situação fática embasadora da presunção (que a vítima seja menor de catorze anos, débil mental etc.). Caber-lhe-ia exclusivamente provar uma parte dos fatos (que é a base da presunção). A outra parte dos fatos (a violência) é dada pelo legislador.

[...]

E essa desobrigação (advinda de determinação infraconstitucional) confronta de cheio com o princípio (constitucional) da presunção de inocência, como regra probatória, que exige do acusador a prova dos fatos (em sua integralidade).

Como conseqüência da presunção de violência insculpida no ordenamento infraconstitucional, tem-se, conforme Carvalho [27], violação do princípio do Direito Penal da culpa, pois a violência inexiste no plano fático e, portanto, não possui vinculo material com o acusado, restando configurada a hipótese de responsabilidade penal objetiva; há violação, também, do Direito Penal do ato, visto que a punição do acusado decorre de um fato não praticado por ele, mas presumido por lei; e tampouco há que se falar em Direito Penal da lesão, já que a afetação do bem jurídico não decorre de conduta do acusado, mas de presunção legal.

Doutro lado, no entanto, a posição consolidada no E. STF é no sentido de que a presunção de violência prevista no art. 224, "a", CP, não é inconstitucional [28], pois não se trata de presunção de culpabilidade do agente, mas de afirmação da incapacidade de consentir do menor. Para Sepúlveda Pertence [29], a presunção, no art. 224, "a", é um modo de legislar:

A menoridade da vítima e sua, aí sim, incapacidade absoluta de consentir, substitui, no caso, um elemento típico do art. 213 e similares, que é a violência real. Nada mais. E isso, a meu ver, não é inconstitucional: a personalidade de responsabilidade penal – que é o princípio constitucional a considerar – não veda ao legislador equiparar, na tipificação dos delitos contra a liberdade sexual, à violência ou à ameaça a irrelevância de eventual consentimento de vítima, que se reputa absolutamente incapaz e consentir.

Discordando da posição que prevalece no E. STF, a opinião mais acertada é no sentido de que o disposto no art. 224, "a", do Código Penal, é inconstitucional, tendo em vista que presumir a prática de violência quando o agente mantém relação sexual consentida com menor de quatorze anos, remonta à responsabilidade objetiva; é dizer, admitir a constitucionalidade do dispositivo leva à caracterização do direito penal sem culpa, pois inexiste violência real. Ademais, estar-se-ia diante de uma inversão do ônus da prova, passando ao acusado a obrigação de provar que é inocente, e não o contrário, o que afronta diretamente a presunção de inocência constitucionalmente prevista.

3.2 CRIMES SEXUAIS PRATICADOS MEDIANTE VIOLÊNCIA FICTA E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS

Apesar de considerar ser inconstitucional a norma contida no art. 224, do Código Penal, qual seja a presunção de violência em crimes sexuais, fato é que tal dispositivo já foi considerado constitucional pela Suprema Corte e integra o ordenamento jurídico pátrio, pelo que não pode ser ignorado. Assim, por ser o ordenamento jurídico um sistema integrado, a violência sexual ficta irradia em outras disposições legais, a exemplo da Lei de Crimes Hediondos, conforme se verá.

A Lei 8.072/90 [30], que trata dos Crimes Hediondos, acrescida das devidas alterações imprimidas pelas leis 8.930/94 [31] e 11.464/07 [32], prevê, em seu artigo 1º, V e VI, que são considerados hediondos os crimes de "estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)" e "atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)". E o art. 223, do Código Penal, trata das formas qualificadas, quais sejam o resultado morte e lesão corporal de natureza grave resultantes da violência.

Como ocorre em quase toda a matéria que envolve a presunção de violência, também há posições divergentes quanto à hediondez dos delitos sexuais praticados mediante violência ficta. É dizer, há quem sustente não serem hediondos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados com violência ficta, porque não foram expressamente descritos na Lei 8.072/90; e há quem sustente que tais delitos são hediondos, pois o art. 1º, V e VI, menciona os artigos 213 e 214 e suas combinações com o art. 223, bem como o art. 224, CP, não cria novas figuras típicas incriminadoras, mas tão somente elementos para a tipificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor.

