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As implicações jurídicas decorrentes da inseminação artificial homóloga "post mortem"

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26/06/2009 às 00:00
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Um filho, nascido enquanto ambos os pais estavam vivos, pode ser considerado herdeiro legítimo, enquanto outro filho, nascido por inseminação artificial homóloga após a morte do pai, seria, no máximo, herdeiro testamentário.

RESUMO: O presente estudo visa analisar as consequências jurídicas relacionadas à presunção de filiação e ao direito sucessório nas hipóteses de inseminação artificial homóloga post mortem, que é aquela em que o material genético utilizado pertence ao pai e a mãe biológica, mas que é realizada após a morte de um deles.

PALAVRAS-CHAVE: inseminação, artificial, homóloga, post mortem, filiação, sucessão, família, monoparental.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Ausência de regulamentação legal referente às técnicas de reprodução assistida – 3. Definições importantes: reprodução assistida, fecundação in vivo e in vitro, inseminação artificial homóloga e heteróloga – 4. Presunção de filiação e direito sucessório na inseminação artificial homóloga post mortem – 5. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

A questão relacionada à inseminação artificial homóloga post mortem é de extrema importância, uma vez que pode gerar situações delicadas como o fato de um filho, por ter nascido enquanto ambos os pais estavam vivos, ser considerado herdeiro legítimo, enquanto outro filho, nascido por inseminação artificial homóloga após a morte do pai, ser considerado, no máximo, herdeiro testamentário, o que, inquestionavelmente, viola o princípio da igualdade entre os filhos, contemplado na Constituição.

Como se trata de tema novo ainda não existe jurisprudência firmada sobre o assunto. Porém, isso não impede de se antever os graves problemas que advirão em um futuro próximo.

O objetivo geral desse estudo é analisar as questões relacionadas à filiação, bem como à sucessão hereditária à luz dos princípios constitucionais. Já o objetivo específico é demonstrar o descompasso entre o ordenamento jurídico (ausência de regulamentação específica) e a realidade social, devido aos avanços tecnológicos, especificamente no que tange aos métodos de reprodução assistida.

A sociedade nunca experimentou avanços científicos tão significativos como na última década. Por isso, o Projeto de Lei n.º 90/99, que parece excluir a possibilidade da fecundação post mortem, mostra-se totalmente anacrônico.

O assunto, inegavelmente, é tormentoso e, por isso, não se esgota apenas sob o enfoque jurídico, sendo imprescindível dar ouvidos a outros ramos da ciência social como, por exemplo, a sociologia, a psicologia e a bioética.

O trabalho de pesquisa será abordado utilizando-se os métodos axiológico, histórico e comparativo. Consistirá, ainda, na leitura de obras, artigos de jornais e revistas, bem como de outras publicações referentes ao tema. A pesquisa será, portanto, teórica, bibliográfica e documental.


2. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO LEGAL REFERENTE ÀS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

O artigo 1.597 do Código Civil [01], que trata da presunção de paternidade, faz menção a algumas técnicas de reprodução assistida, como fecundação artificial homóloga, inclusive a post mortem (inciso III), concepção artificial homóloga (inciso IV) e inseminação artificial heteróloga (inciso V).

A esse respeito Silvio de Salvo Venosa esclarece: "o Código Civil não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador" (2002).

Nesse instante é oportuno o seguinte esclarecimento. Sabe-se que as situações da vida têm que ser inseridas nas normas jurídicas, ou seja, as normas são construídas a partir das situações reiteradas da vida. Porém, em alguns casos tais situações se tornam complexas, ao passo que as proposições abstratas continuam muito simples, o que impossibilita se fazer a concreção. Em suma, a sociedade avança mais rápido que o direito. As normas ficam ultrapassadas. Esse fenômeno é conhecido como desfuncionalização do direito. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de pedofilia internacional.

