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A prova pericial: o quimerismo genético e suas implicações para o mundo do Direito

01/07/2009 às 00:00
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A prova, tratada genericamente, constitui o meio formal de se atingir a verdade dos fatos no decorrer do processo, seja ela constitutiva, impeditiva, modificativa ou mesmo extintiva do pretenso fato alegado pelas partes; contudo, não abandonando sua razão essencial no processo, esta é ponderada pelo julgador, que lançará mão de sua cognição perante o argumento factual melhor apresentado para o desfecho justo da lide.

Neste ínterim, questiona-se: o princípio sistêmico jurídico do livre convencimento do julgador deve ser norteado por sua verdade cognitiva, ou a esta "verdade pessoal", mesmo que célebre, apurada e axiologicamente neutra, cabem ressalvas quando defrontadas com as provas periciais, fundamentadas nos mais altos e confiáveis matizes científicos?

A esta questão respondem as honoráveis e rotineiras descobertas e inventos no mundo das ciências; a saber, o quimerismo e o mosaicismo genéticos e seus desdobramentos quanto à confiabilidade dos testes de DNA (ácido desoxirribonucléico), ainda não discutido nos tribunais, em ao menos três situações semelhantes:

a)O quimerismo genético congênito: quando um indivíduo detém dois códigos genéticos distintos em seu organismo, distribuídos aleatoriamente nos diversos órgãos e tecidos, provenientes da fusão de dois embriões diferentes;

b)O mosaicismo genético: quando ocorre anomalia no processo inicial da divisão celular, um único óvulo fecundado, depois de repetidas subdivisões, gera uma sequência genética distinta e a funde no mesmo individuo;

c)O microquimerismo genético: de maior abrangência, ocorre quando há intercâmbio de células por dois indivíduos; sejam comuns, em gestação normal, entre a mãe e o feto; na gestação de gêmeos dizigóticos; fertilizações in vitro; ou de forma induzida, no tratamento de certas leucemias em pacientes que sofreram transplante de medula óssea.

A pacificada posição, em todas as esferas do Poder Judiciário, quanto à confiabilidade dos testes de DNA assentam-se na possibilidade do julgador a quo considerar o resultado como prova confiável, mas não infalível no esclarecimento da verdade buscada no ato jurisdicional e sua consequente justiça.

Contudo, a visão recorrente assenta-se apenas em duas vertentes discutíveis no rumo desta prova cabal: O critério objetivo, na possibilidade real do erro humano, quando da feitura do teste, seja em sua coleta ou análise (negligência, imprudência ou imperícia do laboratório e/ou dos indivíduos envolvidos nas diversas etapas do procedimento) ou fraude (dolo das partes sob quaisquer circunstâncias) e no critério subjetivo, assentado no livre convencimento do julgador, dada sua análise global do caso concreto, sua complexidade, seu alcance; sejam por fatores econômicos, sociais, ou pelo ideal de justiça na pacificação dos conflitos.

De qualquer modo, existe ao menos mais um foco a ser considerado; sobretudo, nos casos penais onde a presunção de inocência do acusado deve ser alcançada nos princípios, basilares democráticos, da ampla defesa e do contraditório, até o justo veredicto.

O critério a priori deve considerar a probabilidade da existência da anomalia genética do quimerismo; mesmo que seus dados estatísticos ainda sejam desconhecidos (até então, apenas quarenta casos comprovados em todo mundo, por mero acaso); pois a possibilidade do eventual erro deve ser analisada em todas as suas variabilidades, sob pena de voraz injusto e consequente perda da meta do Estado Democrático de Direito.

O erro a priori, portanto, não se assenta no teste em si (feito a posteriori, com técnicas reconhecidamente eficazes como meio investigativo); mas na real e reconhecida possibilidade da metodologia atual ainda desconsiderar a existência do quimerismo genético, apesar dos meios científicos necessários serem, grosso modo, os mesmos já utilizados, diferenciados apenas na complexidade e viabilidade econômica (é necessário retirar amostras de vários órgãos e tecidos do investigado, de seus parentes de primeiro grau, inclusive amostras de alguns órgãos internos).

