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Lei seca: já não evita mortes e ainda gera impunidade

04/07/2009 às 00:00
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Impunidade com a nova lei: Tribunal de Justiça de São Paulo usa lei seca para favorecer motorista condenado por beber (O Estado de S. Paulo de 05.06.09, p. C9). O atual artigo 306 do CP, que prevê o delito de embriaguez ao volante, da maneira como foi equivocadamente redigido, não só já não evita crimes (por falta de fiscalização), como também está gerando muita impunidade.

Tragédia com mortes anunciadas: no dia 20.06.09 a famigerada "lei seca" (Lei 11.705/2008), que veio para reduzir as mortes no trânsito e acabar com a impunidade, completa um ano de vigência. Os índices de mortes e acidentes (que no princípio da vigência da lei diminuíram) estão voltando aos patamares de 2007 (O Estado de S. Paulo de 06.04.09, p. C6). São mortes anunciadas (cerca de 35 mil por ano) de uma tragédia que tem solução.

Os objetivos fixados pelo legislador (de 2008) foram: 1) estabelecer alcoolemia zero (no que diz respeito à infração administrativa); 2) tratar o embriagado com rigidez máxima. A fiscalização severa logo após a edição da lei conseguiu mobilizar a sociedade (e alterar o comportamento dos motoristas). Isso está correto e todos nós devemos apoiar. Na parte criminal, entretanto, a nova lei acabou ficando mais benéfica aos motoristas embriagados. Já tínhamos alertado sobre isso (cf. blogdolfg.com.br) e agora os tribunais começam a reconhecer os benefícios da nova lei.

A questão não é complexa: antes do advento da Lei 11.705/2008 o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) não exigia nenhuma taxa de alcoolemia. Bastava a comprovação de um condutor bêbado (dirigir sob a influência do álcool) e uma direção anormal (que coloca em risco a segurança viária). Agora, depois da Lei 11.705/2008, só existe crime quando a concentração de álcool no sangue atinge o nível de 0,6 decigramas.

Conclusão: todas as pessoas que estão sendo processadas ou mesmo que já foram condenadas pelo delito do art. 306 cometido até o dia 19.06.08, desde que tenham sido surpreendidas com menos de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, foram "anistiadas". Todas! Houve abolição do delito. Em outras palavras: o que antes era delito se transformou em mera infração administrativa. Nenhuma conseqüência penal pode subsistir para esses motoristas. A lei seca trouxe lá sua surpresa: na parte criminal, beneficiou os processados ou condenados.

Prova inequívoca: não havendo prova segura de que o motorista, antes da nova lei, tinha 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, impõe-se a absolvição. A lei nova exige essa prova de modo incontroverso. Diante de sua ausência, só resta a absolvição. Na dúvida, absolve-se o réu (in dubio pro reo).

Lei mal redigida: se a nova lei um dia irá alcançar seu objetivo de reduzir o número de mortes no Brasil não sabemos, o que é certo, desde logo, é que ela (pela sua redação completamente equivocada) veio beneficiar milhares de motoristas embriagados que foram condenados ou que estão sendo processados pelos delitos que cometeram.

Mais impunidade: a famosa "lei seca" não beneficiou somente os que cometeram delito até o dia 19.06.08. Ela é, também, extremamente favorável aos que já delinquiram depois dela ou ainda vão delinqüir daqui para frente. A lei nova erraticamente exige a comprovação de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue. As duas únicas formas correntes de se comprovar a taxa de dosagem alcoólica são: exame de sangue e bafômetro. Aliás, no que diz respeito ao bafômetro existe polêmica, porque a lei fala em "alcoolemia", que significa "quantidade de álcool no sangue". Pelo bafômetro não se comprova isso de forma taxativa.

Outro problema: a esses dois meios de prova o motorista suspeito não está obrigado a se submeter, porque ninguém é obrigado a ceder seu corpo para fazer prova contra si mesmo (princípio da não auto-incriminação). Há uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade) proposta pela Associação de Bares e Restaurantes que tramita, sobre esse ponto, no STF.

Não há como comprovar a exigência da lei: é certo que existem outras formas de se comprovar a embriaguez: exame clínico, fotos, prova testemunhal. Mas nenhum desses meios consegue definir (com precisão) a quantidade de álcool no sangue. Logo, se o motorista recusa o exame de sangue e o bafômetro (o que é um direito seu, diga-se de passagem, não podendo ser punido nem sequer administrativamente por essa recusa), ficará praticamente impossível ao poder público comprovar o nível de dosagem alcoólica no motorista.

Conclusão: sem a prova da materialidade do delito (prova de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue) nem sequer prisão em flagrante pode haver. De outro lado, sem tal materialidade, não há como comprovar a existência do crime. Havendo prova de que o agente estava bêbado mas não se comprovando o nível de dosagem alcoólica, pune-se o sujeito pela infração administrativa, mas não há que se falar em delito.

A parte criminal da lei nova é um desastre: a lei seca, como se vê, teve a virtude de sacudir a polícia e, em conseqüência, a sociedade brasileira (e chegou a alterar o comportamento dos motoristas no seu princípio de vigência). A sua parte administrativa (que é muito boa), desde que combinada com a severa fiscalização, pode gerar uma nova cultura, a de jamais dirigir depois de beber. Tudo isso é muito positivo. Na sua parte criminal, no entanto, foi um desastre: ao exigir uma determinada dosagem alcoólica (0,6 decigramas) beneficiou não só os delinqüentes pretéritos (criando uma forma de "anistia") senão também os atuais e futuros (em razão da dificuldade de comprovação da referida dosagem alcoólica).

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Técnica legislativa deficiente: a intenção do legislador foi a de endurecer o Código de Trânsito contra todos os motoristas bêbados (que são responsáveis pela maior parte das 35 mil mortes por ano no Brasil). Mas uma coisa é o que o legislador pretende fazer e outra muito distinta é o que ele (sem saber muitas vezes o que está fazendo) escreve nas leis. A técnica legislativa no nosso país é extremamente deficiente.

Leis e salsichas (a lei a serviço do crime): o delito de direção embriagada não tem que fazer referência a nenhuma taxa de alcoolemia. O importante é o sujeito estar bêbado (sob a influência do álcool ou outra substância) e dirigindo de forma anormal (perigosa, para a segurança viária). Só isso. O legislador, muitas vezes, quer endurecer o rigor da lei mas acaba favorecendo o criminoso. Atira no que vê e mata o que não vê! "Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite" (Otto von Bismarck, alemão, 1814-1898, estadista e militar).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Lei seca: já não evita mortes e ainda gera impunidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2194, 4 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13100. Acesso em: 22 nov. 2024.

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