Entretanto, não é isso que ocorre no que tange às técnicas de reprodução assistida, uma vez que CC/02 se refere a temas moderníssimos como a inseminação artificial homóloga post mortem. O que realmente se verifica é a ausência de regulamentação jurídica específica.


3. DEFINIÇÕES IMPORTANTES: REPRODUÇÃO ASSISTIDA, FECUNDAÇÃO IN VIVO E IN VITRO, INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA E HETERÓLOGA

Não obstante a referida ausência legislativa, para melhor compreensão do assunto é imprescindível conceituar algumas expressões que apresentam relação com o presente trabalho.

De acordo com Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França entende-se por Reprodução Humana Assistida "a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com problema de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade" (2002).

Para as referidas autoras as principais técnicas de reprodução assistida são: "inseminação artificial (homóloga, post mortem ou heteróloga), a fecundação in vitro e as chamadas ‘mães de substituição’" (2002).

Elas prosseguem dizendo que "a depender da técnica aplicada, a fecundação poderá ocorrer in vivo ou in vitro. Na inseminação artificial, a fecundação ocorre in vivo, com procedimentos que são relativamente simples, consistentes na introdução dos gametas masculinos ‘dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero, ou dentro do abdômen’. No caso de fecundação in vitro, o processo é mais elaborado e a fecundação ocorre em laboratório, de forma extra-uterina (2002).

E concluem ensinando que a depender da origem dos gametas, a inseminação ou fecundação pode ser homóloga ou heteróloga. "Será homóloga quando a fecundação se der entre gametas provenientes de um casal que assumirá a paternidade e a maternidade da criança. Será heteróloga quando o espermatozóide ou o óvulo utilizado na fecundação, ou até mesmo ambos, são provenientes de terceiros que não aqueles que serão os pais socioafetivos da criança gerada (2002).

De acordo com o Enunciado 105 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil "as expressões ‘fecundação artificial’, ‘concepção artificial’ e ‘inseminação artificial’ constantes, respectivamente, dos incisos III, IV e V do artigo 1.597, deverão ser interpretadas como técnica de reprodução assistida". Assim, conclui-se que as expressões devem ser consideradas espécies do mesmo gênero.

No que tange à inseminação homóloga (inciso III do artigo 1597), o Enunciado 106 do CJF estabelece:

para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.

Apesar de o Código Civil nada mencionar a respeito da condição de viuvez e da autorização escrita do marido, parece acertada essa interpretação, para que não haja confusão de sangue e para que essa técnica não seja utilizada maliciosamente pela viúva em prejuízo de determinado herdeiro necessário, por exemplo.

Por fim, o Enunciado 127 do CJF propõe a alteração do inciso III do artigo 1.597 do CC para constar apenas "havidos por fecundação artificial homóloga", ou seja, procura-se suprimir a parte final do dispositivo, que estabelece a possibilidade de utilização da referida técnica de reprodução assistida após a morte do marido. Como justificativa os ilustres proponentes dizem que é "para observar os princípios da paternidade responsável e dignidade da pessoa humana, porque não é aceitável o nascimento de uma criança já sem pai".

Neste ponto discordamos. Caso se leve em conta o argumento de ser inaceitável o nascimento de uma criança sem pai, estar-se-ia legitimando o aborto quando, por exemplo, uma família, composta pelo marido e pela esposa grávida, se envolve em um acidente automobilístico em que a esposa sofre apenas pequenos arranhões, mas o marido (e futuro pai) não tem a mesma sorte e acaba morrendo.

Além disso, não se pode esquecer que o nosso ordenamento jurídico contempla expressamente a hipótese da adoção póstuma, sem que se cogite de violação dos princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana.

Ao contrário. Roberto João Elias, ao comentar o artigo 42 do ECA, assim se manifesta: "o § 5º instituiu a já denominada adoção post mortem, o que representa um notável avanço em termos de legislação referente a menores, com relevantes benefícios àqueles que estavam para ser adotados" (2004, p. 40).

