Dispunha a antiga redação do art. 212 do CPP que as perguntas das partes seriam requeridas ao juiz, que as formularia à testemunha. Tratava-se da inquirição de testemunhas através do sistema presidencialista ou inquirição indireta, em que apenas ao juiz incumbia dirigir-se à pessoa que estivesse prestando depoimento. Com a alteração feita pela Lei Nº 11.690, de 9 de junho de 2008, passou o referido dispositivo a possuir a seguinte redação:
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Diante da nova redação, acendeu-se na doutrina discussão em relação ao momento em que o magistrado deve fazer as perguntas à testemunha, ou seja, se antes ou depois das partes. E se porventura o procedimento correto for a formulação de perguntas direta e inicialmente pelas partes, haveria nulidade em caso de inversão desta ordem? Em caso positivo, de que natureza seria esta nulidade: relativa (sujeita à preclusão e cujo reconhecimento demanda demonstração de prejuízo) ou absoluta? Enfim, foram estas as dúvidas que surgiram no meio jurídico.
Para NUCCI, a nova redação do art. 212 do CPP "não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o Juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido. A nova redação dada ao art. 212 manteve o básico"(NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 8 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2008, p. 481.). Do mesmo entendimento comungam Luis Flávio Gomes, Rogério Santes Cunha e Ronaldo Batista Pinto (GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da lei de trânsito. São Paulo: RT, 2008, p. 302).
Assim, para esta corrente, a ordem permanece a mesma, vale dizer, o juiz toma o depoimento da testemunha, as partes o seguem, inquirindo diretamente e, caso necessário, o juiz complementará os esclarecimentos, sempre na busca da verdade. Em outras palavras, diante das recentes alterações, somente teria sido suprimido o sistema presidencial de reperguntas, e nada mais, ou seja, continuaria o juiz sendo o primeiro a questionar a testemunha sobre o thema probandum.
Interpretando-se literalmente o referido dispositivo, temos que na nova sistemática, as perguntas devem ser feitas direta e inicialmente pelas partes, começando pela parte que arrolou a testemunha (direct examination) e depois pela parte contrária (cross examination). Em seguida, verificando pontos não esclarecidos, pode o juiz fazer suas perguntas à testemunha, complementando a inquirição. Ressalte-se que em nosso sentir esta complementação por parte do juiz pode ser realizada não somente ao final dos blocos de perguntas feitas pelas partes, mas também logo após a resposta da testemunha a cada uma das perguntas de qualquer das partes, sempre que da resposta resultar algum ponto não esclarecido que o magistrado reputar carente de complementação. Além da função complementadora, manteve-se o papel de controle e de fiscalizador do magistrado, devendo ele – logo após a pergunta da parte e antes da resposta da testemunha – avaliar a indagação, indeferindo-a se ela puder induzir a resposta, não tiver relação com a causa ou importar na repetição de outra já respondida. Vê-se, portanto, ao contrário do que alegam alguns comentaristas, que o juiz não foi reduzido, nesse momento importante da atividade instrutória, a um mero convidado de pedra, guardando ele postura ativa, porém imparcial, comedida e equidistante das partes, na produção probatória.
A nosso sentir, foi esta a intenção do legislador, que aboliu o sistema presidencialista para homenagear o sistema de inquirição direta, que se baseia no adversary system dos norte-americanos, em que o magistrado se situa em posição secundária na produção probatória, relegando-se às partes a atividade principal na produção de provas.
E foi exatamente nesse sentido que caminhou o STJ, conforme recente decisão tomada pela sua Quinta Turma:
AUDIÊNCIA. ART. 212 do CPP. NOVA REDAÇÃO. Trata-se de HC impetrado pelo MP em favor do paciente contra acórdão proferido pelo TJ que negou provimento à reclamação ajuizada pelo impetrante (...). Na reclamação e neste HC, a questão de grande relevância é a aplicabilidade do art. 212 do CPP diante da alteração de sua redação promovida pela Lei n. 11.690/2008, que passou a vigir a partir de 9 de agosto de 2008. O MP alega que, designada audiência de instrução e julgamento, essa se realizou no dia 14/8/2008 em desacordo com as normas contidas no referido art. 212 do CPP, uma vez que houve inversão na ordem de formulação das perguntas, o que enseja nulidade absoluta (...), em virtude da violação do referido artigo, bem como do sistema acusatório, do devido processo legal e do princípio da dignidade da pessoa humana (arts. 129, I; 5º, LIV, e 1º, III, todos da CF/1988). O juiz de 1º grau indeferiu o pleito do MP em audiência sob o fundamento de que tal dispositivo legal não trouxe inovação com relação ao sistema outrora estabelecido a respeito da presidência dos atos procedimentais no curso das audiências, qual seja, sistema presidencial, o qual permanece em pleno vigor e, nessa condição, concede ao magistrado o poder/dever de, caso queira, arguir primeiro as testemunhas arroladas pelas partes. (...) Afinal, a teor do art. 212 do CPP com sua nova redação, a oitiva das testemunhas deve ocorrer com perguntas feitas direta e primeiramente pelo MP e depois pela defesa, sendo que, no caso, o juiz não se restringiu a colher, ao final, os esclarecimentos que elegeu necessários, mas sim realizou o ato no antigo modo, ou seja, efetuou a inquirição das vítimas, olvidando a alteração legal, mesmo diante do alerta ministerial no sentido de que a audiência fosse concretizada nos moldes da vigência da Lei n. 11.690/2008. Também restou consignado que, além de a parte ter direito à estrita observância do procedimento estabelecido na lei, por força do princípio do devido processo legal, o paciente teve proferido julgamento em seu desfavor, sendo que, diante do novo método utilizado para a inquirição de testemunhas, a colheita da referida prova de forma diversa, ou seja, pelo sistema presidencial, indubitavelmente lhe acarretou evidente prejuízo. HC 121.216-DF, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 19/5/2009.
Colho ainda, no mesmo sentido, o seguinte precedente do TJRS:
Processual penal. Inquirição das vítimas e testemunhas diretamente pela Magistrada condutora. Nulidade. A nova redação legal do art. 212 do CPP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes: do juiz é exigido o julgamento justo e eqüidistante, de modo tal que não pode ele ter compromisso com quaisquer das vertentes da prova." (Apelação n. 70028349843, da 5ª. Câm. Crim. do TJRS, rel. des. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 18/03/2009)
Impende salientar que referido sistema não é novidade em nossa legislação, dado que o CPP já previa o sistema da inquirição direta das testemunhas no rito do Júri, quando de suas oitivas em plenário (art. 468, antiga redação).
Não há de se negar que a modificação levada a efeito aumentou a responsabilidade das partes, por estarem agora diretamente vinculadas à iniciativa da atividade probatória, o que a nosso sentir implica garantia mais efetiva do contraditório e da ampla defesa, o que espelha aperfeiçoamento do sistema acusatório brasileiro.
Convém salientarmos, entretanto, que caso as partes convencionem em audiência, registrando-se em ata, nada impede que se adote o sistema presidencialista e a inquirição da testemunha inicialmente pelo magistrado. Neste caso, a convenção entre as partes afastaria eventual alegação de violação a seus direitos processuais.
Enfim, a despeito do nosso entendimento esposado nas linhas anteriores, é certo que o tema ainda irá suscitar acaloradas discussões no seio doutrinário, reclamando ainda amadurecimento jurisprudencial.
O STJ já apontou pelo qual caminho irá trilhar. Resta-nos agora aguardar o posicionamento da nossa Suprema Corte de Justiça.