3. Concurso público: um dogma insuperável?
Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 incluiu o direito a acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas dentre os seus preceitos (art. 37, incisos I e II). Carmen Lúcia Antunes Rocha, comentando o dispositivo, ensina que "a acessibilidade dos cidadãos aos cargos públicos implica na abertura de caminhos sociais que conduzem ao Estado, numa mão dupla pela qual trafega o poder democrático. Daí ser o princípio da acessibilidade uma manifestação do princípio da democracia, porque o seu acolhimento no sistema demonstra aquela opção, tornando-a eficaz quanto às competências públicas" 30.
Deste modo, reconheça-se que o acesso aos cargos, empregos e funções públicas exige como condição a busca de igualdade jurídica na criação de oportunidades para se alcançar o serviço público. Então, consoante lembra Adriana da Costa Ricardo Schier 31, veda-se o estabelecimento de critérios desproporcionais que privilegiem alguns candidatos em detrimento de outros, seja para participação no concurso, seja para ingresso no cargo ou função após a aprovação.
Assim o concurso público, ainda na esteira de Adriana Schier, é o procedimento administrativo pelo qual se avalia as condições e qualidades dos candidatos à investidura no cargo, emprego ou função 32. Concretiza a igualdade de oportunidades para os cidadãos terem acesso ao serviço público e exclui a possibilidade de contratação ou investidura discricionárias ou arbitrárias.
A exigência de concurso público, destarte, apenas densifica uma série de princípios constitucionais, tais como a garantia de igualdade de condições, o princípio republicano, o direito de participação na gestão pública, a previsibilidade de critérios e justiça desses critérios, a impessoalidade etc. Mais que legítimos são os seus fins.
O enunciado constitucional que impõe a realização de concurso público para acesso aos cargos, empregos e funções públicas, conquanto, como se afirmou, tutele uma gama de valores e bens constitucionais (igualdade, democracia etc.), não pode, de modo algum, ser compreendido como uma imposição inarredável.
Isto porque, consoante compreensão pós-positivista e sistemática da Constituição, nenhum princípio constitucional ou nenhum bem constitucionalmente protegido podem ser tomados de forma absoluta sob pena de hierarquização indevida da normatividade constitucional. Trata-se, aqui, de um postulado que decorre tanto da idéia de sistema constitucional quanto da natureza principiológica das normas constitucionais.
Deveras, conforme restou adiantado, nenhuma norma constitucional é absoluta, inafastável. O enunciado da Lei Fundamental que impõe a realização de concurso para o provimento de cargos, empregos e funções públicas, nesta seara, como se demonstrará, não foge a este pressuposto, admitindo relativizações, exceções e ponderações decorrentes do próprio sistema constitucional.
No contexto atual da teoria e da praxis jurídicas, não há espaço para bens ou valores inquestionáveis. Admite-se, no quadro jurídico vivenciado, que mesmo os direitos fundamentais, tutelados no rol das cláusulas pétreas, comportam restrições e ponderações. Admite-se, inclusive, na seara do Direito Público, como se referiu anteriormente,até mesmo a relativização de princípios que, durante longo período de tempo, eram tidos como intocáveis, tais como a legalidade e a supremacia do interesse público sobre o privado.
Dentre diversas razões que impõem a não absolutização de nenhum bem ou valor protegido pela Constituição, há que se ressaltar duas: a idéia de sistema constitucional e a concepção principiológica da Constituição.
De acordo com a noção de sistema constitucional 33, dentre diversas conseqüências, tem-se a imposição de que a Constituição deve ser compreendida como uma unidade. Unidade material, ou de sentido, a partir da qual se afirma que tudo que está contido na Lei Fundamental encontra-se em relação. Todos os princípios e regras constitucionais dialogam entre si. Quando se insere algum texto normativo no sistema, altera-se a sua totalidade, o mesmo ocorrendo quando se retira algum texto dele. E assim, o conteúdo da normatividade constitucional somente pode ser compreendido pela sua totalidade, "a totalidade da Constituição como um arcabouço de normas" 34. Unidade formal, de outra face, no sentido de unidade hierárquico-normativa da Constituição. Todos os preceitos constitucionais, de regras ou princípios, encontram-se no mesmo patamar de hierarquia. Não há, na Constituição, uma escala hierárquica de valores ou de princípios. Toda normatividade constitucional deve ser lida nesta perspectiva 35.
Nesta linha de raciocínio, portanto, é de se adiantar que a concepção sistemática da Constituição não poderá compreender, por exemplo, que o enunciado constitucional que exige a realização de concurso para provimento de cargos, empregos e funções públicas seja superior a quaisquer outros. A Constituição, em sua unidade, não autoriza a criação de preferência de uns princípios ou regras em detrimento de outros. E, assim, não se descarta a possibilidade de que, em algumas situações, a exigência de concurso público venha a ser afastada ou ponderada, não de forma arbitrária, mas em vista da necessidade de proteção de outros princípios, valores ou bens constitucionais de igual hierarquia e status.
Note-se, e estas situações serão exploradas em momento posterior, não foram poucas as oportunidades em que o Poder Judiciário operou verdadeira relativização e afastamento da exigência constitucional de concurso público em vista da necessidade de proteção da boa-fé, da segurança jurídica, da proteção das situações consolidadas e consumadas etc. O mesmo ocorre quando há autorização para declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade ou outras situações em que o Supremo Tribunal Federal está legitimado a modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Trata-se de imperativo decorrente da noção de unidade do sistema constitucional.