Com efeito, o artigo 42 § 5º do ECA estabelece que "a adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença". Nessa modalidade de adoção, ao contrário das demais, a sentença constitui o parentesco civil desde a data do falecimento (produz efeitos retroativos).

Traçados esses parâmetros, passa-se a analisar o aspecto constitucional relacionado à inseminação artificial homóloga post mortem.


4. PRESUNÇÃO DE FILIAÇÃO E DIREITO SUCESSÓRIO NA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM

Um dos mais importantes princípios constitucionais é o da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF/88 [02]). Este princípio se espraia por todos os ramos do direito e, especificamente, no âmbito do direito de família, uma de suas facetas é a regra do planejamento familiar.

A esse respeito o artigo 226, § 7º, CF/88, estabelece o seguinte: "fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".

Nesse momento é oportuna a lição de Canotilho que, ao tratar dos princípios da interpretação constitucional, destaca o princípio da máxima efetividade, "pelo qual a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê" (2000, p. 1148).

Quando se pensa em planejamento familiar, isso não se limita a saber o número de filhos que um casal pretenda ter. Vai muito além. Os pais, dentro do possível, devem propiciar todos os meios necessários para o desenvolvimento adequado de sua prole, sem que haja diferença de tratamento em relação aos filhos (princípio da absoluta igualdade entre os filhos).

Paulo Luiz Netto Lobo, ao tratar do planejamento familiar, ensina:

não se pode negar a possibilidade de a pessoa sozinha ter um projeto parental que atenda perfeitamente aos interesses da criança, o que vem de encontro ao contido na Lei n.º 9263/96, que prevê, no seu artigo 3º, caput [03], que o planejamento familiar é parte integrante de várias ações em prol da mulher, do homem ou do casal, numa perspectiva mais abrangente que a do texto constitucional, mas perfeitamente adequada ao nosso sistema jurídico. Nos termos da legislação supracitada entende-se por planejamento familiar o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta iguais direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal, enquanto no plano governamental, o planejamento familiar deverá ser dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas (2003, p. 44).

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Dessa forma, no que tange às implicações jurídicas decorrentes da inseminação artificial homóloga (em especial as questões relacionadas à filiação e ao direito sucessório), entendemos deva ser dado aos filhos o mesmo tratamento, não importando se a referida técnica de reprodução assistida foi realizada antes ou depois da morte do pai. Neste trabalho tomaremos como exemplo a morte do pai como sendo anterior à morte da mãe, por ser o que mais se verifica na prática.

Pensamos dessa maneira, pois, no caso de inseminação artificial homóloga, como o material genético é fornecido pelos próprios pais biológicos, existe uma plena coincidência de filiação, ou seja, o pai falecido vai ser considerado, ao mesmo tempo, pai biológico (o esperma era dele) e pai jurídico (no registro civil vai constar o seu nome como pai).

Entendimento contrário geraria situações mais perniciosas do que as verificadas outrora, quando se estabelecia diferença de tratamento (tanto no que tange à filiação quanto ao direito sucessório) entre filhos biológicos e filhos adotivos. Seria mais grave porque aqui (no caso de inseminação artificial homóloga post mortem), esse tratamento diferenciado ocorreria em relação aos próprios filhos biológicos, o que contraria vários princípios constitucionais.

Imagine o seguinte caso hipotético: um casal que já tenha um filho pequeno passou a ter dificuldade para ter outros filhos devido à impotência coeundi do marido. Assim, resolvem fazer tratamento em uma clínica de reprodução assistida. Porém, determinado dia, ao retornarem de mais uma consulta, se envolvem em um acidente de carro e o marido acaba falecendo. Poucos dias após o óbito a mulher acaba ficando grávida.