Desse modo, o erro evidencia-se na hipossuficiência quanto ao universo genético posto sob exame, por falta da prática jurídica ou cifras monetárias estatais; pois as sequências do DNA separadas para a verificação verdadeiramente atestam, em seus diversos tipos (observados métodos consagrados: PCR: polymerase chain reaction; RFLP: restriction fragment of length polimorphism; e VNTR: variable number tandem repeats), o até agora definido como normal ou regra na espécie humana; todavia, quando da ocorrência das situações de excludências, o que até o momento era considerado o maior dos acertos do teste de DNA: a negativação, torna-se o principal objeto de erro; pois, independente do número de contraprovas e retroprovas efetuadas nas mesmas amostras coletadas (ou amostras do mesmo órgão ou tecido) no individuo portador do quimerismo genético, a randomicidade de sua anomalia torna o teste e suas contraprovas e retroprovas um jogo de erros numa probabilidade infinita. O investigador, literalmente, gira em círculos concêntricos.

Sob o ponto de vista lógico atual, as negativações deveriam ser categóricas, enquanto as positivações probabilísticas. Entretanto, o novo fato inverte os pólos de possibilidades e tornam as investigações ainda mais necessárias; dadas as consequências, por exemplo, de livrar-se um suspeito de homicídio por falta de compatibilidade genética sua com uma amostra de DNA coletada na cena do crime; ou de um pai ser dispensado da provisão de alimentos por sua exclusão de paternidade, acarretando a perda do direito subjetivo do filho verdadeiro, inclusive à herança e a cruel desmoralização da mulher no final do processo.

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Para citar-se um caso concreto registrado em 2002, a exclusão ocorreu com relação à mãe de dois filhos que teve sua "maternidade" questionada em juízo, sob alegação de fraude contra benefícios públicos; além de suspeita como sequestradora de sua própria prole. A mãe, de 26 anos, Lydia Fairchild, uma quimera genética congênita, ao solicitar um benefício assistencial no Departamento de Serviços Sociais do Estado de Washington, nos Estados Unidos da América, foi requisitada a submeter-se ao teste padrão de confirmação de parentesco via exame de DNA; a surpresa recaiu-lhe quando, intimada a prestar esclarecimentos, viu-se indiciada nos crimes citados e levada a julgamento, no qual lhe sobreveio a dupla sorte do conhecimento desta possibilidade por parte de um dos assistentes da Promotoria daquele estado, e uma terceira gravidez, que fôra acompanhada de perto pelo juiz do caso, até o nascimento do terceiro filho, sob a vigilância de um oficial de justiça. Neste último, semelhante aos seus irmãos, não havia compatibilidade genética materna, dissolvendo a dúvida em parte, pois a inseminação poderia ter sido in vitro.

Dois anos após iniciados os testes de confirmação da anomalia genética, foi-lhe informado que a identidade genética de seus filhos era compatível com a de seu pai; ou seja, por mais bizarro que pareça, o avô materno era geneticamente "a mãe de seus próprios netos".

Tal caso e demais possibilidades plausíveis de ocorrência de erros contundentes, devidas à vasta gama de fatores provocativos do quimerismo genético, como as inseminações in vitro, ou, ainda, a maior incidência dos transplantes de medula óssea ensejam o maior critério possível na feitura dos testes de DNA, independentemente dos fatores de complexidade e economia envolvidos, Tais fatores são historicamente adaptáveis às contingências da sociedade, sobretudo quando provenientes do Poder Judiciário, que não pode se escusar de inaugurar novas fronteiras, admitindo estar sempre "um passo atrás" da sociedade, para lhe assegurar a paz oriunda da justiça.

