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O advogado e a ética

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05/06/2009 às 00:00
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5. O Estatuto da OAB

Temos, no Brasil, a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 – Estatuto da OAB – que abre um capítulo próprio intitulado "Da ética do advogado".

O caput do artigo 31 da Lei diz que o advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia. O parágrafo primeiro fala da necessidade de independência. Já o parágrafo segundo complementa o primeiro. Ele diz que nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado.

Falemos inicialmente do comando trazido pelo caput do artigo 31. Ele fala em respeito e em prestígio da classe e da advocacia.

A leitura de qualquer lei é sempre condicionada pelas circunstâncias que cercam o seu intérprete. Atualmente, quando podemos falar que um advogado merece o nosso respeito? As controvérsias são muitas.

Como pode ele contribuir para o prestígio da classe e da advocacia? Ora, ele somente poderá consagrar esse dispositivo de acordo com a comunidade na qual ele vive. Se ele está imerso numa sociedade que exija de um advogado a realização de uma advocacia técnica centrada na interpretação das leis da forma mais benéfica aos interesses do cliente então somente desta forma o dispositivo estará consagrado.

Se a sociedade entender por prestígio da advocacia a defesa das minorias, então assim deverá se portar o advogado.

Ou seja, o prestígio da classe e da advocacia dependerá da sociedade na qual os advogados estarão envolvidos.

Ocorre que há uma ética universal que deve nortear a conduta do advogado independente de onde ele esteja. Por exemplo: onde quer que esteja o advogado, a conduta de se apropriar indevidamente de bens resultantes do seu cliente será uma prática detestável.

O interessante é que, no caso do advogado, a conduta ética é normatizada. Willian Simon contextualiza esta discussão da seguinte forma:

As discussões sobre ética jurídica tendem a reduzir-se a discussões sobre a regulamentação do advogado. Isso acontece quando as pessoas supõem que uma crítica ética da advocacia poderia ser plausível apenas se fosse suscetível de formulação e aplicação como regra disciplinar.

Deve-se resistir a essa tendência. Embora seja sustentada por muitas das práticas correntes das associações de advogados e investigadores, ela se choca com a corrente central das aspirações tradicionais da retórica profissional. O termo "ética" foi aplicado ao nosso tema justamente para sugerir que envolve mais do que a execução coercitiva das regras. É, em parte, um esforço coletivo para definir o significado da boa advocacia e marcar o caminho para a satisfação pessoa e o respeito social como advogado. Como tal, um dos seus usos mais importantes é como guia para o exercício do arbítrio pelos advogados. E, embora as sanções desempenhem um papel nesse projeto, a crítica informal é igualmente importante. [09]

Durante muito tempo a advocacia esteve associada no Brasil à luta pela democracia. A defesa das instituições havidas por democráticas também esteve na pauta das grandes batalhas da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse período a profissão do advogado era quase artesanal. Ele era o conselheiro do bairro, o senhor sério da paróquia ou o líder do clube social. Tratava-se de figura exemplar que, pela sua cultura perceptível a todos inspirava confiança.

Contudo o mundo mudou e com ele o papel do advogado também.

No próximo tópico trabalharemos uma nova possibilidade teórica em relação ao papel do advogado na sociedade. Falaremos do advogado enquanto homem público.


6. O advogado como um homem público

E se descobríssemos que um advogado havido por vencedor espanca a sua mulher? Seria ele merecedor do nosso respeito? Traria ele, prestígio à classe?

Tudo depende da forma pela qual vemos o profissional da advocacia.

Se o enxergarmos como alguém que nos serve exclusivamente na elaboração de uma petição e nada mais, então pouco importa se ele espanca sua mulher. Contudo, se o advogado assume uma feição pública, acredito que até mesmo uma surra que ele dê no seu próprio filho já é suficiente para arranhar o grau de respeitabilidade que a sociedade pode lhe exigir. E, por conseqüência, arranhar o prestígio de toda a advocacia.