Nesse caso, pergunta-se: seria justo dar um tratamento diferenciado entre o filho já vivo e o filho que está para nascer, pelo simples fato de este ter sido concebido uma semana após o falecimento de seu pai? A nosso ver, como a manifestação de vontade do marido era inequívoca (facilmente comprovada pela documentação existente na clínica), e a esposa continua no estado de viuvez, a resposta deve ser negativa.

A doutrina aponta como óbice a esse entendimento o artigo 1.798 do CC/02, que estabelece o seguinte: "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da sucessão", o que, em tese, excluiria da participação na sucessão o nascido após a morte do autor da herança, mediante fecundação artificial, sem que tenha havido prévia concepção.

Nesse ponto concordamos com Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, que entende o seguinte:

não se poder excluir da participação nas repercussões jurídicas, no âmbito do direito de família e no direito das sucessões, aquele que foi engendrado com intervenção médica ocorrida após o falecimento do autor da sucessão, ao argumento de que tal solução prejudicaria ou excluiria o direito dos outros herdeiros já existentes ou pelo menos concebidos no momento da abertura da sucessão. Além disso, não devem prevalecer as assertivas que privilegiam a suposta segurança no processo sucessório (p. 6 e 7).

Para fundamentar sua opinião o referido autor apresenta o seguinte exemplo:

se o falecido não tinha filhos, deixando somente cônjuge sobrevivente e ascendentes do primeiro grau, pai e mãe vivos, a herança seria partida em três quotas iguais, nos termos dos artigos 1.836 [04] e 1.837 [05], ambos do Código Civil. No entanto, havendo ação de investigação de paternidade post mortem julgada procedente, restariam excluídos da sucessão os ascendentes, enquanto o cônjuge, a depender do regime de bens (cf. art. 1.829, inciso I, CC [06]), poderia ou não concorrer com o descendente reconhecido judicialmente. Verifica-se que tal fato, existência de filho não reconhecido, modificaria substancialmente a vocação hereditária, donde se conclui que a segurança no procedimento sucessório é sempre relativa. Nessa hipótese não se vai discutir se o autor da herança desejou ter o filho, manifestou inequivocamente sua vontade; o simples fato da criança existir e uma vez comprovada a relação de parentesco, já seria suficiente para fazer inserir, na ordem de vocação hereditária, um herdeiro legítimo, da classe dos descendentes, de primeiro grau, na condição de filho, com direito à sucessão. Ainda que se trate de uma relação instável, passageira, não desejada, o filho assim gerado terá direito de ser reconhecido, voluntária ou judicialmente, não se discutindo juridicamente acerca de possíveis distúrbios psicológicos graves em relação à criança; ao contrário, a impossibilidade do seu reconhecimento certamente lhe causaria maiores perturbações e prejuízos (p. 6 e 7).

É exatamente esse o raciocínio que deve ser empregado no caso de falecimento do genitor que tenha, de modo inequívoco, deliberado pela preservação do seu material genético para utilização posterior, inclusive para após a sua morte.

O que se constata aqui é a existência de duas normas legais que devem ser interpretadas sistematicamente. A primeira é a regra estabelecida no artigo 1.597, inciso III do Código Civil, que trata da presunção de filiação no caso de inseminação artificial homóloga realizada após a morte do genitor. A segunda vem descrita no artigo 1.798 do mesmo Código, no sentido de que só tem legitimidade para suceder quem já estava vivo, ou, ao menos, já era concebido no momento da abertura da sucessão.

No Brasil (fora a simples menção feita no artigo 1.597, inciso III, CC) não temos legislação proibitiva da inseminação post mortem, como acontece na Alemanha e na Suécia, tampouco existe lei específica admitindo tal prática.

Sendo assim, conforme o perfil estabelecido pela CF/88 para o princípio da legalidade, vale lembrar que tanto a Administração quanto os particulares se submetem a tal princípio, mas os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei não proíbe (basta que não exista lei para que o ato seja considerado válido), ou seja, é uma hipótese de não contradição em relação à lei (é exatamente o contrário do que ocorre em relação à Administração Pública, que só pode fazer aquilo que a lei expressamente determine).

