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Relativização da violência sexual presumida e a tutela do menor

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31/05/2009 às 00:00
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4 A INCOMPATIBILIDADE ENTRE O DISPOSTO NO ECA E NO ART. 224, "a", CP

No Brasil, o primeiro diploma legislativo a tratar especificamente do tema presunção de violência sexual foi o Código Penal de 1890, que, em seu artigo 272, "presumiu, em relação ao crime de natureza sexual, o cometimento com violência ‘sempre que a pessoa ofendida fosse menor de dezesseis anos’." [49]. Cinqüenta anos depois, com a edição do Código Penal [50] de 1940, esse limite etário foi reduzido, passando a estatuir que a presunção de violência só teria cabimento, nos crimes sexuais, se a vítima tivesse menos de 14 anos.

Nesse diapasão, é de se indagar, como o fez Márcio Bertoli [51], o que teria considerado o legislador de 1940 para efetivar a redução do limite etário da ofendida, passando a fixá-lo em catorze anos de idade, para, a partir daí, considerar que ela poderia dispor livremente de seu corpo para exercer sua capacidade sexual. E o mesmo autor [52] conclui que a resposta é encontrada na Exposição de Motivos ao Projeto de 1940, item 70:

‘Com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidencia de um fato sexual contemporâneo, qual seja a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a inocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade negar-se que uma pessoa de catorze anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem’.

Diante deste quadro, e passados mais de 60 anos da edição do Código Penal vigente, não seria o caso de rever as posições acerca da matéria e, ao interpretar o art. 224, "a", atualizar o Código de acordo com os costumes da época e com a legislação vigente? Nesse sentido já há, inclusive, posicionamento da Justiça baiana, que entende ter havido, com a edição do Estatuto da criança e do adolescente, revogação do disposto no art. 224, "a", verbis:

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. INCIDÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE. AFASTAMENTO DO ART. 224 DO CÓDIGO PENAL. Com a edição do Estatuto da Criança e Adolescente, o disposto no art. 224, "a" do CP, passou a ser interpretado em consonância com aquelas disposições, não mais se admitindo, face às inovações introduzidas, a aplicação automática da referida norma penal. Expurgo, in casu, do disposto no art. 224 do CP. Recurso provido para se reduzir a pena ao mínimo legal. Decisão unânime.

O Estatuto da Criança e do Adolescente [53], já em 1990, ao traçar a diferenciação entre criança e adolescente, dispôs, em seu artigo 2º, que "Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade". Observa-se, portanto, que o referido diploma, ao diferenciar criança e adolescente, considerou a sociedade atual, o conhecimento adquirível pelos menores e as informações que os jovens têm acesso nos tempos modernos.

E assim também, no campo internacional, observa-se que os Códigos Penais de alguns países (especialmente os latinos), ao preverem a ficção jurídica da presunção de violência, observaram a sociedade moderna e estipularam o marco da capacidade de consentir no ato sexual abaixo dos 14 anos. Assim o fez o Código Penal espanhol [54] e o argentino [55] ao estipularem a presunção de violência quando o menor não seja maior de 13 anos; e os Códigos paraguaio [56], mexicano [57], chileno [58] e costarriquenho [59], que estipularam a idade de 12 anos como limite.

Refletindo sobre o tema, Márcio Bártoli [60], ao analisar o conhecimento sobre o sexo que os menores possuem atualmente, com muita propriedade afirmou:

É mais do que evidente que nos dias atuais não se pode mais afirmar que uma pessoa,no período de vida correspondente à adolescência, continue, como em 1940, a ser uma insciente das coisas do sexo. [...] sexo, na atualidade, deixou de ser tema preconceituoso e até ‘imoral’ de antigamente, para situar-se numa posição de grande destaque: na família, onde é discutido livremente, até por questão de sobrevivência, em virtude do surgimento e disseminação de moléstia letal; nas escolas, onde adquiriu o status de matéria curricular, e nos meios de comunicação de massa, onde se tornou assunto quase que corriqueiro. A quantidade de informações, de esclarecimentos, de ensinamentos sobre o tema ‘sexo’ flui rapidamente e sem fronteiras, dando às pessoas até com menos de 14 anos de idade uma visão teórica da vida sexual, possibilitando-a a ‘rechaçar’ as propostas e agressões que nessa área se produzem e uma consciência bem clara e nítida da disponibilidade do próprio corpo.