Imaginemos uma situação.

Um advogado defende, no Supremo Tribunal Federal, um polêmico caso pelo qual se debate a inconstitucionalidade de uma lei pró-aborto.

No caso, o advogado se apresenta publicamente como contrário a qualquer forma de aborto. Dá entrevistas neste sentido. Realiza uma eloquente sustentação oral na tribuna da Suprema Corte, tudo transmitido pela TV Justiça. Participa de audiências públicas. Aceita o convite para debater o tema na Câmara dos Deputados. Integra congressos e conferências em universidades. Por onde passa defende com um maior vigor a inconstitucionalidade da lei que amplia as possibilidades da prática do aborto.

De repente, é divulgado na internet um vídeo mostrando uma grande discussão entre ele e a esposa grávida. Após o início do patrocínio da causa, o advogado tenta de todas as formas convença-la a praticar o aborto.

Teria, o advogado, infringido o regramento ético que norteia sua profissão? Ou se trata de uma questão íntima abarcada pelo constitucional direito à intimidade e privacidade? Deve haver punição? Ou não?

O advogado é um homem público sobre o qual não é possível pairar quaisquer dúvidas sobre a conduta tanto profissional, quanto pessoal.

Assim o é não por um exercício de hermenêutica, mas por expressa disposição legal. A intimidade do profissional da advocacia e a sua necessária privacidade são mitigadas pelo munus que ele exerce. As disposições constantes do Código de Ética da OAB deixam muito claro esta situação. Alberto G. Spota discorre bem sobre o caráter social do qual se reveste o exercício da advocacia. Diz ele:

Em resumo: o advogado, que dedica sua ciência e consciência à vida do direito, desempenha por isso uma atividade jurígena enquanto é um fator essencialíssimo da evolução e progresso desse direito, fazendo com que ele não se separe ou – o que resultaria mais grave – não se oponha àquele ‘vitalismo social’ (20) de que falava Hauriou ao fundar a fecunda teoria da instituição. Essa tarefa ética e social do advogado, essa atividade que não se esgota na invocação da lei e em sua aplicação ao caso concreto no qual intervém, senão pelos valores humanos. O advogado – fator concasual de um novo direito que se vai formando através da jurisprudência – está convencido de que, com sua função social, cinge sua atividade vital ao dito de Sêneca: o homem deve ser coisa sagrada para o homem: homo sacra res hominis. É desse modo que ele serve à sociedade, para que as relações entre os homens cumprir com as exigências que surgem daquelas palavras de Dante, já que devemos compreender o direito como proporção de homem a homem, que servindo ao ser humano, sirva à sociedade: hominis ad hominen proportio, quae servata hominun servat societatem. [10]

O artigo 2º do Código de Ética da OAB no Brasil determina que o advogado é muito mais do que um mero defensor da causa por ele patrocinada. A legislação quis ir além. O caput do artigo diz que o advogado é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social. Ora, como é possível defender a moralidade pública se a moral privada de quem a defende não é por ele observada? Como é possível buscar a paz social se o advogado está afastado da lisura e honradez que deveria observar na condução da sua vida privada?

Um advogado deve ser, essencialmente, um bom cidadão.

Ainda no caput do artigo 2º do Código de Ética da OAB temos a expressa determinação de que o advogado deve subordinar a atividade do seu ministério privado à elevada função pública que exerce.

Não tenho a menor dúvida de que o advogado é um homem público e que sua vida particular deve levar isso em consideração. Logo, uma infração ética praticada pelo advogado revela, do mesmo modo, uma infração legal que pode lhe imputar as penalidades previstas em lei.

Com a leitura do Código de Ética da OAB há, no parágrafo único do artigo 2º, um rol de deveres a serem observados pelo advogado.

Logo no primeiro inciso temos a afirmação de que o advogado deve preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade.