Por esse motivo não concordamos com a regra da cisão dos direitos, que reconhece a presunção de filiação, mas exclui o direito sucessório. O filho resultante da inseminação artificial homóloga post mortem deve ter exatamente os mesmos direitos que são assegurados ao seu irmão biológico concebido ou nascido antes da morte do pai. A interpretação é consentânea com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os filhos, do planejamento familiar etc.

A esse respeito vale lembrar que na França tramita um projeto de lei visando complementar o artigo 725 do Código Civil Francês a fim de reconhecer a capacidade sucessória da criança concebida post mortem, nos seguintes termos: "para suceder, é necessário existir no momento da abertura da sucessão, salvo nos casos de inseminação post mortem quando o marido defunto expressou inequivocamente a sua vontade, por ato notarial e sob a condição que a inseminação tenha sido feita nos 180 dias após a sua morte".

Assim, entendemos que a regra prevista no artigo 1.798 do CC deve ser repensada à luz das modernas técnicas de reprodução assistida, em especial a da inseminação artificial homóloga post mortem, pois somente dessa forma se estará observando todos os princípios constitucionais já mencionados.

Entretanto, no Brasil, dá-se a impressão que caminhamos em sentido contrário, pois, conforme ensina Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior: "o Projeto de Lei nº 90/99 parece excluir a possibilidade da fecundação post mortem. O artigo 15, § 5º, impõe como obrigatório o descarte de gametas e embriões nos casos conhecidos de falecimento de doadores ou depositantes (inciso V) e no caso de falecimento de pelo menos uma das pessoas que originaram embriões preservados (inciso VI). Inclusive diz ser crime utilizar gametas ou embriões de doadores ou depositantes sabidamente falecidos, cominando com pena de detenção, de dois a seis meses, ou multa ao infrator. No caso de burla deste dispositivo, havendo a fecundação post mortem, o artigo 20 prevê que a criança não se beneficiará de efeitos patrimoniais e sucessórios em relação ao falecido" (2005).

Para nós, caso o referido projeto seja aprovado e se converta em lei, ele já nascerá padecendo de grave inconstitucionalidade material, haja vista violar frontalmente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da absoluta igualdade entre os filhos, do livre planejamento familiar, dentre outros.

Ademais, a própria CF/88 garante o direito de herança no artigo 5º, inciso XXX, sem estabelecer nenhuma restrição, motivo pelo qual entendemos que, diante dos avanços tecnológicos e científicos, sendo possível hoje em dia a realização de inseminação artificial homóloga, mesmo após a morte do doador do material genético, seria inconstitucional a interpretação restritiva do artigo 1.798 do Código Civil.

Grande parte da doutrina critica o posicionamento defendido neste trabalho alegando que esse entendimento viola o princípio da segurança jurídica. Porém, essa tese não deve prosperar. Com efeito, a inseminação artificial homóloga post mortem é uma técnica de reprodução assistida excepcionalíssima e, portanto, deve ser tratada como tal. Assim, a regra continuaria a ser a do artigo 1.798 do CC (só pode suceder quem já era concebido ou já estava vivo no momento da abertura da sucessão). Apenas excepcionalmente (só no caso de inseminação artificial homóloga post mortem), os filhos nascidos após a abertura da sucessão teriam direito sucessório.

Na verdade o que ocorre aqui é um choque entre dois princípios constitucionais, quais sejam: dignidade da pessoa humana, de um lado (da viúva e do próprio filho concebido após a morte do pai) e segurança jurídica, de outro (dos demais herdeiros concebidos antes daquele infortúnio).

Como se sabe, os direitos fundamentais não são absolutos. Desse modo, deve-se fazer uma ponderação entre princípios, isto é, ou o valor dignidade da pessoa humana vai preponderar sobre o valor segurança jurídica ou ocorrerá exatamente o contrário. Ao nosso modo de ver, no caso em comento, o primeiro entendimento é mais justo (o valor justiça, por ser um preceito jurídico indeterminado, varia de pessoa para pessoa).