Outra razão que ainda autoriza a possibilidade de relativização e eventual afastamento da exigência de concurso para provimento de cargos, empregos e funções públicas está fundada na amplamente reconhecida e debatida distinção entre as categorias normativas de regras e princípios. Impõe-se um breve aporte sobre esta questão.
No campo da chamada dogmática pós-positivista, conquanto inexista um consenso no que tange com a distinção (e os critério de distinção) entre regras e princípios, é possível identificar uma certa hegemonia dos chamados critérios da distinção forte, ou qualitativa, entre regras e princípios.
De acordo tais critérios (desenvolvidos, dentre outros, por Dworkin 36 e Alexy 37) se, por um lado, as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência que é ou não cumprida, apontando funtores deônticos bastante claros (impõem, permitem, autorizam ou proíbem uma conduta), os princípios são normas impositivas de uma otimização do sistema, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos. Por conseqüência, as regras são aplicáveis de maneira disjuntiva: se os fatos que estipulam uma regra estão dados, então, ou bem a regra é válida, hipótese em que a resposta que dá deve ser aceita, ou bem não o é, hipótese em que não se aplica à decisão.
Portanto, as regras submetem-se a padrões de validade e vigência, submetendo-se à lógica do "tudo ou nada", eis que não deixam espaço para qualquer outra solução: se a regra vale, deve ser cumprida na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos 38.
Os princípios, ao contrário das regras, por constituírem exigências de otimização, permitem o balanceamento de valores e interesses consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes. Por isso, em caso de colisão entre princípios, estes podem ser objeto de harmomização ou, em último caso, de ponderação, pois eles contêm apenas exigências ou standards que, em primeira linha, devem ser realizados 39.
Estabelecida a distinção, conclusão inevitável é a seguinte: é da natureza dos princípios o fato deles poderem ser ponderados, relativizados; isto que faz com que uma norma seja caracterizada como tal. Se não houver possibilidade de ponderações e relativizações, não se tratará mais de um princípio mas, antes, de uma regra.
Com efeito, reitere-se por outra perspectiva, agora alexyana, regras submetem-se a padrões de validade e princípios submetem-se a padrões de peso, qualidade e importância. Nesta linha leciona Robert Alexy que "um conflito entre regras só pode ser solucionado ou bem introduzindo em uma das regras uma cláusula de exceção que elimina o conflito ou declarando inválida, pelo menos, uma das regras", enquanto "as colisões de princípios devem ser solucionadas de maneira totalmente distinta. Quando dois princípios entram em colisão (...) um dos princípios tem que ceder perante o outro. Porém, isto não significa declarar inválido o princípio afastado e nem que o princípio afastado haja que introduzir uma cláusula de exceção" 40. Assim, regras antinômicas excluem-se segundo critérios de solução pautados na hierarquia, temporalidade ou especialidade (ou mediante a inclusão de cláusula de exceção) enquanto os princípios podem ser ponderados em vista do caso concreto.
Nada obstante, quando se afirma a possibilidade de ponderação dos princípios, considerando a inexistência de hierarquia normativa no sistema jurídico-constitucional e a inadmissibilidade da chamada "tábua pré-definida de valores constitucionais" 41, não se sustenta a possibilidade de ponderações "abstratas", que desconsiderem o contexto do caso concreto 42 e nem a possibilidade de decisões pautadas em opções ideológicas pré-estabelecidas, eis que a ponderação não pode ser tida como uma "caixa preta da qual o intérprete extraia qualquer coisa que ele quiser" 43.
Não sem razão, a doutrina afirma que "sob certas circunstâncias um dos princípios em colisão precede ao outro e sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira diversa e isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios têm diferentes pesos e que prima o princípio de maior peso" 44. Assim, a atividade de ponderação sempre haverá de ser cautelosa, não deverá se estabelecer sob pautas pré-definidas de valores e jamais deverá ser realizada sem o devido manejo de todas as circunstâncias e contexto do caso concreto. Destarte, portanto, sustenta Robert Alexy que a solução da colisão de princípios estabelece uma "relação de precedência condicionada", ou seja, apenas as condições efetivas do caso concreto podem determinar qual princípio haverá de prevalecer:
"A solução da colisão consiste mais em que, tendo em conta as circunstâncias do caso, estabelece-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada. A determinação da relação de precedência condicionada consiste em que, tomando em conta o caso, indicam-se as condições sob as quais um princípio precede ao outro. Sob outras condições, a questão há de ser solucionada inversamente" 45.
Então, de tudo o que se expôs, (i) além de princípios, pela própria natureza e função, poderem ser ponderados, relativizados, (ii) eles jamais podem, previamente, ser hierarquizados, com o fim de se sustentar que, independentemente de uma situação específica, um princípio seja superior ou preferível em relação a outro.
Neste caminho de argumentação, há que se reconhecer que a exigência de realização de concurso para provimento de cargos, empregos e funções públicas, insculpida na Lei Fundamental de 1988, se em algumas situações se comporta como regra, em outras, sem sombra de dúvidas, comporta-se como princípio.
Considere-se, como já se expôs anteriormente, que a realização de concurso público, se não é um direito fundamental (neste sentido, por exemplo, conferir Ingo Wolfgang Sarlet 46, que sustenta que o concurso público é um direito fundamental), com certeza é uma densificação do direito fundamental a igualdade. Assim, por se tratar também de um direito fundamental, comporta-se, ao menos em sua dimensão objetiva, como princípio, como valor da comunidade, o que imporá a necessidade de eventuais ponderações.
Com efeito, segundo a doutrina contemporânea, os direitos fundamentais possuem uma dupla dimensão, quais sejam, a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva 47.