Apenas as reiteradas solicitações dos julgadores com a formulação de uma nova exigência, sine qua non da excludência do quimerismo e moisacismo genéticos nos testes de DNA, podem criar a salutar reengenharia, com critérios mais apuradamente científicos, dos laboratórios de análises genéticas hoje qualificados a este fim.

Essa nova exigência fará, por seu poder multiplicador (vantagem cognitiva), em seus critérios legais, uma reorganização com uma maior profissionalização do setor laboratorial difuso de suma importância provedoral e de confiabilidade das provas periciais obtidas por laudos técnicos de exame genético.

O mero argumento do aspecto econômico oneroso, aludido para a negativa dessa nova necessidade, não pode (ou não deve) sobrepor-se ao princípio constitucional da presunção de inocência, aliado à ampla defesa e ao contraditório. Há de se lembrar que, em passado recente, esses mesmos chavões de onerosidade foram usados ao que atualmente chama-se de teste de nível básico, de método mais rudimentar. Foi também semelhante o ocorrido com os testes de positivação do HIV nas coletas de sangue e seus derivados. Visões ultrapassadas e que, por reiteradas decisões, atrasavam o estímulo de novas tecnologias, tornando-as mais confiáveis e menos onerosas.

A visão dos Tribunais a respeito da confiabilidade dos testes atuais de DNA deve ser ponderada pelos fatos ora narrados. Em pesquisa no Brasil, foi identificada apenas a recomendação da Portaria do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Portaria S – IMESC – 7, de 29/08/2006, Publicada no Diário Oficial, em 30/08/2006), que regulamenta os procedimentos de coleta de material biológico, emissão de laudo e da metodologia utilizada nos exames de investigação de vínculo genético por meio de identificação de polimorfismos de DNA (item 3.4, Anexo 1 – in verbis: "Indivíduos transfundidos com sangue total ou seus derivados ou que receberam transplante de medula óssea nos últimos seis meses anteriores a coleta, devem ter seu exame feito por coleta de sangue e também swab bucal, para que se evite que o laudo seja inconclusivo por situação de quimerismo.").

Os avanços científicos não podem ser descartados, como se não existissem, pela simples diligência de acreditar em vez de saber. Pode ser incômodo abrir mais uma vez a rocha que fecha a caverna; sempre é doloroso abrir-se mão de uma crença; sobretudo quando filha da ciência; mas, como ensina o saber científico, por seus grandes pensadores: "a ciência é o reinado das verdades transitórias". E este é apenas mais um caso onde a linearidade e o absolutismo, típica do positivismo jurídico, produzida via o clássico exemplo dos testes de DNA, como toda "verdade científica" foram postos em sua fase final de transitoriedade.


Referências:

Legislação no Estado de São Paulo:

http://www.imesc.sp.gov.br/pdf/portaria_S_IMESC_07_2006.pdf

Artigos sobre o caso Lydia Fairchild e outras quimeras:

http://cienciahoje.uol.com.br/261

http://environment.newscientist.com/article/mg18024215.100

http://abcnews.go.com/Primetime/story?id=2315693

http://www.newscientist.com/channel/sex/mg19325974.100-why-marmoset-twins-are-closer-than-most.html

http://www.newscientist.com/article/dn11464-marmosets-may-carry-their-siblings-sex-cells.html

http://www.five.tv/programmes/extraordinarypeople/twininside/

http://ace.mu.nu/archives/118606.php

http://content.nejm.org/cgi/content/full/346/20/1545
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Sobre o autor
Daniel Bevenuto

Advogado e Economista. Pós-graduado em Direito Constitucional e Tributário; Direito Administrativo e Gestão Pública pela Universidade Potiguar – UnP, Natal/RN.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BEVENUTO, Daniel. A prova pericial: o quimerismo genético e suas implicações para o mundo do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2191, 1 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13075. Acesso em: 25 abr. 2024.

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