É exatamente isso o que já vem ocorrendo nos casos de relativização da coisa julgada, em que a segurança jurídica, em casos excepcionalíssimos, vem cedendo espaço a outros valores constitucionais. Nesse sentido a lição de Cândido Rangel Dinamarco:

uma coisa resta certa depois dessa longa pesquisa, a saber, a relatividade da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e a necessidade de harmonizá-los. Tomo a liberdade de, ainda uma vez, enfatizar a imperiosidade de equilibrar as exigências de segurança e de justiça nos resultados das experiências processuais (...). Para a reconstrução sistemática do estado atual da ciência em relação ao tema, é também útil recapitular em síntese certos pontos particulares revelados naquela pesquisa, a saber: I – o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade como condicionantes da imunização dos julgados pela autoridade da coisa julgada material (...); IV – o zelo pela cidadania e direitos do homem, também residentes na Constituição Federal, como impedimento à perenização de decisões inaceitáveis em detrimento dos particulares (...); VIII – o caráter excepcional da disposição a flexibilizar a autoridade da coisa julgada, sem o qual o sistema processual perderia utilidade e confiabilidade, mercê da insegurança que isso geraria (2001, p. 10).

O referido autor conclui afirmando o seguinte:

o Superior Tribunal de Justiça radicalizou ao extremo a autoridade da coisa julgada ao dizer que ‘seria terrificante para o exercício da jurisdição se fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada’, sendo libertadora a regra legal que a assegura (CPC, art. 468 [07]). Tratava-se de uma sentença já trânsita em julgado, afirmando a paternidade de uma pessoa em face de um suposto filho, sem a realização do exame de DNA. Tal exame, feito depois de consumada a coisa julgada, veio a afastar essa paternidade, mas o STJ fez prevalecer a autoridade do julgado, nos termos absolutos retratados na ementa. O resultado é que, em homenagem ao mito da segurança das relações jurídicas, aquela pessoa arcará com todos os deveres de pai perante uma pessoa que não é seu filho e em relação ao qual provavelmente não nutre afeição alguma; seus filhos verdadeiros suportarão, no futuro, uma partilha que aquinhoará o não-filho. Esse fortíssimo precedente jurisprudencial, que se alinha na postura tradicional em relação à autoridade da coisa julgada merece censura e suscita, uma vez mais, a preocupação em equilibrar valores constitucionais, sem dar peso absoluto a qualquer um deles (2001).

Ainda sobre a segurança jurídica, a doutrina (embora sem reconhecer o direito sucessório) entende que, caso a técnica da inseminação artificial homóloga post mortem venha a ser realizada, isto deve ocorrer no prazo máximo de dois anos a contar da abertura da sucessão, por aplicação analógica do artigo 1.800, § 4º do CC.

Novamente ousamos discordar. Entendemos que não se pode impor nenhum limite temporal à realização da referida técnica de reprodução assistida, pois isso violaria o princípio da dignidade da pessoa humana (da esposa), bem como o princípio do livre planejamento familiar.

A título de exemplo, imagine o seguinte caso: uma mulher é casada e vem se submetendo a alguma técnica de reprodução assistida, pois seu marido sofre de impotência coeundi. Determinado dia ambos se envolvem num acidente de carro e o marido acaba falecendo, enquanto a mulher sobrevive, mas fica em coma por dois anos. Durante esse período o esperma do marido fica criopreservado. Se for observada a regra do artigo 1.800, § 4º, CC, ao receber alta médica, ela já não poderia mais realizar seu grande sonho, de ser mãe de um filho de seu ex-marido, e isso por imposição jurídica, o que, ao nosso ver é absurdo.