Não parece coerente, portanto, se fazer uma análise sistemática do ordenamento jurídico vigente e se admitir a revogação tácita do disposto no art. 224, "a", do Código Penal, no que se refere à idade, e admitir-se a violência sexual ficta apenas quando se tratar de vítima menor de 12 anos de idade? Certamente, diante da "falta legislativa", esta seria a solução mais justa.


5 A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL NA LEGISLAÇÃO, DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS

A natureza jurídica da presunção de violência sexual infantil está longe de ser pacificada, pois, diante da característica dúbia da redação constante do art. 224, "a", CP, bem como das mudanças comportamentais ocorridas ao longo de mais de 60 anos do Estatuto Repressivo, autores e juristas não chegaram a um consenso; e assim, também, o legislador pátrio em épocas diversas.

Em 1940, ao redigir o Código Penal vigente, o legislador silenciou quanto à natureza da presunção de violência constante do art. 224, "a". Diversamente, contudo, agiu com relação ao Código Penal Militar [61] ao dispor, de forma explícita, que a violência sexual ficta perpetrada contra menores é relativa.

No campo doutrinário, também há divergências – apesar de já haver um entendimento majoritário acerca da relativização da presunção de violência sexual infantil; e há dissenso, também, na jurisprudência – é certo que o STF e o STJ confirmaram a natureza absoluta da presunção prevista no art. 224, "a", CP (apesar de admitir a possibilidade de ocorrência de erro de tipo quanto à idade da vítima), mas, nas instâncias inferiores, ainda há muita divergência, inclusive entre turmas e câmaras de um mesmo Tribunal.

Marco importantíssimo na jurisprudência brasileira, no que diz respeito à presunção de violência sexual perpetrada conta menores, é o voto do Eminente Ministro do STF Marco Aurélio, relator de um pedido de habeas corpus no qual, por maioria, acordou-se pela relativização da violência sexual ficta.

No entanto, apesar deste pequeno avanço no campo jurisprudencial, a realidade é que, após o citado Acórdão de lavra do Ministro Marco Aurélio, houve novo retrocesso e os Tribunais Superiores mantiveram o entendimento anterior acerca do absolutismo da presunção de violência sexual perpetrada contra menores.

De mais a mais, a Doutrina continua evoluindo e caminhando no sentido de aceitar quase que unanimemente a natureza relativa da presunção, o que já é um grande avanço após a edição do Código Penal de 1940.

5.1 A DISCIPLINA PREVISTA NO CÓDIGO PENAL MILITAR

O Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar [62] –, talvez o Estatuto brasileiro mais repressivo da atualidade, prevê, em seu artigo 236, a presunção de violência em matéria sexual. Este Código reproduziu, no referido artigo, ipsis litteris, as alíneas "b" e "c" do Código Penal. E, não fosse a ressalva constante do inciso I, a presunção de violência sexual infantil prevista no Estatuto Militar também daria margem a interpretações divergentes quanto à natureza da presunção – se juris tantum ou juris et de jure.

É dizer, o Código Repressivo Militar [63], após presumir a violência sexual dos menores de quatorze anos, relativizou o instituto inserindo na norma a possibilidade de ocorrência de erro de tipo quanto à idade da vítima, verbis:

Art. 236. Presume-se a violência, se a vítima:

I - não é maior de quatorze anos, salvo fundada suposição contrária do agente; (grifo nosso)

II - é doente ou deficiente mental, e o agente conhecia esta circunstância;

III - não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

Verifica-se, assim, que o Diploma Militar, apesar de criado no período da ditadura, foi mais flexível e coerente que o Código Penal civil, pois admitiu, expressamente, a possibilidade de erro de tipo. E mais, manteve a mesma linha dos incisos posteriores, qual seja relativizar o instituto ao admitir prova em contrário.

Receberam o mesmo tratamento, portanto, os incapazes de consentir; se o deficiente mental pode igualmente apresentar vício de consentimento, e o agente não é obrigado a conhecer tal circunstância, da mesma forma pode supor que a vítima seja maior de 14 anos (o que é comum na atualidade, já que muitas menores de quatorze anos não são mais meninas, mas moças desenvolvidas).

Pode-se afirmar, desta forma, que o Código Penal Militar, que passou a viger quase 30 anos após o Estatuto Penal civil, observou a possibilidade de ocorrência de erro de tipo e manteve coerência com a realidade social da época.