As primeiras manifestações da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais surgiram com a Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, a partir da polêmica decisão da Corte Federal Constitucional alemã no caso Lüth. Sobre esta decisão manifesta-se Ingo Sarlet:
"Apesar de encontrarmos já na doutrina constitucional do primeiro pós-guerra certos desenvolvimentos do que hoje se considera a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, é com o advento da Lei Fundamental de 1949 que ocorreu o impulso decisivo neste sentido. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência continuam a evocar a paradigmática e multifacetada decisão proferida em 1958 pela Corte Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht) na Alemanha no caso Lüth, na qual, além de outros aspectos relevantes, foi dado continuidade a uma tendência já revelada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Pérez Luño, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol praticamente desde o início de sua profícua judicatura" 48.
A partir daí, restou consagrado que os direitos fundamentais não são apenas direitos do cidadão contra abusos estatais. São, também, um conjunto de princípios.
Assim, de acordo com Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, "como dimensão objetiva define-se a dimensão dos direitos fundamentais cuja percepção independe de seus titulares, vale dizer, dos sujeitos de direito" 49. Vai além, portanto, da concretização dos diretos fundamentais em uma esfera meramente individual – a busca desses direitos é, nessa concepção, uma busca inerente a toda a sociedade.
Ademais, a dimensão objetiva significa que é concedido papel independente às normas jurídicas que disciplinam direitos subjetivos, sendo, deste modo, ao mesmo tempo, mais um elemento determinante da juridicidade dos direitos fundamentais.
A grande conseqüência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é a necessidade de sua eficácia ser verificada não somente sob uma perspectiva individualista. Neste contexto, vale demonstrar, mais uma vez, com Ingo Sarlet:
"Com base nesta premissa, a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também que, de certa forma, contribui para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo essencial destes" 50.
Logo, de tudo o que se expôs, não se pode descurar que a exigência de realização de concurso para a ingresso em cargos, empregos e funções públicas, ao passo em que pode se comportar como direito subjetivo dos cidadãos (dimensão subjetiva), também se comporta, em sua dimensão objetiva, como uma valor da comunidade, ou seja, como um princípio, e logo, sujeito mais uma vez a relativizações e ponderações. Nessa dimensão objetiva o princípio do "ingresso na Administração Pública mediante concurso" pode se funcionalizar, pode encontrar limites em outros princípios ou bens da comunidade.
Não será objeto de surpresa, após a explanação que até o presente momento se fez, a verificação de que, em algumas situações, é a própria Constituição Federal que indicia a possibilidade de relativização da exigência de concurso público.
Com efeito, uma leitura atenta da Lei Fundamental permite concluir que existem hipóteses, estabelecidas expressamente no texto constitucional, em que são excepcionadas expressamente a exigência de concurso como requisito para o preenchimento de cargos, empregos e funções na Administração Pública. Estas exceções expressas estão previstas no art. 37, II - que regula a forma de provimento em cargos comissionados -, e IX, que trata da contratação por tempo determinado, visando atender necessidade temporária e de excepcional interesse público. Tais hipóteses, por certo, embora não se refiram a provimento em cargos efetivos, nem por isso deixam de substanciar exceções constitucionais legítimas.
Com efeito, no que se refere aos cargos comissionados, sustenta Adriana Schier que é legítimo que o provimento não se dê através de certame público. Isto porque, como se sabe, "tratam-se de cargos de confiança, nos quais o vínculo entre o agente público e a Administração é de natureza eminentemente política. Ademais, são cargos de livre exoneração e aos seus ocupantes não se estendem todos os direitos concedidos àqueles que ocupam cargos públicos efetivos, como, por exemplo, a estabilidade e o direito à licença especial, dentre outros" 51. Em resumo, com a finalidade de tutelar a confiança em determinados campos de relações políticas, a própria Constituição afasta a exigência de concurso público. Por que não se admitir, e isso será demonstrado adiante, que para tutelar alguns direitos fundamentais, em tese tão ou mais relevantes que a proteção da "confiança nas relações políticas", seja possível também ponderar e afastar a exigência constitucional para provimento de cargos, empregos ou funções públicas sob determinadas condições?
No que diz com a segunda exceção constitucional expressa - a possibilidade de contratação de pessoal por tempo determinado, "a Constituição prevê que a lei (entenda-se, federal, estadual, distrital ou municipal, conforme o caso) estabelecerá os casos de contratação para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público. Trata-se, aí, de ensejar suprimento de pessoal perante contingências que desgarrem da normalidade das situações e presumam admissões apenas provisórias, demandadas em circunstâncias incomuns, cujo atendimento reclama satisfação imediata e temporária (incompatível, portanto, com o regime normal de concursos)" 52.
Como se vê, a contratação de acordo com as regras estabelecidas pela norma do art. 37, IX, da CF/88, consoante Adriana Schier, "atende a necessidades excepcionais, nas quais o interesse público exige medidas céleres da Administração, razão por que é inviável a realização de Concurso Público em tais oportunidades" 53. Mais uma vez, para tutelar a satisfação de interesse público excepcional de forma célere, o próprio texto constitucional relativiza a exigência de concurso público.
Colocando a questão de outra forma, a Constituição parece reconhecer: (i) que a exigência de concurso não é absoluta; (ii) que existem situações em que a necessidade de se proteger outros bens, princípios ou interesses constitucionais podem justificar o afastamento desta exigência; (iii) que o acesso aos cargos, empregos e funções públicas não são superiores, em dadas condições, à necessidade de satisfação do interesse público, a outros direitos fundamentais ou à segurança e confiança em alguns campos de relação política.