Como exemplo de posições que sustentam a não hediondez dos referidos delitos, pode-se colacionar posição jurisprudencial já superada do E. STJ e E. STF e recente decisão do TJSP, verbis:

[...] Da interpretação sistemática da Lei 8.072/90, resulta que os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor somente se classificam como hediondos nas suas formas qualificadas, isto é, quando deles resultam lesões corporais de natureza grave ou morte (artigo 223 do Código Penal) [...] [33]

[...]Para que o atentado violento ao pudor possa ser classificado como crime hediondo, nos termos da Lei nº 8072/1990, art. 1º, inciso VI, é necessário que do fato resulte lesão corporal de natureza grave ou morte (art. 214 combinado com o art. 223, caput e parágrafo único). [34]

Apelação Criminal. Atentado violento ao pudor mediante violência ficta (presumida pela pouca idade da vítima). [...] Hediondez afastada. Predicado que deve ser reservado às figuras qualificadas. No caso, houve tão-sô violência ficta. [35]

Contudo, esta não é a posição doutrinária e jurisprudencial dominante. Autores como Guilherme de Souza Nucci [36], Rogério Greco [37] e Fernando Capez [38] entendem que o estupro e o atentado violento ao pudor, quando praticados mediante violência ficta, são crimes hediondos. E a jurisprudência já pacificada nos Tribunais Superiores também é nesse sentido.

Nucci [39], ao justificar a hediondez de tais delitos, assim se manifesta:

O tipo penal que enumera os delitos hediondos (art. 1º da referida Lei) menciona estupro (art. 213, caput) e sua combinação com o art. 223, parágrafo único (estupro seguido de morte), bem como o atentado violento ao pudor (art. 214, caput) e sua combinação com o art. 223, parágrafo único (atentado seguido de morte), isto é, quatro delitos diversos (dois dolosos diferentes um do outro e dois qualificados pelo resultado diferentes um do outro). É lógico que não necessitaria ter descrito a combinação dos arts. 213 e 214 com o art. 224, pois este não cria novas figuras típicas incriminadoras, mas unicamente dá elementos para a tipificação desses crimes, quando cometidos contra pessoa incapaz de consentir, levando em conta os tipos penais existentes (que são hediondos). [40]

Em outra obra, o mesmo Autor [41] informa:

Por que os referidos incisos V e VI do art. 1º, não inseriram a combinação com ao art. 224, mas somente a associação com o art. 223, caput e parágrafo único? Pelo fato de não ser o art. 224 norma autônoma, nem tampouco fixadora de qualquer qualificadora ou resultado qualificador; cuida-se de dispositivo explicativo, demonstrando que há outras formas de violência, sujeitas à mesma consideração penal, além da real. Não é um tipo penal incriminador novo, trazendo resultado diverso do pretendido, nem impõe outra quantidade de pena. Apenas – e tão-somente – esclarece que a violência pode ser presumida pelo estado precário de entendimento em que se encontra a vítima.

E também o Supremo Tribunal Federal, se manifestando sobre o tema, unificou entendimento – que prevalece nos Tribunais Superiores – no sentido de que o estupro e atentado violento ao pudor, ainda que praticados na sua forma simples, são crimes hediondos, verbis:

EMENTA: PENAL. CRIMES DE ESTUPRO E DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CÓDIGO PENAL, arts. 213 e 214. Lei 8.072/90; redação da Lei 8.930/94, art. 1º, V e VI. I. – Os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, tanto nas suas formas simples – Código Penal, arts. 213 e 214 – como nas formas qualificadas (Código Penal, art. 223, caput e parágrafo único), são crimes hediondos. [42]

EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR SIMPLES. CRIMES HEDIONDOS. CONCURSO MATERIAL. I – Constituem-se os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que perpetrados em suas formas simples ou com violência presumida, crimes hediondos [...] [43]

Verifica-se, portanto, que os Tribunais Superiores já consolidaram entendimento no sentido de serem os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, tanto na forma qualificada quanto na simples, ainda que praticados mediante violência ficta, crimes hediondos.