5.2 POSIÇÃO DOUTRINÁRIA ACERCA DO TEMA

Não obstante algumas discussões ainda existentes acerca da violência sexual ficta, atualmente tem sido predominante, no âmbito doutrinário, entendimento no sentido da "inexorabilidade da presunção, nos casos de erro justificado quanto à idade da vítima e prostituta de porta aberta" [64]. Acrescente-se, ainda, a essas duas situações, os casos de vítima com comportamento reprovável e inúmeros contatos sexuais (conhecimento sobre sexo), também apontados por alguns autores.

Noronha [65], ao justificar o porquê de a presunção de violência prevista no art. 224, "a", ser relativa, apresenta três argumentos.

De primeiro, critica a corrente que afirma ser a violência ficta absoluta sob o argumento de que o legislador, na alínea "b", exigiu que o agente conhecesse a enfermidade mental da vítima e, na alínea "a", silenciou sobre a ciência do delinqüente. Para o autor [66], "o argumento não tem valor e carece de fundamento", pois

[...] só a muito custo poderíamos aceitar que a lei, punindo o réu por ato libidinoso com um débil mental, somente no caso em que ele conhecesse esse estado da vítima, fosse, entretanto, puni-lo quando praticasse o ato com um menor de quatorze anos, embora demonstrasse cabalmente estar convicto, ter plena certeza de que ele tinha idade superior à apurada.

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Segundo, se o indivíduo sempre fosse punido quando tivesse contato carnal com um menor, estar-se-ia diante de responsabilidade objetiva, o que, nas palavras de Noronha [67], "nossa lei repudia, conforme se verifica da Exposição de Motivos".

Por fim, acrescenta o elemento histórico [68], no qual confronta o disposto no atual Código Repressivo e nos projetos anteriores à sua edição:

[...] o legislador de 1940, ao elaborar o Código, estava perfeitamente a par da controvérsia reinante acerca da interpretação do art. 272 da lei ab-rogada (Código Penal de 1890). Se fosse seu intuito estabelecer uma presunção absoluta, não o teria dito de maneira positiva, de modo claro para evitar qualquer dúvida?

Mas ele fez mais: abandonou o Projeto Alcântara Machada e a "Nova redação", que consideravam como absoluta a presunção de violência, embora admitissem duas exceções. Lê-se naqueles projetos: "Presumir-se-á a violência, não se admitindo prova em contrário, quando a vítima de qualquer dos crimes definidos nos dois capítulos precedentes: I – for menor de dezesseis anos...; III – encontra-se em estado de alienação mental, ou de inconsciência, ou de inferioridade física ou psíquica, provocado ao não pelo agente, que lhe impossibilite ou enfraqueça a resistência. Parágrafo único – não haverá, presunção absoluta de violência: I – nos casos do número I...., se a vítima for mulher pública; II – no caso do nº III, se o agente não conhecer, nem tiver motivo para conhecer o estado da vítima".

Verifica-se, assim, após confronto com o Código Penal vigente, que o legislador, nos anteprojetos, apenas adotou a exceção prevista na alínea "b", do art. 224, descartando as demais disposições, inclusive a relativa à fórmula não se admitindo prova em contrário [69].

Também admitindo a relativização prevista no art. 224, "a", Mirabete [70], fundamenta sua posição sob o argumento de que as alíneas "b" e "c" tratam de presunção relativa e, portanto, não seria coerente se excluir a alínea "a" [71]; e mais, o prevalecimento de opinião oposta levaria à maior proteção do menor em face, inclusive, do "insano mental, que não tem nenhuma possibilidade de consciência" [72].

Apesar de autores como Regis Prado [73], Luiz Flávio Gomes [74], Nucci [75], Mirabete [76], Noronha [77], Delmanto [78], Rogério Greco [79] e Costa Jr [80]. admitirem a natureza relativa da presunção, há pequenas divergências quanto aos casos em que tal presunção se operaria.

Magalhães Noronha [81], autor conservador que é, além de aceitar, assim como a maioria da doutrina, a relativização da presunção quando se tratar de vítima que aparenta ter mais idade, de comportamento reprovável ou meretriz [82], ao justificar sua posição, acaba por julgar o comportamento da vítima de forma bastante severa e retrógrada, além de esquecer que a vítima, é, em verdade, um menor:

Mas não pode o magistrado [...] perder o senso da realidade, máxime nos dias de hoje. É que, a nosso ver, deve admitir exceção a esse princípio: quando se tratar de mulher pública ou de menor que, embora não o seja, apresenta corrupção notória.