Outras situações concretas e específicas, por certo, também são legitimadoras de afastamento da exigência de concurso público. O Poder Judiciário, nesta sede, tem desenvolvido rica experiência através da qual, mediante juízo de ponderação, tem reconhecido direito subjetivo aos cidadãos de exercerem cargo, emprego ou função pública independentemente de aprovação em concurso legítimo. Em outras palavras, no Brasil, os Tribunais Superiores têm desmentido certa idéia, corrente no Direito Administrativo, de que o concurso público é a única forma de provimento legítimo na Administração direta ou indireta.
A jurisprudência reconhece que existem direitos autônomos, ou posições jurídico-constitucionais autônomas, decorrentes da segurança jurídica, da tutela da boa-fé, da dúvida razoável em relação à legitimidade de alguns direitos, que podem ensejar o afastamento da aplicação do art. 37, I e II, da Constituição Federal. Ou, de outra forma: existem situações excepcionais em que os cidadãos terão direito subjetivo ou posição jurídica judicializável ao ingresso, manutenção ou efetivação em cargos, empregos ou funções públicas independentemente de realização e aprovação em concurso.
Neste sentido, confirmando o raciocínio que se vem explorando, digna de menção é a decisão e. Supremo Tribunal Federal, da relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no Mandado de Segurança n. 22357, oriundo do Distrito Federal (Informativo STF 351). O voto, conquanto extenso, é bastante relevante e elucidativo, o que justifica a sua transcrição:
MS 22357/DF
RELATOR: MINISTRO GILMAR MENDES
Voto: A propósito da controvérsia anota a Procuradoria-Geral da República:
"7. Por certo, a obrigatoriedade de realização de concurso público para provimento de cargos em empresas públicas e sociedades de economia mista, prevista nos incisos I e II, do art. 37, da Constituição Federal, não é mais objeto de controvérsias, tornando-se pacífico esse entendimento após decisão dessa Suprema Corte, proferida nos autos do Mandado de Segurança no 21.322, Ministro-Relator Paulo Brossard, publicado no Diário Oficial de 23.04.93.
8. Entretanto, antes do acórdão pioneiro do Supremo Tribunal Federal, a matéria inspirou intensa polêmica, em razão de aparente antinomia entre o disposto nos artigos 37, II e 173, § 1º, da Constituição Federal, reconhecida pelo próprio Tribunal de Contas da União, conforme extrai-se dos presentes autos.
9. Observa-se que, ao julgar regulares as contas da INFRAERO referentes ao exercício de 1990, com acórdão publicado em 03.12.92, o Tribunal de Contas da União convalidou a situação das admissões pretéritas, recomendando apenas que não fossem efetuadas admissões futuras sem a realização de concurso público. Esse acórdão foi proferido pelo TCU embora já existisse decisão administrativa desse mesmo órgão, datada de 06.06.90, decidindo pela obrigatoriedade da aplicação dos incisos I e II, do art. 37, da Constituição Federal, a empresas públicas e sociedades de economia mista, sendo facilmente constatado o caráter controverso da matéria.
10. Ademais, verifica-se que as contratações dos impetrantes, além de promovidas em razão da carência de pessoal qualificado, foram procedidas de rigoroso processo seletivo, em conformidade com o Regulamento da empresa, em atenção ao preceito à época inscrito no § 1º, do art. 173, da Carta Federal, não podendo, em face das circunstâncias, serem consideradas irregulares.
11. Faz-se oportuno ressaltar que, com o advento da Emenda Constitucional no 19/98, o mencionado art. 173, § 1º, da Carta Federal passou a vigorar com nova redação, não mais sujeitando as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias, unicamente, ao regime jurídico próprio das empresas privadas, mas determinando o estabelecimento, por lei, de um estatuto jurídico dispondo sobre vários aspectos a elas inerentes." (fls. 650/651)
Impressiona, na espécie, que o Tribunal de Contas, inicialmente, ao julgar as contas referentes ao exercício de 1990, (acórdão publicado em 03.12.92), tenha-se limitado a reconhecer a necessidade de adoção do concurso público para futuras admissões (fls. 482), o que foi entendido como uma convalidação das admissões realizadas anteriormente.
É verdade, igualmente, que o próprio TCU houve por bem estabelecer o dia 23 de abril de 1993, data da publicação do acórdão no MS 21.322/DF, Plenário, rel. Paulo Brossard, como termo inicial a partir do qual haveriam de ser tornadas nulas as admissões de pessoal. Neste julgamento, firmou-se o entendimento de que "as autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista estão sujeitas à regra, que envolve a administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" estão sujeitos ao princípio constitucional do concurso público para acesso aos cargos e empregos públicos.
Nesse sentido, registrou-se a seguinte passagem do voto do Ministro Adhemar Paladini Ghisi, no Processo TC 674.054/91-1:
"14. Considero, portanto, de grande relevância a data de 23 de abril de 1993, em que foi publicada no Diário da Justiça a decisão final e irrecorrível do E. Supremo Tribunal Federal, que definiu, de uma vez por todas a questão da exigência do concurso público para a admissão de pessoal por parte das empresas públicas e sociedades de economia mista, em geral.
15. A partir dessa data portanto, a ninguém será dado questionar essa matéria, e, se dúvidas existiam, foram afastadas definitivamente, constituindo-se, assim, num marco definidor dessa exigência constitucional, consentâneo com o mérito dos diversos julgados desta Corte de contas.
