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O Incidente de Deslocamento de Competência como mais um mecanismo de proteção dos direitos humanos

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05/07/2009 às 00:00
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CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 preocupou-se, como não poderia deixar de ser, com os direitos básicos do homem (Título II - arts. 5º a 17), tanto que, de início, ao tratar dos princípios fundamentais, o constituinte originário deixou consignado que: "A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito (Título I - art. 1º), tendo entre os seus 5 (cinco) principais fundamentos "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º, inc. III).

Não há dúvida quanto à importância dada pelo constituinte à questão dos direitos humanos ao prescrever, como cláusula pétrea, que: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais" (art. 60, § 4º, inc. IV).

A par disso, o constituinte inclui a prevalência de tais direitos dentre os princípios que devem reger as relações internacionais da República Federativa do Brasil (art. 4º, inc. II).

Nessa linha, a EC nº 45/2004 - aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional, publicada no dia 31/12/2004, decorrente da PEC nº 96-A, de 1992, à qual foram apensadas as PECs nº 112-A/95, 127-A/95, 215-A/95, 368-A/96 e 500-A/97, todas tratando da reforma do Poder Judiciário - inseriu no nosso ordenamento jurídico a possibilidade de deslocamento da competência originária para a investigação, processamento e julgamento das graves violações de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, acrescentando ao artigo 109 da Constituição o inciso V-A e o § 5º, com a seguinte redação, verbis:

Art. 109 - Aos Juízes federais compete processar e julgar:

V-A - as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;

§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

A criação do Instituto de Deslocamento de Competência decorreu, dentre outros motivos, da percepção de que, em vários casos, os mecanismos até então disponíveis para a apuração e punição dessas infrações demonstraram-se insuficientes e, até mesmo, ineficientes, expondo de forma negativa a imagem do Brasil no exterior, que, freqüentemente, por meio de diversos organismos internacionais, além da mídia, tem sofrido severas críticas quanto à negligência na apuração desse tipo de crime, que resulta quase sempre em impunidade, não obstante os diversos compromissos por ele firmados, com relação à proteção desses direitos, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e a declaração de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que podem colocar o Estado Brasileiro como sujeito passivos nos casos impunes a elas comunicados.

Por outro lado, não há como negar a grande dificuldade do Governo Federal, no que tange às reiteradas omissões na apuração e punição dos crimes praticados internamente com grave violação aos direitos humanos, uma vez que a competência originária para a investigação, processamento e julgamento encontra-se no âmbito dos Estados, que, muitas vezes, por questões histórico-culturais e sócio-econômicas, mostram-se insensíveis às violações desses direitos os quais o Brasil comprometeu-se, inclusive no plano internacional, a respeitar e proteger e é, de resto, dever elementar e essencial do Estado, como um todo, coibir e punir severamente os seus infratores, sempre com observância da legalidade estrita.

Nessa quadra, o instituto da federalização dos crimes de direitos humanos está em absoluta harmonia com a racionalidade e a principiologia constitucional, sobretudo, ao aprimorar a defesa e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Contribui, ainda, para o aperfeiçoamento da sistemática de responsabilidade nacional e internacional em face das graves violações dos direitos humanos, o que permitirá aprimorar o grau de respostas institucionais, nas diversas instâncias federativas.

Para os Estados cujas instituições responderem de forma eficaz às violações, a federalização não terá incidência, tão-somente encorajará a importância da eficácia das respostas. Para os Estados, ao revés, cujas instituições mostrarem-se falhas, ineficazes ou omissas, estará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal. A responsabilidade primária no tocante aos direitos humanos é dos Estados, enquanto que a responsabilidade subsidiária passa a ser da União.

Daí a relevância da federalização introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e, também, a do caso Dorothy Stang, que, na qualidade de leading case, em muito contribuirá, juntamente com a doutrina que tem se formado, para que se consolide aquele instituto, o qual vem ampliar a garantia da justiça e o combate à impunidade, nos casos em que há graves violações de direitos humanos.

Contudo, o presente estudo apontou como causas limitadoras do uso do incidente em questão: a) a aplicação do princípio da proporcionalidade, consoante o qual o novo instituto é instrumento a ser utilizado em situações especialíssimas, quando devidamente demonstrada a sua necessidade, a sua imprescindibilidade; b) a possibilidade de deslocamento de competência somente nas fases do inquérito e do processo, restando demonstrando que a instauração do primeiro se dá, via de regra, em face daquele que deveria ser protegido contra as graves violações de direitos humanos e não contra o opressor; c) a legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República para provocar o incidente, sendo fundamental que se democratize o acesso ao pedido de deslocamento a outros relevantes atores sociais.

Nesse sentido, portanto, a conclusão inarredável que se impõe é que a consolidação do Instituto de Deslocamento de Competência como mais um instrumento de proteção dos direitos humanos não impedirá o seu uso parcimonioso. Todavia, o instituto poderá aumentar o seu espectro de atuação se forem realizadas alterações legislativas tendentes a corrigir as distorções acima mencionadas, de modo que o Estado possa contar, de fato, com uma estrutura sólida e eficaz de recursos jurídicos para reparar as graves violações aos direitos humanos e, ipso facto, encontrar-se plenamente harmonizado com as normas previstas nos instrumentos internacionais de proteção daqueles direitos.


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Sobre a autora
Fernanda Estevão Picorelli

Pós-graduada em Direito Civil - UNESA. Pós-graduada em Poder Judiciário (MBA) - FGV Analista Judiciário - Justiça Federal de Primeira Instância -Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICORELLI, Fernanda Estevão. O Incidente de Deslocamento de Competência como mais um mecanismo de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2195, 5 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13102. Acesso em: 5 nov. 2024.

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