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O dispositivo deixa evidente que o papel do advogado está atrelado ao conjunto da obra, ou seja, que a sua conduta não deve se pautar somente pela sua própria nobreza, mas pela nobreza coletiva revelada pela categoria profissional à qual ele pertence, qual seja, a dos advogados.

No inciso II temos a disposição de que o advogado deve atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé.

De todas as características que devem estar presentes na atuação do advogado a que mais me chama a atenção é o decoro. A lei determina que o advogado não atue de forma indecorosa.

Acredito que a cada momento o papel do advogado assume mais uma relevância pública. Basta então que façamos a leitura do inciso III do tão citado artigo. Ele nos diz que o profissional deve zelar pela sua reputação profissional. Entretanto, diz que o advogado deve zelar também pela sua reputação pessoal. E por quê assim o é? Exatamente pelo fato do advogado se revestir de características muito peculiares e todas elas se voltarem para a coletividade.

Quando se diz que o advogado deve zelar pela reputação pessoal não se quer que assim o seja exclusivamente para o bom grado da Ordem dos Advogados do Brasil. Em verdade, quem se beneficia deste tipo de conduta escorreita é toda a sociedade que terá como defensores figuras de vida privada limpa a servir de exemplo para todos.

O advogado deve ter uma vida particular honrada.

O inciso IV, inclusive, diz que o profissional deve empenhar-se permanentemente pelo seu aperfeiçoamento pessoal e profissional.

Profissionalmente o advogado se aperfeiçoa por meio do estudo contínuo, da eterna atualização, da participação em seminários e encontros jurídicos, da leitura disciplinada, da prática constante e da curiosidade intelectual.

Entretanto, pessoalmente, o advogado se aperfeiçoa tentando, com esmero, ser uma pessoa melhor. O aperfeiçoamento pessoal deve caminhar em direção à maturidade, a sabedoria, à solidariedade e a prática da bondade humana.

Por fim, para deixar ainda mais claro que o advogado está necessariamente inserido na comunidade exatamente pela importância do papel que ele exerce o inciso IX do artigo 2º do Código de Ética dispõe como sendo um dever do advogado: "pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comunidade".


Considerações Finais

BENNET, Walter. O mito do advogado: reavivando ideais da profissão de advogado. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da advocacia e da OAB. São Paulo: Saraiva, 2007.

MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual de direito e processo do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2009.

ROBERT, Henri. O advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SAMPAIO, Rubens Godoy. Crise ética e advocacia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.

SIMON, Willian H. A prática da justiça: uma teoria da ética dos advogados. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SPOTA, Alberto G. O juiz, o advogado e a formação do direito através da jurisprudência. Tradução de Jorge Trindade. Porto Alegre: Fabris, 1985.

TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado. Brasília: OAB Editora, 2006.


Notas

  1. LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da advocacia e da OAB. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 181/182.
  2. Cf. SAMPAIO, Rubens Godoy. Crise ética e advocacia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000, p.47.
  3. ROBERT, Henri. O advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.5.
  4. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual de direito e processo do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5.
  5. BENNET, Walter. O mito do advogado: reavivando ideais da profissão de advogado. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 4/5.
  6. TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado. Brasília: OAB Editora, 2006, p.8.
  7. BENNET, Walter. O mito do advogado: reavivando ideais da profissão de advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 14/15
  8. SIMON, Willian H. A prática da justiça: uma teoria da ética dos advogados. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 1/3.
  9. SIMON, Willian H. A prática da justiça: uma teoria da ética dos advogados. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.301.
  10. SPOTA, Alberto G. O juiz, o advogado e a formação do direito através da jurisprudência. Tradução de Jorge Trindade. Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 21-22.
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Sobre o autor
Saul Tourinho Leal

Professor de Direito Constitucional do Intituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Saul Tourinho. O advogado e a ética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2165, 5 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12926. Acesso em: 18 abr. 2024.

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