Em tais casos, é mais que problemático o dolo do sujeito ativo e ao juiz faltará a convicção necessária para se pronunciar sobre qual a verdadeira vítima: se a menor ou se o adulto, que pode estar sendo vítima de chantagem.

A regra, portanto, que propomos na interpretação do texto é esta: presunção relativa, comportando a exceção de ser a menor pessoa de vida dissoluta, meretriz ou a que, não sendo profissional declarada, não passa de aliciadora de homens, pois ambas se equivalem.

Paulo José da Costa Jr. [83], também conservador, aceita a presunção relativa quando o menor apresentar-se experiente na prática sexual [84], já houver praticado relações com outros indivíduos [85], for "despudora e sem moral", corrompida [86], ou apresentar péssimo comportamento. Entende, no entanto, que o fato de a ofendida não ser mais virgem, ser leviana, fácil e namoradeira, ou ter liberdade de costumes, não invalida o crime. Questiona-se, no entanto, o que seria, para o autor, uma menor despudora e sem moral, corrompida e de péssimo comportamento.

Contudo, em que pese a posição adotada por Ilustres Juristas, considerar aspectos subjetivos do menor – a exemplo do fato de ser experiente em prática sexual, meretriz, já ter tido relações sexuais e apresentar comportamento corrompido – não é a posição mais acertada. Isto porque, como bem frisado por Gomes [87], entender que a presunção de violência é afastada nos referidos casos, é patentemente inconstitucional, pois viola o princípio da reserva legal na medida em que há criação de requisito (honestidade) pelo Juiz, ao julgar cada caso; ademais, "funda-se numa concepção moralista do Direito (confunde o Direito com a Moral)" [88]; e, sobretudo, "despreza por completo o verdadeiro bem jurídico tutelado nos crimes sexuais aqui enfocados, que é a liberdade sexual, com total independência da vida anteacta da vítima. Até as prostitutas [...] merecem proteção da lei penal".

Corroborando, ainda, as críticas feitas, acentua Gomes [89]:

Nem o Poder Executivo nem o Judiciário podem, legitimamente, "criar" a lei penal. Essa tarefa é exclusiva do Legislativo, que, para tanto, deve seguir estritamente o processo legislativo constitucional. A exigência de honestidade da vítima menor para a configuração do crime sexual afronta o princípio aqui enfocado (reserva legal), assim como a Constituição brasileira (art. 5º, inc. XXXIX). Estabelece, de outra parte, o paradoxo seguinte: a vítima maior do crime de estupro, por exemplo, pode ser honesta ou desonesta; já a menor teria se (sempre) ser honesta.

Situação diversa, no entanto, diz respeito ao erro de tipo quanto à idade do menor, que é aceito, quase unanimemente, pela doutrina [90], à exceção do já falecido Nelson Hungria [91], que admitia apenas a relativização da presunção de violência quando se tratasse de "meretriz de porta aberta"; o referido jurista não aceitava a possibilidade de erro de tipo e afirmava que não se pode aceitar como causa de exclusão da culpabilidade a errônea suposição do agente de que o menor, por seu desenvolvimento físico, possui mais de quatorze anos.

Gomes [92], mesmo partidário da posição de que o disposto no art. 224, do Código Penal, é inconstitucional, admite a possibilidade de erro sobre a idade da vítima, verbis:

O denominado error aetatis, quando invencível, obrigatoriamente relativiza a presunção legal fundada na idade da vítima, porque, na verdade, constitui erro de tipo, excludente do dolo e, em conseqüência, do crime [...]. Negar que o erro de tipo aqui considerado não possui valor jurídico algum, significaria negar a vigência ao art. 20 do CP, e admitir, de outro lado, a responsabilidade penal objetiva.

E o mesmo é aceito por Noronha [93], que acrescenta não haver crime quando o agente está convicto de que a vítima é maior de quatorze anos, pois age de boa-fé: "Se o dolo comporta um elemento normativo, que é o conhecimento da antijuridicidade da ação, quem age de boa-fé está isento de culpa (em sentido amplo)".