16. Esse Acórdão pioneiro do Supremo Tribunal Federal anima-me a sugerir, nestes autos, e em relação à tese que ora se discute em caráter definitivo, que se altere a data base a partir da qual deverão ser anuladas as admissões de pessoal, que passaria a ser a da publicação do referido Decisório, isto é, 23 de abril de 1993.
17. Esta proposta se assenta no fato de que as reiteradas decisões do Tribunal de Contas da União a respeito desse assunto de alta indagação jurídica, além de jamais mandarem retroagir à data da vigência da atual Carta Magna a anulação das admissões, aleatoriamente fixaram a data da publicação de sua primeira deliberação sobre a matéria como aquela a partir da qual não mais seriam toleradas as admissões em causa (06/06/1990)." (Acórdão no 056/93, DO 13/12/1993, fls. 19.088-19.090)
Está certo, portanto, que, embora o Tribunal de Contas houvesse, em 06.06.90, firmado o entendimento quanto à indispensabilidade de concurso público para a admissão de servidores nas empresas estatais, considerou aquela Corte que, no caso da INFRAERO, ficava a empresa obrigada a observar a orientação para as novas contratações. Essa orientação foi revista no julgamento das contas do exercício de 1991, assentando o Tribunal que a empresa deveria regularizar as 366 admissões, sob pena de nulidade (fls. 492).
Ao julgar o Recurso de Revisão, o prazo de 30 dias para a adoção das providências referidas foi dilatado para 195 dias contados de 09.05.95, data da publicação no Diário Oficial.
No entanto, tendo o meu antecessor, Néri da Silveira, deferido, em parte, aos 02.10.1995, a liminar (fls. 622), não se executou a decisão do TCU, objeto do presente mandado de segurança.
Na hipótese, a matéria evoca, inevitavelmente, o princípio da segurança jurídica.
A propósito do direito comparado, vale a pena trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do aludido princípio:
"É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança (Treue und Glauben)dos administrados.
(...)
Esclarece OTTO BACHOF que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs.; vol. II, 1967, p. 339 e segs.).
Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa etc., o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se trate de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria."
Depois de incursionar pelo direito alemão, refere-se o mestre gaúcho ao direito francês, rememorando o clássico "affaire Dame Cachet":
"Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos. HAURIOU, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ''Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente e em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis? Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve prazo de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão, sem lhe impor nenhum prazo''. E conclui: ''Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.'' (La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105-106.)" (SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, V. 18, No 46, p. 11-29, 1988).
Na mesma linha, observa Couto e Silva em relação ao direito brasileiro:
"MIGUEL REALE é o único dos nossos autores que analisa com profundidade o tema, no seu mencionado ''Revogação e Anulamento do Ato Administrativo'' em capítulo que tem por título ''Nulidade e Temporalidade''. Depois de salientar que ''o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que originariamente as comprometia'', diz ele que ''é mister distinguir duas hipóteses: (a) a de convalidação ou sanatória do ato nulo e anulável; (b) a perda pela Administração do benefício da declaração unilateral de nulidade (le bénéfice du préalable)''. (op. cit., p.82). (SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, V. 18, No 46, p. 11-29, 1988)."
Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material.
Nesse sentido, vale trazer passagem de estudo do professor Miguel Reale sobre a revisão dos atos administrativos:
"Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si só convalescer, - como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, - mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato.
Escreve com acerto José Frederico Marques que a subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo razoável pode ser considerado requisito implícito no princípio do due process of law. Tal princípio, em verdade, não é válido apenas no sistema do direito norte-americano, do qual é uma das peças basilares, mas é extensível a todos os ordenamentos jurídicos, visto como corresponde a uma tripla exigência, de regularidade normativa, de economia de meios e forma e de adequação à tipicidade fática. Não obstante a falta de termo que em nossa linguagem rigorosamente lhe corresponda, poderíamos traduzir due process of law por devida atualização do direito, ficando entendido que haverá infração desse ditame fundamental toda vez que, na prática do ato administrativo, por preterido algum dos momentos essenciais à sua ocorrência; porém destruídas, sem motivo plausível, situações de fato, cuja continuidade seja economicamente aconselhável, ou se a decisão não corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade social tipicamente configurada em lei." (Miguel Reale, Revogação e anulamento do ato administrativo. 2a ed. Forense. Rio de Janeiro. 1980, p. 70/71).
Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (v.g. art. 2º). Embora não se aplique diretamente à espécie, a Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece em seu art. 54 o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados os atos administrativos, para que a Administração possa anulá-los.
Vale lembrar que o próprio Tribunal de Contas da União aceitou a situação de fato existente à época, convalidando as contratações e recomendando a realização de concurso público para admissões futuras. Observa-se que mais de 10 anos já se passaram em relação às contratações ocorridas entre janeiro de 1991 e novembro de 1992, restando constituídas situações merecedoras de amparo.
Dessa forma, meu voto é no sentido do deferimento da ordem, tendo em vista as específicas e excepcionais circunstâncias do caso em exame. E aqui considero, sobretudo: a boa-fé dos impetrantes; a existência de processo seletivo rigoroso e a contratação conforme o regulamento da Infraero; a existência de controvérsia, à época da contratação, quanto à exigência de concurso público, nos moldes do art. 37, II, da Constituição, no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista; o fato de que houve dúvida quanto à correta interpretação do art. 37, II, em face do art. 173, § 1º, no âmbito do próprio TCU; o longo período de tempo transcorrido das contratações e a necessidade de garantir segurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé.