Assim, defendemos a tese pela qual a mulher pode se submeter à inseminação artificial homóloga post mortem no momento que melhor lhe aprouver e, caso a viúva venha realmente a engravidar (em virtude da referida técnica), nada impedirá a realização de uma sobrepartilha futura.

Outro aspecto delicado levantado pela doutrina é o referente ao tipo de sucessão a que estará sujeito o filho concebido pela referida técnica de reprodução assistida.

Dentre os que aceitam o direito sucessório na inseminação artificial homóloga post mortem, a maior parte entende que a sucessão será testamentária, com base no artigo 1.799, inciso I do CC: "na sucessão testamentária, podem ainda ser chamados a suceder os filhos ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão".

A respeito deste dispositivo Juliane Fernandes Queiroz entende que "se o testador pode atribuir a sua herança à prole eventual de terceiros, também o pode, sem qualquer restrição à sua própria prole" (2001, p. 80).

Giselda Hironaka, entretanto, entende de maneira diversa:

o testador não pode indicar sua própria prole eventual, uma vez que a lei exige que a pessoa indicada pelo testamento esteja viva no momento da abertura da sucessão. A solução, assim, seria o testamento por via reflexa, ou seja, se for testador, ele deve indicar a doadora do óvulo e se for testadora, ela deve indicar o doador do espermatozóide (2003, p. 96).

A nosso ver, essa solução confere tratamento distinto entre os filhos, uma vez que "os naturais, os adotivos, os havidos de inseminação heteróloga e até de fecundação in vitro terão direito à sucessão legítima, enquanto os havidos de inseminação artificial homóloga post mortem somente terão direito à sucessão testamentária" (ALDROVANDI e FRANÇA, p.5).

Invocando novamente o princípio constitucional da absoluta igualdade entre os filhos entendemos inconstitucional a tese pela qual, com base no artigo 1.799, inciso I, CC, o filho do mesmo pai e da mesma mãe seja herdeiro legítimo se o pai falecer após a concepção e, de outro lado, seja apenas herdeiro testamentário se o pai falecer antes da concepção.

Nesse ponto concordamos com José Luiz Gavião de Almeida, que ensina o seguinte:

os filhos nascidos de inseminação artificial homóloga post mortem são sucessores legítimos. Quando o legislador atual tratou do tema, apenas quis repetir o contido no Código Civil anterior, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, hoje a possibilidade existe. O legislador, ao reconhecer efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. Essa sistemática é reminiscência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas aos privados desse direito também não nascia relação de filiação. Agora, quando a lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso mais se justifica quando o testamentário tem aptidão para ser herdeiro (2003, p. 104).

Além dos aspectos teóricos esposados até aqui existe um fator, de ordem prática, que corrobora o entendimento pelo qual o filho havido de inseminação artificial homóloga post mortem deva ser considerado herdeiro legítimo e não testamentário: no Brasil não se tem costume de fazer testamento.

Com efeito, Francisco Cahali e Giselda Hironaka ensinam que

esta espécie de aversão à prática de testar, entre nós, é devida, certamente, a razões de caráter cultural ou costumeiro, folclórico, algumas vezes, psicológico, outras tantas. O brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluidos e más agruras ...’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda, não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que estas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar ...’ (CAHALI e HIRONAKA, 2003, p. 264).

Diante de tudo que foi visto, em especial do princípio constitucional da absoluta igualdade entre os filhos, é incontestável que, em relação ao direito sucessório do filho havido por inseminação artificial homóloga post mortem, estamos diante de uma lacuna na legislação infraconstitucional.

Sendo assim, deve-se trazer à baila o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil [08], o qual estabelece que quando a lei for omissa, o juiz pode decidir o caso de acordo com os costumes, mais especificamente do costume praeter legem que é aquele que supre a ausência ou a lacuna da lei e, por isso, também é chamado de costume integrativo.