E este parece ser o entendimento mais arrazoado, visto que a Lei de Crimes Hediondos, ao indicar quais delitos são enquadrados como hediondos, apenas fez questão de frisar – com a inclusão do art. 223, CP – que os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, também são hediondos quando combinados com o art. 223; é dizer, não quis deixar qualquer margem de dúvida para os interpretes do direito. E mais, quanto à não inclusão do disposto no art. 224, CP, acertada é a opinião de Nucci [44] quando afirma que este artigo não cria novo tipo penal, mas apenas indica novos elementos para a tipificação do delito. Não haveria necessidade, portanto, de indicar expressamente a combinação dos artigos 213 e 214 com o art. 224, CP.

3.2.1 A aplicação do art. 9º, da lei 8.072/90

Questão que também é foco de posições antagônicas na Lei de Crimes Hediondos [45] diz respeito à ocorrência de bis in idem quando da aplicação do disposto no art. 9º da referida Lei, verbis:

Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal. (grifo nosso)

É dizer, questiona-se, na doutrina e jurisprudência pátrias, se o agente seria punido duas vezes quando houvesse a prática de estupro ou atentado violento ao pudor mediante violência ficta, pois o artigo 224, CP, seria considerado tanto para tipificar o delito, quanto para ser aplicada a causa de aumento de pena prevista no art. 9º da Lei 8072/90.

Em julgados anteriores ao ano de 1999, bem como nas decisões do E. Supremo Tribunal Federal, prevalece a posição de que mesmo em caso de não ocorrência de lesão corporal ou morte, aplica-se a causa de aumento de pena; e esta não implicaria, portanto, bis in idem.

Nesta linha, para o E. STF,

A particular situação da vítima, de não ser maior de 14 anos, é utilizada tanto para presumir a violência como para aumentar a pena de metade: no primeiro caso é circunstância elementar do tipo penal codificado (art. 214) e no segundo é causa de aumento da pena prevista na lei extravagante (art. 9º da LCH). [46]

NucciI [47], ao dissertar sobre o tema, é partidário da opinião comungada pelo STF; é dizer, para o referido autor, é "perfeitamente possível a consideração da idade tanto para tipificar o delito sexual violento (arts. 213 e 214, CP), como para aumentar a pena".

Contudo, o E. Superior Tribunal de Justiça entende que a aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 9º da Lei de Crimes Hediondos só é cabível caso haja violência real (lesão corporal grave ou morte) ou grave ameaça perpetrada contra a criança, pois, do contrário, se estaria diante de afronta direta ao princípio do non bis in idem. E assim também entende Mirabete [48], que afirma:

Em nosso entendimento, essa causa de aumento de pena só pode incidir nas hipóteses em que ocorreu violência real ou ameaça, e não nos casos em que se presumiu a violência. Haveria bis in idem em considerar a presunção de violência, que é ‘elemento’ do crime na ausência de violência real ou ameaça, conjuntamente como ‘causa de aumento de pena’; um mesmo fato não pode ser, ao mesmo tempo, elemento e circunstancia do crime.

Ora, inteira razão assiste ao E. STJ e a Mirabete, pois considerar o mesmo fato – presunção de violência – como elemento do tipo e circunstância do crime, afronta, diretamente, o princípio do non bis in idem; contudo, havendo lesão corporal grave ou morte, se impõe a causa de aumento de pena, pois, nestes casos, a violência perpetrada contra a criança é real.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Julia Melo Saldanha. Relativização da violência sexual presumida e a tutela do menor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2160, 31 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12815. Acesso em: 26 abr. 2024.

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