Assim, meu voto é no sentido da concessão da segurança para afastar (1) a ressalva do Acórdão no 110/93, Processo TC no 016.629/92-2, publicado em 03.11.1993, que determinou a regularização das admissões efetivadas sem concurso público após a decisão do TCU de 16.05.1990 (proferida no Processo TC no 006.658/89-0), e, (2) em conseqüência, a alegada nulidade das referidas contratações dos impetrantes – grifos ausentes no original.
Em outro caso que se admitiu a consolidação de agente público sem concurso, o STF, em voto do Ministro Gilmar Mendes, assim se pronunciou:
O Senhor Ministro Gilmar Mendes Relator:
Verifica-se que o servidor fez a opção pela transposição de cargo e foi aprovado no processo seletivo antes da promulgação da Constituição de 1988, na forma prevista pelo Decreto Lei nº. 2347, de 23 de julho de 1987. Apenas a homologação da referida transposição ocorreu em 12.10.1989.
Na hipótese, a matéria evoca, inevitavelmente o princípio da segurança jurídica.
Esse princípio foi consagrado pela Lei nº. 9684, de 29 de janeiro de 199, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, tanto em seu art. 2º, que estabelece que a Administração Pública obedecerá ao princípio da segurança jurídica, quanto em seu art. 54, que fica o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que forma praticados os atos administrativos, para que a administração possa anulá-los.
Em diversas oportunidades esta Corte manifestou-se pela aplicação deste princípio em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito, tal como nos julgamentos do MS 24,268, DJ 17.09.2004 e do MS 22357, DJ 05.11.04, ambos por mim relatados.
Ressalte-se que a Administração busca anular um ato praticado há mais de 14 anos, não levando em consideração a impossibilidade de sua anulação, em face da decadência administrativa e, ainda, que a época dos fatos a sua constitucionalidade era controvertida.
Esta 2º Turma ao julgar o RE 442.683, Rel. Carlos Velloso, sessão de 13.12.05, aplicou, em caso análogo, o princípio da segurança jurídica para limitar os efeitos da inconstitucionalidade na forma de provimento dos cargos públicos:
"Ementa: CONSTITUCIONAL.SERVIDOR PÚBLICO: PROVIMENTO DERIVADO: INCONSTITUCIONALIDADE: EFEITOS EX NUNC. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA.
I – A Constituição de 1988 instituiu o concurso público como forma de acesso aos cargos públicos. CF Art. 37 inciso II. Pedido de desconstituição de ato administrativo, que deferiu, mediante concurso interno, a progressão de servidores públicos. Acontece que, a época dos fatos – 1987 a 1992 – o entendimento a respeito do tema não era pacifico, certo que, apenas em 19.02.1993, é que o Supremo Tribunal Federal suspendeu, com efeito ex nunc, a eficácia do art. 8º III; art. 10,§único; art. 13§4º; art. 17 e art. 33, IV, da Lei 8.112, de 1990, dispositivos estes que foram declarados inconstitucionais, em 27.08.1998: ADI 837/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, "DJ" de 25.06.1999.
II – Os princípios da boa-fé e da segurança jurídica autorizam a adoção do efeito ex nunc para a decisão que decreta a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos que adviriam para a administração seriam maiores do que eventuais vantagens do desfazimento dos atos administrativos.
III. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
IV. RE conhecido, mas não provido.
Além disso, acentue-se, desde logo, que, no direito brasileiro, jamais se aceitou a idéia de que a nulidade da lei importaria na eventual nulidade de todos os atos que com base nela viesse a ser praticados. Embora a ordem jurídica brasileira não disponha de preceitos semelhantes aos constantes do § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis a impugnação, não se deve supor que a declaração de nulidade afete, entre nós, todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. É verdade que o nosso ordenamento não contém regra expressa sobre o assunto, aceitando-se, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade (cf., a propósito, RMS 17.976, Rel. Amaral Santos, RTJ 55, p. 744). Concede-se, porém, proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktelene) mediante as chamadas fórmulas de preclusão (cf. Ipsen, Jörn, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit Von Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 266 e s. Ver, também, Mendes, Gilmar, Jurisdição Constitucional, São Paulo, 1999, P. 271).
Assim, os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionaliddade.
Dessa forma, verifica-se que, em face do princípio da segurança jurídica, o ato administrativo que homologou a transposição deve ser mantido.
Assim, nego provimento ao recurso.
Como se nota, o Supremo Tribunal Federal, em decisão provocada através do manejo de writ of mandamus pelos interessados, reconheceu o direito subjetivo à efetivação de cidadãos em emprego público independentemente da realização de concurso público.
De acordo com a decisão, a boa-fé dos impetrantes; a existência de controvérsia, à época da contratação, quanto à exigência de concurso público, nos moldes do art. 37, II, da Constituição, no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista; o fato de que houve dúvida quanto à correta interpretação do art. 37, II, em face do art. 173, § 1º, no âmbito do próprio TCU; o longo período de tempo transcorrido das contratações e a necessidade de garantir segurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé foram suficientes para gerar posições jurídicas aptas a afastar, no caso concreto, a exigência de concurso e permitir a efetivação dos interessados no emprego público.
Este tipo construção jurisprudencial, é preciso esclarecer, não é exclusivo do Supremo Tribunal Federal. O Superior Tribunal de Justiça, em idêntica linha, já teve a oportunidade de reconhecer, em homenagem à boa-fé, à dignidade da pessoa humana e à segurança jurídica, o direito de efetivação em cargo público sem realização de concurso. Aliás, no caso que se passa a comentar, o Superior Tribunal de Justiça efetivou cidadão que, inclusive, havia reprovado em concurso público.