Ademais, importante também é a posição de Greco [94], que aceita a possibilidade de erro de tipo sob o argumento de que "há pessoas que demonstram ter idade muito superior àquela que efetivamente possuem, e isso não deixa de acontecer também com as pessoas que ainda não atingiram a plena capacidade".

Observa-se, portanto, que o erro quanto à idade da vítima, diversamente dos critérios que envolvem aspectos subjetivos da personalidade e comportamento da vítima (que são inconstitucionais!), possui amparo legal, qual seja o art. 20 do Estatuto repressivo.

5.3 O HISTÓRICO VOTO DO MINISTRO MARCO AURÉLIO

Em 1996, quando a questão sobre a relatividade da presunção de violência já se encontrava solidificada nos Tribunais – no sentido de ser esta absoluta –, o Ministro do STF, Marco Aurélio (relator do Habeas Corpus), proferiu seu famoso voto, absolvendo um rapaz que mantivera relação sexual com uma menor de quatorze anos (possuía, à época, doze anos), que, ademais, aparentava ter mais idade.

O caso foi decidido, por maioria (3 votos a 2), pela concessão da ordem de habeas corpus, no qual acompanharam o Eminente Relator os Ministros Francisco Rezek e Maurício Corrêa, e divergiram os Ministros Carlos Velloso e Néri da Silveira (Presidente da 2ª Turma). Eis a ementa do Acórdão [95]:

ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal.

Contudo, o conservadorismo do STF é tamanho, que, inclusive, o Min. Néri da Silveira [96], na qualidade de Presidente da Turma, em Questão de Ordem, opinou, após terem sido proferidos três votos favoráveis à relativização da presunção e um contra (da lavra do Min. Carlos Velloso), pela remessa dos autos ao Plenário, demonstrando, destarte, seu temor em ver concedida a Ordem. Para tanto, utilizou o seguinte argumento:

O presente julgamento não está concluído, o que é bastante ao cabimento da proposta ora feita, diante da significação da ‘quaestio juris’. [...] há risco de a Turma divergir de posição anterior adotada por esta Turma e a Primeira Turma. Dessa maneira, penso que a matéria de tal natureza deva ser apreciada amplamente pelo Tribunal, hoje com posição diferente da que possuía ao serem tomadas as precedentes decisões.

Contudo, ademais da proposta suscitada pelo Ministro-Presidente da Turma, também por maioria, esta foi rejeitada (apenas o Min. Carlos Velloso acompanhou o Presidente), o que fez prevalecer os votos favoráveis já proferidos.

Para o Ilustre Relator Marco Aurélio [97], o que, por certo, é coerente, "a presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade" e, nos dias atuais, "não há crianças, mas moças de doze anos". E justifica:

[...] não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. Tanto não se diria nos idos anos 40, época em que exsurgia [...] o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Àquela altura, uma pessoa que contasse com doze anos de idade era de fato considerada criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.

Outrossim, entende o referido autor que os rigores de um Código, em suas palavras "ultrapassado, anacrônico e, em algumas passagens, até descabido", já não socorre à sociedade, pois, por tudo, não acompanhou a verdadeira revolução comportamental da atualidade. E questiona: "a sociedade envelhece; as leis, não?".

Para o Ministro, uma legislação enrijecida, ao invés de acompanhar a evolução dos costumes, termina por obscurecê-la. E, diante desta situação, cabe ao intérprete da lei o papel de flexibilizar o texto normativo, tornando-o, destarte, "adequado e oportuno", o que atente a uma sociedade global, ágil e avançada – tecnológica, social e espiritualmente.

Na mesma linha, impende destacar a oportuna observação feita pelo Min. Francisco Rezek [98], que, acompanhando o voto do Relator, afirmou:

O que me leva [...] a acompanhar o voto do Ministro relator [...] é a convicção de que não concedê-la (a ordem de habeas corpus) significa proferir, no Supremo Tribunal Federal, uma tese jurídica de risco: a de que a máquina judiciária está dispensada de raciocinar quando a pura e simples consideração da idade das partes transforma o sexo consentido em estupro.

E assim, diante de tantos argumentos, Marco Aurélio, finalizando seu voto, afirmou que a presunção não é absoluta, devendo ceder às particularidades do caso, quais sejam o fato de a vítima levar vida dissoluta e aparentar ter mais idade (erro de tipo, portanto!), o que, conforme o mesmo, é corroborado por Magalhães Noronha [99], que afirma: "Se o agente está convicto, se crê sinceramente que a vítima é maior de quatorze anos, não ocorre a presunção. Não existe crime, porque age de boa-fé".