Em suma, como não é costume do brasileiro deixar testamento, mas sim seguir a sucessão legítima, isso tem que ser levado em conta no momento de decidir o caso, para que o filho havido pela mencionada técnica de reprodução assistida não seja prejudicado em relação aos demais herdeiros do falecido.

Por fim, é importante ressaltar que, apesar das críticas da doutrina em relação à posição defendida no presente trabalho, sob o argumento de que, em tese, a inseminação artificial homóloga post mortem possa ser utilizada para prejudicar terceiros (no caso, os demais herdeiros), não podemos esquecer que, também em tese, quase todos os institutos jurídicos podem ser utilizados para esse fim. Como exemplo podemos citar a hipótese da esposa que trai seu marido e acaba engravidando do amante. Porém, mesmo na certeza de que o filho é de seu amante, tendo em vista a condição econômica deste (extremamente pobre) silencia sobre esse fato para se "beneficiar" da presunção de paternidade prevista no artigo 1597 do Código Civil.

Ou seja, ao analisar as questões debatidas neste estudo, deve-se partir do pressuposto que estão sendo observados, além da boa-fé que se espera em toda e qualquer relação jurídica, dois grandes princípios gerais que orientam o novo Código Civil, quais sejam, eticidade e socialidade.

A eticidade, como o próprio nome diz, visa trazer ética para o Direito Civil. O CC/16 foi concebido sob a égide do positivismo jurídico vigente na Europa no século XIX. Para os positivistas a legislação devia trabalhar com formalismo, rigidez, o que deixava o sistema jurídico completamente fechado.

Naquela época o Direito era concebido como a aplicação de uma norma a um fato concreto, o que muitas vezes gerava insatisfação entre as partes. Por isso Miguel Reale criou a Teoria Tridimensional do Direito, em que se deve levar em conta, além do fato e da norma, um valor, ou seja, deve-se preocupar também com as consequências.

Quando se fala em valor isso quer dizer que algo novo deve ser trazido à nossa sociedade. Exemplo: imagine um juiz que, ao interpretar o artigo 1.790, inciso IV, CC [09] entenda que a expressão "totalidade da herança" englobe apenas os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável e o restante deva ir para o município. Esse entendimento é puramente positivista. O artigo 1.844, CC [10] permite uma interpretação diferente e muito mais justa.

Já o princípio da socialidade rompe com o individualismo para valorizar o coletivo. Exemplos: função social do contrato, função social da propriedade, função social da posse, função social do direito obrigacional (visa evitar que ocorra proliferação de indenização por danos morais), e até mesmo função social da família (que deve ser invocada no presente estudo, afastando interesses individuais e egoísticos dos herdeiros já concebidos ou nascidos no momento da abertura da sucessão e acolhendo valores maiores da instituição familiar, como por exemplo, o seu livre planejamento).

Flávio Tartuce e José Fernando Simão, ao tratar do princípio da função social da família ensinam, a título de exemplo, que "a socialidade pode servir para fundamentar o parentesco civil decorrente da paternidade socioafetiva. Isso porque a sociedade muda, a família se altera e o Direito deve acompanhar essas transformações" (2006, p. 40).

E encerram dizendo que "não reconhecer a função social à família e à interpretação do ramo jurídico que a estuda é como não reconhecer função social à própria sociedade" (2006, p. 40).

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Sobre o autor
Marcio Rodrigo Delfim

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Bolsista/pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Toledo de Presidente Prudente/SP, Especialista em Direito Público (com ênfase em Direito Penal) pela Universidade Potiguar/RN, Bacharel em Direito pela Faculdade Toledo de Presidente Prudente/SP, Ex-coordenador do curso de Direito da Faculdade Objetivo de Rio Verde/GO, Coordenador Pedagógico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás, Técnico Jurídico do MP/GO, Professor de Direito Penal da PUC/GO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFIM, Marcio Rodrigo. As implicações jurídicas decorrentes da inseminação artificial homóloga "post mortem". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2186, 26 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12965. Acesso em: 16 abr. 2024.

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