Está-se a referir, aqui, ao julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 446.077, oriundo do Distrito Federal (2004/0127683-8), cujo voto do Relator – Ministro Paulo Medina, foi acolhido por unanimidade:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 446.077 – DF (2004/0127683-8)
RELATOR: MINISTRO PAULO MEDINA
EMENTA
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL – APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO EM CONCURSO PÚBLICO – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES – PREVALÊNCIA E RELEVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA SOBRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA – EMBARGOS ACOLHIDOS.
1. A aplicação da "a teoria do fato consumado", em concurso público, é possível, uma vez que corresponde à convalidação de uma situação de fato ilegal, que se perdurou ao longo do tempo, dada a relevância e a preponderância dos princípios da dignidade da pessoa humana, da boa-fé e da segurança jurídica, sobre o próprio princípio da legalidade estrita.
Precedentes.
2. Urge se conceber o princípio da primazia da norma mais favorável ao cidadão, juntamente com a "teoria do fato consumado", quando o jurisdicionado, de boa-fé, permanece no cargo, ao longo de vários anos, dada a demora da prestação jurisdicional e a inércia da Administração.
Efetividade à garantia prevista no art. 5º, inciso LXXVIII, CR/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004.
3. Embargos de divergência acolhidos.
...
VOTO
Não é possível mais transferir ao jurisdicionado o ônus da demora da prestação jurisdicional.
No caso, a Administração Pública também se porta como jurisdicionado.
Não obstante, a responsabilidade da Administração, pela permanência do Embargante no cargo, há mais de oito anos, é solidária à responsabilidade do Poder Judiciário, eis que consta do acórdão embargado, bem como do acórdão do Tribunal "a quo", a falta de diligência do poder público em destituir o Embargante das fileiras da Polícia Militar, quando denegada a segurança do writ.
Por outro lado, não vejo mais como conceber, sob os paradigmas aludidos, a ausência da boa-fé do servidor público, quando amparado por decisão judicial, ainda que precária.
Ora, os atos praticados pelo Poder Judiciário, como todo ato de Estado, gozam de presunção de legitimidade e de veracidade.
O fato de alguns deles serem emitidos de forma precária a exemplo das medidas liminares e das tutelas antecipadas, não lhes retira a natureza implícita de verdadeiros legais.
Assim sendo, como não poderia o jurisdicionado neles confiar?
Confia-se neles, mesmo sabendo que não eternos, ou melhor, imutáveis.
Porém, enquanto se age sob o pálio de um ato jurisdicional vigente, age-se de forma incensurável e com indubitável boa-fé.
Não obstante, o ingresso do Embargante nas fileiras da Polícia Militar, que se deu de forma precária, foi se perpetuando, ao longo do tempo, pela inércia da Administração e pela demora da prestação jurisdicional pelo Poder Judiciário.
Por conseguinte, no atual momento, a destituição do embargante, do cargo irá lhe acarretar danos irreparáveis, haja vista que, após oito anos, já se encontra ele com idade avançada para participar de novo concurso (em que se exige, inclusive, teste de aptidão física, com requisito de seleção) e, completamente, fora do mercado de trabalho relativo à iniciativa privada.
Pergunto: Quem irá arcar com esses danos? O Embargante, que ingressou no serviço público, sob o manto de uma decisão judicial? Ou o Estado, que emitiu uma decisão judicial, que mais tarde mostrou-se equivocada?
Penso que a solução de casos como o dos autos não se faz pela teoria da responsabilidade, mas pela aplicação de princípios gerais de Direito.
Nessa senda, cumpre assinalar que "a teoria do fato consumado" nada mais é do que a convalidação de uma situação de fato ilegal, que se perdurou ao longo do tempo.
Esta convalidação justifica-se pela aplicação do princípio da segurança jurídica, em detrimento do princípio da legalidade estrita, diante do caso concreto. Para corroborar o raciocínio, trago à lume as lições de EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR, in " O princípio da boa-fé e sua aplicação no Direito Administrativo brasileiro". Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. p. 134:
"Essa nova silhueta de que se reveste o princípio da legalidade, igualmente avulta no escólio de Luis Cosculluela Montaner, para quem tal postulado alcançou sentida evolução, traduzindo hoje, em sua essência, a necessidade de que todos os poderes públicos se achem submetidos ao Direito, com a necessária lembrança de que tal vinculação respeita " a todo o bloco de legalidade, inclusive aos princípios gerais de Direito, positivados ou não na Constituição e nas leis".
Tenho defendido que a legalidade estrita não é um postulado máximo do Direito Administrativo.
À legalidade, deve-se associar toda a gama de princípios gerais de Direito e os demais princípios do regime jurídico- administrativo, para que se alcance, na expressão de GERMANA DE MORAES, a juridicidade, isto é, legalidade com justiça, na Administração Pública brasileira.
Como em outras oportunidades o fiz, afasto o princípio da legalidade estrita, para aplicar outros, de mesma hierarquia, porém, com conteúdos e valores maiores que o primeiro, em face das peculiaridades do caso concreto, valendo-me do critério de prevalência ou da relevância de Ronald Dworkin.
Por esse critério, justifica-se a aplicação da "teoria do fato consumado", em concursos públicos, quando se apresentarem de maior relevância, que a estrita legalidade, os princípios de boa-fé, da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica.
Em sua magistral obra "Levando dos direitos a sério". São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 42, Ronald Dworkin adverte que o Direito, enquanto normas gerais e abstratas, não é capaz de se tornar instrumento de realização da justiça, se não tiver em conta as circunstancias específicas do caso concreto. Para isso:
"(...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão, é uma parte importante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é."