5.4 É PRESUNÇÃO ABSOLUTA OU RELATIVA? POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS.

Atualmente, apesar de a doutrina, de forma maciça, se posicionar no sentido de a presunção de violência prevista no art. 224, "a", ser relativa, tanto no que diz respeito ao erro de tipo, quanto a aspectos subjetivos da vítima, os Tribunais Superiores – STF e STJ – consolidaram entendimento em posição contrária. É dizer, apesar do voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, e o conseqüente Acórdão do HC 73.662/MG, que aceitou a relativização da presunção com base no erro quanto à idade e comportamento da vítima, o STF solidificou novo entendimento no sentido de ser absoluta a presunção de violência prevista no art. 224, "a", CP, salvo quando ocorrer erro de tipo quanto à idade da vítima. Observa-se, desta forma, que o STF, ao tempo em que informa ser a presunção absoluta, admite a possibilidade de erro quanto à idade da vítima, conforme se infere das ementas ora colacionadas:

[...] ALEGAÇÃO DE QUE A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA NO ESTUPRO DE MENOR DE QUATORZE ANOS SERIA RELATIVA EM RAZÃO DO CONSENTIMENTO DA OFENDIDA: IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO QUANDO A VÍTIMA É MENOR DE QUATORZE ANOS. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o eventual consentimento da ofendida, menor de 14 anos, para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior não elidem a presunção de violência, para a caracterização do estupro. Precedentes. [100]

[...] ESTUPRO. NEGATIVA DE AUTORIA. ERRO DE TIPO. VIDA DESREGRADA DA OFENDIDA. CONCUBINATO. [...] 2. O erro quanto à idade da ofendida é o que a doutrina chama de erro de tipo, ou seja o erro quanto a um dos elementos integrantes do erro do tipo. A jurisprudência do tribunal reconhece a atipicidade do fato somente quando se demonstra que a ofendida aparenta ter idade superior a 14 (quatorze) anos. Precedentes. No caso, era do conhecimento do réu que a ofendida tinha 12 (doze) anos de idade. 3. Tratando-se de menor de 14 (quatorze) anos, a violência, como elemento do tipo, é presumida. Eventual experiência anterior da ofendida não tem força para descaracterizar essa presunção legal. Precedentes. Ademais, a demonstração de comportamento desregrado de uma menina de 12 (doze) anos implica em revolver o contexto probatório. Inviável em Habeas. [101]

No mesmo sentido é a posição consolidada no E. STJ, que entende ser a presunção absoluta, admitindo, contudo, o erro quanto à idade da vítima, a saber:

[...] ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PRESUNÇÃO DE CARÁTER ABSOLUTO. CONSENTIMENTO DA MENOR. COMPORTAMENTO SOCIAL. IRRELEVÂNCIA. 1. É pacífica a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça e do Excelso Supremo Tribunal Federal no sentido de que a presunção de violência prevista no artigo 224, alínea "a", do Código Penal, é de caráter absoluto, desimportando, por conseguinte, o comportamento social da menor, ou o seu próprio consentimento. [102]

[...] ESTUPRO FICTO. PRESUNÇÃO. QUESTÃO FÁTICA PREJUDICIAL. ERROR AETATIS. I - Na denominada violência presumida, em verdade, a proibição contida na norma é a de que não se pratique a conjunção carnal ou outro ato libidinoso, conforme o caso, com pessoas que se encontrem nas situações previstas no art. 224 do Código Penal. II - O error aetatis, afetando o dolo do tipo, é relevante, afastando a adequação típica (art. 20, caput do C. Penal) e prejudicando, assim, a quaestio acerca da natureza da presunção. [103]

No entanto, o mesmo não ocorre nos Tribunais Regionais, que ainda não se posicionaram de forma uniforme sobre a natureza da presunção de violência ora analisada. E mais, as próprias turmas e câmaras de um mesmo Tribunal divergem, conforme se observa em julgados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e São Paulo:

ESTUPRO - MENOR DE QUATORZE ANOS - CONSENTIMENTO DA VÍTIMA - VIOLÊNCIA - PRESUNÇÃO RELATIVA. A presunção de violência mencionada no artigo 224 do Código Penal é relativa, e, havendo comprovação de que a vítima, embora menor de quatorze anos, consentiu nas relações sexuais mantidas com o acusado, sem que tenha havido qualquer ameaça ou violência, desconfigurado está o crime de estupro. Desprovimento do recurso que se impõe. [104]

[...] VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS DE IDADE - AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA REAL OU GRAVE AMEAÇA - IRRELEVÂNCIA - PRESUNÇÃO ABSOLUTA - APARÊNCIA DE IDADE MUITO SUPERIOR - ''ERROR AETATIS'' COMPROVADO - ERRO DE TIPO - ABSOLVIÇÃO MANTIDA [...]. ''Malgrado súmula deste egrégio Tribunal no sentido de que a presunção de violência pela idade da vítima, nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, é relativa, podendo ser elidida caso se demonstre que esta possuía pleno discernimento em matéria de relacionamento sexual e para este consentiu, o critério cronológico deve prevalecer''. ''Assim, se a vítima não é maior de 14 anos (Código Penal, art. 224, ''a''), aludida presunção tem caráter absoluto, que, na esteira do entendimento do colendo Pretório Excelso, não é inconstitucional, visto não se tratar de presunção de culpabilidade do agente, mas de afirmação da incapacidade absoluta de menor de até 14 anos para consentir na prática sexual''. ''Todavia, tal orientação jurisprudencial não elide a exigência do dolo do sujeito ativo, que pode ser excluído por erro justificado quanto à idade da vítima (''error aetatis''), como ocorrido no caso dos autos, afastando-se a adequação típica (art. 20, ''caput'', do CP)''. [105]

Apelação Criminal. Estupro mediante violência presumida (vítima menor de catorze anos de idade). Sentença absolutória. ''Parquet'' busca condenação. Inadmissibilidade. Embora demonstrada a relação sexual, não se há falar em estupro. A ficção legal de violência é de caráter relativo e cede espaço às circunstâncias concretas do caso. Examinado o acervo probatório, não se infere que o ato tenha se dado contra a vontade da vítima ou lhe tenha sido extorquido de forma abusiva. Embora contasse menos de catorze anos de idade, a ofendida consentiu com o ocorrido nos encontros anteriores, a ponto de manifestar o desejo de novamente ficar'' com o réu, o que lança sérias dúvidas sobre o grau de sua inocência, ingenuidade e desinformação sobre o verdadeiro caráter dos atos ali praticados. Optar cegamente pela presunção de violência, nestas condições, seria por demais severo. Absolvição mantida. Apelo Ministerial não provido. [106]

[...] é absolutamente irrelevante que a vítima tivesse plena consciência do ato praticado, tendo feito a opção por vontade própria. A lei estabelece o limite de idade justamente para que se abstraia a vontade da vítima, se não maior de quatorze anos. Abaixo dessa idade, a lei desconsidera que essa vontade tenha algum efeito jurídico. Abaixo dessa idade, seu consentimento, ainda que existente, é inválido, ineficaz, irrelevante e ineficiente, não tendo o condão de contribuir para a absolvição do agente. [107]

Verifica-se, diante dos julgados apresentados, que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, de forma bastante coerente, unificaram o posicionamento e, ademais de entenderem que a presunção é absoluta – quando, em verdade é relativa, já que aceitam prova em contrário –, admitem a possibilidade de ocorrência de erro de tipo (art. 20, CP) quando o menor aparentar ter idade superior à biológica. O mesmo, contudo, não ocorre nos Tribunais Estaduais, que apresentam posições divergentes e, muitas vezes, antagônicas; ao tempo em que algumas Turmas – de um mesmo Tribunal – aceitam a presunção relativa, outras negam tal presunção, afirmando seu caráter absoluto.

Contudo, apesar de os diversos Tribunais Regionais do país não apresentam uniformidade entre si, pode-se afirmar que a maioria dos acórdãos apresentam a mesma tendência já solidificada na doutrina: a de admitir a relatividade da presunção de violência prevista no art. 224, "a", CP. E assim já se posiciona, inclusive, o Tribunal de Justiça Baiano [108], que desde 1996 unificou seu entendimento sobre a natureza relativa da presunção de violência sexual perpetrada contra menores.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Julia Melo Saldanha. Relativização da violência sexual presumida e a tutela do menor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2160, 31 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12815. Acesso em: 16 nov. 2024.

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