Logo conclui que:
"Um princípio como Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas (ainda assim) necessita de uma decisão particular. Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obte-la, então essa é uma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la. Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção – por exemplo, uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estimulado pelo Poder Legislativo. Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem força menor, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como (se fosse) uma razão que inclina numa ou noutra direção". (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 42).
Ademais, é de bom alvitre ressaltar que toda a norma deve ser interpretada dentro de um sistema jurídico.
Ao encontro da aplicação do critério da relevância ou da prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana, da boa-fé e da segurança jurídica, para justificar a adoção da "teoria do fato consumado", no caso concreto, existe outra regra de hermenêutica, cuja aplicação defendi no julgamento do mandado de segurança nº 8.829: o princípio de prevalência da norma mais favorável ao cidadão.
Sobre ele, escrevem as juristas FLAVIA PIOVESAN e DANIELA IKAWA, Segurança Jurídica e Direitos Humanos: O Direito à Segurança de Direitos. In "Constituição e Segurança Jurídica", Coord. Carmem Lúcia Antunes Rocha, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 57:
"Aqui os critérios tradicionais da solução de antinomias, que se orientam por uma lógica interpretativa fundamentalmente formal (não pautada pelos valores em jogo), são substituídos por uma lógica interpretativa essencialmente material, orientada pela prevalência da norma que melhor guarida dê a dignidade da pessoa, ou seja, pela prevalência da norma mais favorável, mais protetiva e mais benéfica à pessoa humana.
O princípio da primazia da norma mais benéfica foi consolidado internacionalmente por declarações e tratados internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito global quanto no âmbito regional."
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a adoção da "teoria do fato consumado", como instrumento de realização da justiça aos jurisdicionados, em questões afetas a concursos públicos encontra precedentes. ...
(...)
Como se vê, a divergência demanda a pacificação da jurisprudência por esta Terceira Seção, inexistindo razão para se afastar a aplicação da "teoria do fato consumado", em matéria de concurso público, quando se reconhece, na análise do caso concreto, a preponderância dos princípios da dignidade da pessoa humana, da boa – fé e da segurança jurídica.
Posto isso, ACOLHO OS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA, para manter o Embargante no cargo, aplicando-se a "teoria do fato consumado".
É possível notar, assim como nas decisões citadas do Supremo Tribunal Federal, que a segurança jurídica, o decurso de largo lapso temporal, a tutela da boa-fé etc., também foram suficientes, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, para gerar posições jurídicas aptas a afastar, no caso concreto, a exigência de concurso e permitir a efetivação do interessado no cargo.
Ou seja, doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores demonstram que a norma exigente de concurso para acesso aos cargos, empregos e funções públicas não é absoluta. Ambas as experiências demonstram, ainda, que situações especiais podem determinar o afastamento da referida "imposição" constitucional. E mais: ambas as experiências ainda demonstram que tais situações especiais, uma vez concretamente satisfeitas, criam, para os cidadãos, um verdadeiro direito subjetivo à efetivação em cargos, empregos e funções públicas, ainda que sem aprovação em concurso de provas e títulos.
Analisando este quadro sob outra leitura, vale recordar, neste momento, a categoria anteriormente citada de Robert Alexy, da precedência condicionada. Afirmou-se, acima, que Alexy sustenta que a solução da colisão de normas constitucionais ou interesses constitucionais substanciados em princípios estabelece uma "relação de precedência condicionada". Ainda de acordo com Alexy, uma vez que os Tribunais realizem alguma atividade de ponderação de princípios, em casos de colisão, esta atividade de sopesamento judicial determina a criação do que se designa lei de colisão. Ou seja, mais uma vez: "As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio que tem precedência" 54.
Projetando para a questão cuja reflexão ora se propõe, as decisões citadas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça criaram, na perspectiva da dogmática constitucional, uma lei de colisão, na medida em que estabeleceram condições sob as quais o princípio da segurança jurídica e da boa-fé etc., têm precedência em relação à exigência de aprovação em concurso público. Ou seja, a lei de colisão, neste caso, determinou a criação de uma regra que indica as situações em que segurança jurídica precede ao concurso público. De acordo com a lei de colisão estabelecida nos precedentes judiciais invocados, a exigência de concurso público há de ceder em favor da segurança jurídica (que terá precedência ou preferência) em vista das seguintes condições não cumulativas: (i) inequívoca boa-fé dos cidadãos beneficiados; (ii) decurso de longo período de tempo; (iii) verificação de incidência concreta da "teoria do fato consumado"; (iv) existência de dúvida fundada, real, em relação à legitimidade de determinado direito ou divergência séria – objetiva - em relação à interpretação de determinado direito.
É preciso registrar, aqui, que não se está a referir a decisão judicial isolada. Os acórdãos citados, de forma exemplificativa, estão inseridos num contexto jurisprudencial mais amplo, dotado de grande estabilidade, permeado de grande debate em questões (vide o caso da Embraer) de repercussão intensa. Não se trata, logo, de buscar criar uma "lei de colisão" a partir de decisão acidental ou contrastante com entendimento majoritário.
Destarte, de tudo o que se expôs, é de se concluir que a exigência de aprovação em concurso, no quadro constitucional e jurídico, para o ingresso ou estabilização de vínculo com a Administração Pública direta ou indireta, longe de ser uma garantia inafastável, é uma exigência que se coloca prima facie.
A conclusão, ao que parece, não é destituída de legitimidade ou de razoabilidade. Mormente num quadro condicionado pelo contexto do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo.