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O controle das cláusulas abusivas nos contratos padronizados e de adesão por meio de tutelas preventivas e coletivas

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23/07/2009 às 00:00
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O combate coletivo e preventivo das cláusulas abusivas, porque amoldado à feição dos direitos dos consumidores, mostra-se capaz de concretizar o ideal de efetividade dos direitos visado pelo Estado Social.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Noções preliminares; 1.1 Os contratos e o Direito: Estado Liberal; 1.2Sociedade de massa, consumerismo e as novas formas de contratação; 1.3Os contratos e o Direito: Estado Social; 1.4Concepção moderna de Direito Contratual: princípios; 1.4.1Autonomia privada; 1.4.2 Boa-fé; 1.4.3Justiça contratual; 2Cláusulas abusivas; 2.1Noção; 2.2 Distinção entre cláusulas abusivas e cláusulas ilícitas; 2.3Cláusulas abusivas como ofensa ao princípio da autonomia privada; 2.4Cláusulas abusivas como ofensa ao princípio do equilíbrio contratual; 2.5Cláusulas abusivas como ofensa ao princípio da boa-fé; 2.6Regime jurídico das cláusulas abusivas; 3 Tutelas preventivas e coletivas como forma de controle das cláusulas abusivas; 3.1 Importância da prevenção coletiva contra as cláusulas abusivas; 3.2 Dano e ilícito: distinção; 3.3 Fundamentos normativos das tutelas inibitória e de remoção do ilícito coletivas; 3.4 Tutela inibitória; 3.5 Tutela de remoção do ilícito; 3.6 Técnicas processuais: mandamental e executiva lato sensu; 3.7 A ação civil pública como o instrumento processual mais efetivo na concretização da tutela preventiva e coletiva do consumidor contra as cláusulas abusivas; Considerações finais; Referências bibliográficas.

RESUMO

A presente monografia trata do controle das cláusulas abusivas inseridas nos contratos padronizados e de adesão por meio de tutelas preventivas e coletivas, a partir do conceito de cláusula abusiva extraído do exame da evolução do Direito Contratual e de seus princípios. O objetivo do estudo é demonstrar — utilizando-se do método dedutivo e de pesquisa bibliográfica — que diante da realidade social massificada da contemporaneidade, o trato coletivo e preventivo das cláusulas abusivas é mais eficiente na tutela dos interesses consumeristas, na medida em que estes interesses se revelam inadequados à forma de proteção oferecida pelos ordenamentos inspirados em ideais liberais, estruturada sobre um paradigma ressarcitório e individual. O combate coletivo e preventivo das cláusulas abusivas, porque amoldado à feição dos direitos dos consumidores, mostra-se capaz de concretizar o ideal de efetividade dos direitos visado pelo Estado Social, evitando que se os vulnere, por meio de uma atuação que abrange uma infinidade de cidadãos que, d’outra forma, restariam desprotegidos.


INTRODUÇÃO

Justifica o estudo do tema escolhido o largo alcance que as cláusulas abusivas apresentam na contemporaneidade e o grande potencial lesivo que carregam consigo, o que torna imperioso um tratamento que tenha um alcance proporcional ao seu, é dizer, coletivo, e que evite a concretização daquela carga lesiva, através de uma atuação preventiva.

Pretende-se demonstrar, de início, o contexto em que surgiram as cláusulas abusivas, para, em seguida, examinar os efeitos de sua lesividade sobre a transformação do modelo de Estado e do Direito Contratual. Tenciona-se, ainda, definir as cláusulas abusivas a partir dos princípios advindos destas transformações, para, finalmente, tratar-se dos meios processuais e procedimentais de que se dispõe para combatê-las.

Neste passo, mostrar-se-á, no primeiro capítulo deste trabalho, que com o desenvolvimento do capitalismo industrial, a partir do século XVIII, houve profundas modificações sociais, políticas e econômicas — bem traduzidas no que se vem chamando de massificação social — que acarretaram a alteração na própria estrutura dos contratos, os quais adquiriram perfil igualmente massificado, já que passaram a ser produzidos de maneira padronizada e oferecidos à adesão pelo contratante economicamente forte ao economicamente débil. Esta forma de contratação, se de um lado permite atender ao dinamismo reclamado pela sociedade moderna, autoriza, de outro, que a parte forte se aproveite da falta de opção da fraca (que, no mais das vezes, necessita do produto oferecido ou é incitada a "necessitá-lo"), para garantir-se contra reveses eventuais através da imposição de estipulações que o beneficiem indevidamente, em prejuízo do co-contratante, é dizer, através das cláusulas abusivas.

A percepção desta realidade conduziu a uma revisão dos conceitos de Estado e de Direito, até então estruturados sobre uma ideologia liberal, perante a qual todos seriam iguais e teriam as mesmas condições de defenderem seus interesses. A partir daí, intenta-se demonstrar, surge o Estado Social e o Direito Contratual moderno, fundado este último nos princípios da autonomia da vontade, da justiça contratual e da boa-fé.

Ditos princípios, analisa-se no capítulo segundo, darão a base para que se reconheça a antijuridicidade das cláusulas abusivas e se as combata, visto que tal antijuridicidade reside exatamente na sua afronta.

Na última parte deste trabalho procurar-se-á demonstrar que, uma vez inseridas em um contexto de massa, as cláusulas abusivas não podem receber apenas o tratamento individualizado e ressarcitório, característicos da época liberal, pois que ineficiente ao seu combate e à tutela dos interesses que o Estado Social passa a resguardar e que, em razão das peculiaridades que guardam, não são amoldados àquele tipo de tratamento. Assim sendo, aborda-se a relevância que as tutelas coletivas e preventivas adquirem no resguardo destes interesses e o modo como refletem o próprio Estado Social, na medida em que asseguram a efetividade dos direitos tão visada pelo modelo estatal moderno, que intenta de fato garantir os direitos que declara.

O tema reveste-se de grande atualidade, uma vez que o ordenamento brasileiro foi estruturado sobre ideologias liberais que, por conta de serem ainda muito arraigadas na cultura brasileira, fazem com que as tutelas de perfil preventivo, desde 1985 previstas com maior amplitude — pelo menos no que toca aos interesses coletivos lato sensu — encontrem reservas por parte dos aplicadores do Direito. É, portanto, curial que se trate do tema tanto que possível, a fim de inculcá-lo na cultura nacional e de proporcionar a efetiva tutela dos direitos declarados por um Estado que se pretende Social.

Esta monografia pretende, pois, de forma sucinta e não exaustiva, aclarar, por meio da utilização do método dedutivo e de pesquisa fundamentalmente bibliográfica, o modo como o direito do consumidor de não ser atingido por estipulações abusivas pode ser efetivamente tutelado.


CAPÍTULO 1

Para que seja possível desenvolver um estudo mais completo sobre as cláusulas abusivas e o seu correspondente controle é indispensável a análise do contexto histórico que permitiu o seu surgimento, assim como das transformações políticas, sociais e econômicas que autorizaram uma reação, na esfera jurídica, a elas.

Conforme se verá adiante, foi com o advento do Estado Liberal, pautado essencialmente no valor liberdade e com o consequente desenvolvimento do capitalismo industrial, que as cláusulas abusivas encontraram campo fértil à sua gênese e proliferação.

Após sentida a nocividade da liberdade sem limites, uma série de modificações políticas, sociais e econômicas surgiu em oposição à concepção liberal de Estado e de Direito, estimulando uma ampla revisão de seus postulados e oportunizando a definição de um novo conjunto principiológico [01]. Neste novo contexto, a que chamaram de Estado Social, inserem-se novos princípios de justiça material e de boa-fé, que permitirão a definição do conceito de cláusula abusiva e, por conseguinte, o desenvolvimento de um conjunto normativo que busca evitar a sua inserção nos contratos de consumo e a consecução de seus efeitos nocivos.

1.1.– Os contratos e o Direito no Estado Liberal

O Estado Liberal surgiu no século XVIII com as revoluções burguesas, em oposição ao Estado Absolutista até então vigente. Como opositor que era, visava primordialmente a garantia da liberdade individual, tida pela filosofia da época como direito natural preexistente ao Estado, no estado de natureza.

Buscando assegurá-la, pautava-se nas ideias de que o Estado é um mal necessário, de que todos são livres e iguais em direitos, e de que a vontade é elemento essencial da política e da economia.

A figura ‘Estado’, consoante as teorias contratualistas nascidas naquele período, encontra sua origem no consentimento dos próprios cidadãos que, pautados na liberdade que possuem no estado de natureza, decidem criá-lo — impondo limites à própria liberdade e legitimando o poder político — para que exerça o fim fundamental de permitir a eles a conservação dos próprios direitos naturais. Sua tarefa, portanto, cinge-se a garantir tais direitos naturais através da força pública. É dizer, conservar aquilo que os indivíduos por natureza já têm [02].

Esta estrita tarefa do Estado é reforçada por outro conceito prevalente à época: o de igualdade formal. Segundo ele, todos os indivíduos têm o mesmo tratamento legal, ou seja, são iguais perante a lei e possuem, portanto, as mesmas condições de atingir seus interesses. Por conta desta ideia não se admite uma ingerência do Estado que ultrapasse o estrito linde da garantia da liberdade individual, procedendo a quaisquer discriminações, sejam positivas ou negativas, pois só assim — entendia-se — não se estaria retirando as condições de igualdade dos indivíduos para pelejarem por seus objetivos.

As doutrinas econômicas do período, notadamente a de Adam Smith, também reforçam o ideário dominante na medida em que defendem um sistema de liberdade natural, que ordenaria a atividade econômica de um modo conducente ao progresso. Segundo esta tese, o equilíbrio econômico e o proveito público adviriam da livre competição entre os sujeitos privados, que trariam automaticamente benefícios a toda sociedade ao perseguirem seus objetivos. Ao Estado, como se disse, cumpria a mera garantia da liberdade de cada um, através do afastamento de quaisquer restrições ou incentivos econômicos. Qualquer intervenção que ultrapassasse este restrito âmbito era vista como inútil e prejudicial ao equilíbrio natural das trocas.

Assim é que, no Estado Liberal, cabe a cada cidadão — individualmente considerado e tido como igual — o manejo da sua liberdade jurídica, a qual se manifesta através da vontade individual. Esta, por sua vez, concretiza-se principalmente através do contrato – figura fundamental do período.

Traduzindo todo este contexto, acha-se o princípio da autonomia da vontade. Este princípio, essencial ao Direito Contratual, é a máxima expressão do individualismo e do voluntarismo em sede contratual. Significa que os indivíduos são livres para, conforme lhes determine suas vontades, contratar, deixar de contratar e, ainda, e principalmente, definir o conteúdo do contrato e os limites das obrigações que querem assumir [03].

Bem por conta de ter sido livremente manifestada, a expressão da vontade vincula os contratantes com a mesma força de lei [04]: o contrato é lei entre as partes e não pode ser alterado nem pelas autoridades legislativa e judiciária, senão pela própria e nova expressão de vontades dos contraentes [05].

No dizer de Cláudia Lima Marques,

A doutrina da autonomia da vontade considera que a obrigação contratual tem por única fonte a vontade das partes. A vontade humana é assim o elemento nuclear, a fonte e a legitimação da relação jurídica contratual e não a autoridade da lei. Sendo assim, é da vontade que se origina a força obrigatória dos contratos, cabendo à lei simplesmente colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumprimento das promessas e limitar-se a uma posição supletiva [06].

Neste contexto, alude Marcelo Câmara à construção de um sistema normativo alicerçado na propriedade e no contrato, livremente firmado e com valor de lei entre as partes. A justiça contratual adviria naturalmente do fato de o contrato ter sido discutido e consentido pelas partes, que são quem melhor pode saber o que é melhor para si [07]. Certamente, este entendimento apoia-se na presunção da mesma forma liberal de que, por terem igualdade formal, todos são também iguais em força e liberdade de discussão.

Assim, como reflexo do Estado no qual se inseria, o direito privado da era liberal — marcado, como se viu, pela abstração e pelo domínio do princípio da autonomia da vontade — constituiu elemento favorável à expansão dos grupos econômicos exsurgentes, permitindo rápida evolução do capitalismo e a firme sensação de suas consequências, como se verá no item seguinte.

1.2.- Sociedade de massa, consumerismo e as novas formas de contratação

O desenvolvimento do capitalismo industrial acarretou numerosas transformações que culminaram na ascensão do chamado Estado Social. Destas, destacam-se as grandes crises do início do século XX, a evolução das técnicas de produção e comércio, a urbanização, o crescente assalariamento das massas populacionais seguido do consumo de massa, dentre outras.

A urbanização é uma das mudanças mais importantes desse quadro de transformações. Consequência do crescimento exponencial da população, da melhoria das condições de vida trazidas pelo desenvolvimento econômico e da migração do campo para a cidade [08], resultou na forte elevação do consumo, (em grande medida acompanhada da evolução da indústria da publicidade, a qual promove verdadeira incitação ao consumo, ao criar "necessidades" para os consumidores [09]).

A indústria em geral, para satisfazer as novas necessidades de oferta de produtos e serviços que rapidamente emergia, passa a apoiar-se em um modelo de padronização da produção, "planejando-se um único produto e o reproduzindo milhares de vezes numa escala de produção industrial, porque assim se conseguiria ofertar mais produtos a um menor preço, para mais pessoas, atingindo maiores camadas da população." [10] Como consequência desta oferta de produtos em escala industrial, também os contratos passam a ser produzidos em série, de forma padronizada, como adiante se verá.

Fernando Noronha refere-se à "massificação da sociedade" como a grande resultante da urbanização e da concentração de capital nas mãos empresárias. Com efeito, a expressão sintetiza a dimensão das mudanças experimentadas no seio social. Afinal, pode-se verificar toda sorte de massificação: urbana, na produção, na comunicação, no processo civil, etc [11].

A que por hora interessa é a massificação das relações de consumo. Fortemente sentida nos dias atuais, e certamente irreversível, traduz-se nos contratos padronizados e de adesão.

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Esta modalidade de contrato tem a mesma feição da produção padronizada: é planejada e elaborada unilateralmente pelo fornecedor, feita num padrão reproduzido centenas de vezes na série e sem qualquer participação do consumidor. Cláudia Lima Marques ensina que a empresa, e mesmo o Estado, na sociedade de massa atual — por encontrarem-se na iminência de efetuar uma série de contratos homogêneos em conteúdo, porém com uma infinidade de contratantes — obrigam-se, por questões de economia, racionalização, praticidade e segurança, a predispor antecipadamente um esquema contratual oferecido à simples adesão dos consumidores [12]. É dizer, pré-redigem "um complexo uniforme de cláusulas, que serão aplicáveis indistintamente a toda esta série de futuras relações contratuais" [13].

A massificação contratual é, assim, resultado do processo capitalista de concentração industrial que, por questões de racionalidade econômica, redução de custos e aceleração do ritmo dos negócios, forçou a adoção de técnicas contratuais uniformes [14].

O fenômeno opera uma mudança de paradigma no Direito Contratual, pois o contrato clássico, discutido e paritário, cede espaço ao padronizado e massificado [15]. A massificação forçou o abandono da forma clássica de contratação, na qual as partes sentavam-se para discutir todos os pormenores contratuais, resultando em um contrato discutido e paritário. A partir de então, os contratos passam a ser "oferecidos" prontos aos interessados, que podem somente contratar ou deixar de contratar, sem qualquer forma de ingerência sobre o seu conteúdo. A prerrogativa de definir o conteúdo contratual é subtraída do contratante economicamente débil.

Este unilateralismo, se de um lado autoriza a agilidade negocial, permite de outro, que o fornecedor se utilize do contrato como instrumento para assegurar a sobrevivência de sua empresa, garantindo-se e fortalecendo-se contra eventuais reveses. Para tanto, insere nos contratos toda sorte de cláusulas que assegurem aquele desiderato, muitas vezes deixando o aderente, que necessita adquirir o produto, em situação desvantajosa. Conforme se verá, é exatamente neste contexto de desvantagem excessiva que se inserem as cláusulas abusivas.

A padronização contratual, frequentemente acompanhada da adesão, frise-se, retira do contratante mais fraco economicamente a possibilidade de definir o conteúdo do contrato. Elimina-se a negociação, esvaziando-se o sentido até mesmo da autonomia da vontade, mormente quando se trata de produto essencial ao consumidor, caso em que este não tem sequer a possibilidade de deixar de contratar. Desta forma, a igualdade formal e a liberdade contratual pressupostas no liberalismo passam a ser gravemente questionadas, eis que os indivíduos formadores da massa não têm poder para, individualmente, opor-se às grandes empresas fornecedoras dos produtos necessitados [16]. Passa a ser meramente retórico o discurso liberal de que todos são iguais e têm a mesma força econômica para chegarem a um contrato materialmente justo [17].

Acresça-se a toda esta transformação o resultado trazido pelas crises do início do século XX ao regime contratual clássico. Ditas crises colocaram em xeque a visão homogênea e linear do tempo que caracterizava a ordem jurídica liberal e fundamentava um de seus princípios basilares: o da força obrigatória dos contratos, traduzido no brocardo latino pacta sunt servanda. Com as modificações decorrentes das crises sociais e econômicas ficou evidente que o tempo é capaz de romper o equilíbrio originalmente existente em um contrato, forçando uma mitigação deste princípio. Esta relativização vai trincar no âmago da doutrina clássica, sendo decisiva para a construção da atual ordem jurídica.

Marcelo Câmara leciona que:

O poderio político, econômico e comercial das empresas, agigantado pela vulnerabilidade especialmente evidente no caso dos consumidores, sujeitos a contratos padronizados e de adesão freqüentemente desequilibrados, expõe o descompasso no qual se inserem os princípios contratuais clássicos perante a realidade da vida negocial e sugerem a atuação estatal [18].

Diante deste quadro, viu-se superada a ideologia liberal que se alicerçava na igualdade formal e na autonomia da vontade. As mudanças sociais que encontraram curso com a evolução do capitalismo industrial logo passaram a reclamar tratamento diferenciado para algumas categorias de relações econômicas, notadamente as de trabalho e as de consumo.

A resposta a estes reclamos culminou na substituição do Estado Liberal pelo chamado Estado de bem estar social (welfare state), ou simplesmente Estado Social, também capitalista, porém atento à necessidade de regulação estatal da economia.

1.3.– Os Contratos e o Direito no Estado Social

Consignou-se alhures que as transformações sociais e econômicas do início do século XX evidenciaram o desgaste da ordem jurídica clássica. A noção de Estado e de Direito não se amoldava mais à realidade de então.

Com a concentração capitalista, percebeu-se que, ausente a intervenção do Estado, as relações sociais e econômicas seriam sempre desequilibradas, pendendo para o lado economicamente mais forte e contribuindo para o aumento gradativo da distância econômica separativa das partes. Esta constatação resultou na decadência do voluntarismo clássico no Direito Privado e levou à relativização dos seus conceitos [19]: abandona-se a ideia de que o Estado não deve intervir em mencionadas relações sob pena de desequilibrá-las, e passa-se a adotar uma postura crescentemente legislativa e interventora.

O Estado Social, por definição,

"é crescentemente legislador e ocupa-se da ordenação da economia e da sociedade, não se entretendo apenas com as miúdas tarefas que cabiam ao Estado Liberal, mas atuando em um processo de configuração social e afastando a doutrina de que questões sociais resolvem-se por si mesmas a partir do próprio jogo de forças sociais em nome da liberdade" [20].

O ideário liberal de que todos são iguais e que, portanto, a liberdade deve imperar para que as relações sejam naturalmente equilibradas é definitivamente largado diante da flagrante constatação de desigualdade material entre os indivíduos. Estrutura-se, a partir de então, um direito das desigualdades, que procede a discriminações (positivas ou negativas) de certos grupos a fim de atingir um equilíbrio concreto [21].

A ideia de igualdade substancial torna-se o eixo central do Estado, no lugar antes reservado à liberdade. Com efeito, o objetivo primordial da nova ordem jurídica é a busca de uma igualdade material cada vez mais presente no plano social, o que vem sendo feito através da "estruturação de regimes jurídicos particulares, especialmente protetivos, a fim de se defender todo aquele que pudesse ser vítima de abusos pela vulnerabilidade que o caracterize na vida concreta" [22].

No Direito dos Contratos, em face da nova realidade, verifica-se, à semelhança do que ocorre com o Direito das Obrigações [23], a "socialização" da teoria contratual, traduzida na sua adaptação à nova realidade e na nova função que o contrato vai assumir: a realização da justiça contratual, da boa-fé e da segurança nas relações contratuais [24].

Efetivamente, a vontade deixa de ser o elemento nuclear dos contratos, "surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social" [25].

Em consequência, ganham espaço os princípios da boa-fé e da justiça ou equilíbrio contratual, que irão atuar juntamente – e com a mesma força normativa – ao princípio da autonomia privada, equilibrando-o e limitando-o [26]. Tais princípios são elevados a pilares do Direito Contratual atual, resultando em um conjunto principiológico em que os elementos que o compõem (autonomia privada, boa-fé e justiça contratual) funcionam como vetores atuantes em direções e sentidos diversos que se equilibram e limitam respectivamente [27].

No novo conceito de contrato, a equidade, a justiça veio ocupar o centro de gravidade, em substituição ao mero jogo de forças volitivas e individualistas, que, na sociedade de consumo, comprovadamete só leva ao predomínio da vontade do mais forte sobre a do vulnerável. É o que o Projeto de Código Civil denomina de "função social do contrato", novo limite ao exercício da autonomia da vontade [28].

A função social do contrato, assim, atua como limite da liberdade individual que embasa o princípio da autonomia privada, servindo, no Estado Social, como instrumento do interesse geral, "basilar para o movimento de riquezas e para a realização dos legítimos interesses dos indivíduos" [29][30].

Resultantes concretas do ideário social, fundado em um direito das desigualdades, são as ingerências legislativas atuantes no sentido da edição de "normas voltadas a beneficiar certas categorias de contratantes, alicerçando uma igualdade material que não existiria de um modo espontâneo no plano dos fatos, dominado justamente pela desigualdade de forças" [31]. A lei, no direito dos contratos, deixa de ter um papel meramente supletivo ou interpretativo e passa a atuar na proteção de determinados interesses sociais, como instrumento limitador da vontade, em busca do equilíbrio contratual [32].

Tal é o que passa a ocorrer também com relação aos consumidores: o advento do Estado Social "molda um regime de proteção e afasta um regime de indiferença, calcado em um dado normativo sem ressonância na realidade social – a igualdade de todos – como se dava no Estado Liberal" [33]. Partindo do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, procura melhorar as condições de contratação deste, impondo aos empresários certos deveres de conduta e reforçando a sua responsabilidade pelos riscos resultantes de sua atividade, assim reduzindo os desequilíbrios contratuais.

Visto isso, mister que se esmiúcem os princípios informadores da nova ordem jurídica contratual.

1.4.– Concepção moderna do Direito Contratual: princípios

Como se viu, as transformações que resultaram na substituição do Estado Liberal pelo Estado Social forçaram a revisão dos postulados principiológicos que estruturavam a ordem jurídica clássica. Tal revisão culminou na relativização do princípio da autonomia privada, até então soberano, e na ascensão dos princípios da boa-fé e da justiça, ou equilíbrio contratual, a pilares do Direito Contratual moderno.

Atualmente, estes três princípios constituem a base reguladora das relações de consumo. Atuam em conjunto e com a mesma força normativa, como vetores, em direções e sentidos diversos (e mesmo contrários), que se auto-limitam e equilibram numa relação de constante tensão, formando o que se chama de ordem jurídica contratual, no dizer de Fernando Noronha, a pessoa que primeiro analisou os contratos sob este prisma, sistematizando os três princípios [34].

1.4.1.– Autonomia privada

O princípio da autonomia privada é a faceta moderna da autonomia da vontade, imperante na era liberal. Resulta da revisão do Estado, que de liberal passa a ser social, e apresenta-se – refletindo o Estado em que se insere – mais limitado do que a autonomia da vontade, no que se refere à liberdade.

Como visto, o princípio da autonomia da vontade é a expressão jurídica máxima do individualismo e do voluntarismo liberais em sede contratual, porque reflete e concretiza os ideais filosóficos, políticos e econômicos do período e confere à vontade humana a propriedade de tornar-se lei para si própria: o homem obriga-se porque quer [35]. Significa basicamente que o homem é livre para contratar, deixar de contratar e, sobretudo, definir o conteúdo do contrato.

Consoante este princípio, para que o contrato seja concluído validamente basta o consenso das partes e, uma vez assim concluído, não pode mais ser revisto nem pelas autoridades legislativa e judiciária, mas apenas por uma nova e válida manifestação de vontade. É dizer, por um novo contrato [36]. A conclusão do contrato pela manifestação válida da vontade e a impossibilidade de sua revisão são, respectivamente, os reflexos imediatos de dois sub-princípios decorrentes da autonomia da vontade: o consensualismo e a força obrigatória dos contratos.

Há, além destes, outros dois sub-princípios advindos da autonomia da vontade que não se pode deixar de mencionar, que são a liberdade contratual e o efeito relativo dos contratos. O primeiro significa a liberdade propriamente dita de contratar, deixar de contratar e definir o conteúdo do contrato; o segundo reza que o contrato vincula tão-somente as partes que o firmaram, sem atingir a terceiros que não manifestaram a sua vontade.

Diante deste plexo principiológico, a eventual hipossuficiência econômica de um dos contratantes, isto é, a desigualdade material, obrigava-se a "ceder à ficção – devidamente elevada a dogma filosófico, político e econômico - segundo a qual os contratantes conscientes e capazes são hábeis para a defesa de seus próprios interesses" [37].

A supremacia do princípio da autonomia da vontade era tal que somente excepcionalmente poderia ser limitado, e ainda assim, sua limitação teria a função justamente de proteger a vontade dos indivíduos. Tais limites eram exercidos pela chamada ordem pública e pelos bons costumes [38]. Ordem pública, na conformidade do que se lê na lição de Enzo Roppo, é o complexo de princípios e valores que informam a organização política e econômica da sociedade em determinado estágio de sua evolução histórica [39]. Já os bons costumes constituem-se em regras morais, que controlam e contêm a liberdade de contratar.

Na atualidade, ante a ascensão de novos valores sociais que a relativizaram, a autonomia da vontade ganha contornos mais suaves e passa a ser mais usualmente chamada de autonomia privada.

A autonomia privada mantém os traços fundamentais que caracterizam a autonomia da vontade, distinguindo-se desta pelo fato de que a sua limitação é feita não mais pela ordem pública e pelos bons costumes, mas por outros princípios que tomaram lugar de destaque na ordem jurídica atual: a boa-fé e a justiça contratual.

Com efeito, quando se fala em autonomia privada quer-se falar – assim como ocorria com a autonomia da vontade - em auto-regulação dos interesses privados, na liberdade de efetuar um contrato, deixar de efetuá-lo e definir o seu respectivo conteúdo. Todavia, no estágio atual, a liberdade individual de buscar seus interesses da forma que melhor lhe aprouver encontra óbice naqueles dois princípios suso aludidos, e não mais na ordem pública e nos bons costumes.

A autonomia privada, a justiça ou equilíbrio contratual e a boa-fé formam o que Fernando Noronha chama de ordem pública contratual. Compõem um sistema de princípios que vivem em constante tensão e frágil equilíbrio, e que, limitando-se de modo recíproco, vão submeter igualmente os contratos [40].

Neste plexo principiológico, a autonomia privada é concebida como o espaço no qual atuam com liberdade os particulares, por permissão do ordenamento jurídico, para que possam estabelecer, com o escopo de satisfazerem seus próprios interesses, relações jurídicas com variadas funções econômico-sociais. É em virtude da autonomia privada que tais relações são reguladas do modo que melhor aprouver às partes [41].

Vicente Ráo define-a como "o poder de auto-regulamentação ou autodisciplina dos interesses próprios, que se realiza no âmbito das limitações ditadas pela equação do bem individual com o bem comum" [42].

Hoje, portanto, a autonomia privada é em sua essência espaço para a auto-regulação de interesses privados atuante nos limites circunscritos pelo Direito Positivo que — como reflexo da sociedade na qual se insere e, por conseguinte, do Estado Social — busca, assim como este, alcançar a igualdade material (fazendo-o por meio da equalização das partes, ou seja, pelo tratamento desigual de partes materialmente desiguais).

1.4.2.– Boa-fé

Embora o princípio da boa-fé tenha expressa consagração legislativa pelo menos desde o Código Napoleônico (no Direito ele existiu sempre), seu papel no Estado Liberal era de reduzida importância: limitava-se a exercer função meramente hermenêutica, de caráter complementar à autonomia da vontade. Foi somente com o advento do Estado Social que ganhou relevo e foi colocado como princípio fundamental do Direito Contratual. Efetivamente, na atualidade, o princípio da boa-fé (objetiva, como se verá) é um dos componentes da chamada ordem pública contratual. Diferentemente do que ocorria no período clássico, tem tanta importância quanto o próprio princípio da autonomia privada, na medida em que o limita e lhe dá sentido.

De início, importa ressaltar a distinção entre duas acepções possíveis que se pode dar à boa-fé. Uma delas, que se diz boa-fé estado ou subjetiva, significa um estado de ignorância a respeito de uma situação jurídica na qual alguém se encontra, imaginando-se titular de um direito que na realidade não existe, ou existe apenas na aparência. A outra — boa-fé princípio ou objetiva — que é a que importa a este estudo, consiste no dever de agir de um modo socialmente reconhecido de lealdade, lisura, fidelidade e cuidado com a outra parte em determinada situação jurídica.

Ambas as acepções são contidas pelo princípio geral do direito também denominado boa-fé, que se impõe na medida em que as relações sociais não seriam possíveis sem um mínimo de confiança. Em ambos os casos, ao impor o dever de agir consoante padrões mínimos de conduta socialmente recomendados para que as expectativas legítimas das pessoas não fiquem frustradas, o que se tutela é a segurança jurídica [43].

O princípio da boa-fé objetiva encerra o dever das partes de agirem de acordo com um patamar geral de atuação exigível de um modelo abstrato de pessoa, razoavelmente diligente, que se reporta à noção de bom pai de família. Significa a atitude de fidelidade e lealdade no cumprimento da expectativa alheia que se pode esperar das relações entre homens honrados [44].

Como testifica Fernando Noronha, o princípio da boa-fé objetiva "consiste no dever de cada parte agir de acordo com os padrões mínimos socialmente reconhecidos de lealdade, correção e lisura, em cooperação com a contraparte, para que não sejam frustradas as expectativas desta que sejam legítimas" [45][46].

Importa frisar que quando se fala em "agir", quer-se dizer que a boa-fé – ao impor um standard ético-jurídico de conduta — não se restringe a uma atitude passiva, a um não facere, traduzido simplesmente em atos omissivos aptos a não prejudicar. Antes pressupõe uma linha de conduta positiva, conducente a um fazer cooperador, capaz de favorecer os interesses da contraparte, guardados, logicamente, certos limites [47]. Tal é o que se dessome das novas funções que a mais abalizada doutrina vem atribuindo à boa-fé e que serão tratadas adiante.

Cláudia Lima Marques recorda que a imposição pela nova ordem jurídica contratual do princípio da boa-fé objetiva resultou na modificação no modo de visualizar-se a relação contratual. Se antes esta era vista estaticamente, com a entronização do princípio em comento, passou-se a visualizá-la como uma relação jurídica dinâmica e complexa, que nasce, vive e morre, vinculando as partes durante certo tempo, que não necessariamente corresponde ao tempo exato do adimplemento das prestações que deram causa ao contrato [48].

Com efeito, a boa-fé objetiva introduz nas relações contratuais deveres de conduta que caminham ao lado do dever de prestar o objeto que deu causa ao contrato — formando, amalgamados, o que se vem chamando de relação contratual complexa [49] — e que fazem com que a boa-fé constitua-se em norma regente das várias fases da relação entabulada entre as partes, possibilitando, inclusive, a sobrevivência da relação contratual após o adimplemento da prestação principal.

Os deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva são referidos pelos doutrinadores em geral como deveres anexos, laterais ou ainda fiduciários. Consistem, na ensinança de Fernando Noronha, em "procedimentos que é legítimo esperar por parte de quem, no âmbito de um específico relacionamento obrigacional, age de acordo com os padrões de correção, lisura e lealdade, que caracterizam o princípio da boa-fé. No fundo, traduzem-se em deveres de cooperação com a contraparte" [50]. São distintos dos chamados deveres secundários (dirigidos à realização de determinadas prestações diversas da principal) porque estes respeitam a obrigações específicas e pré-determináveis, ao passo que aqueles são deveres meramente genéricos, prima facie indefinidos, isto é, que não impõem uma conduta abstrata cujo conteúdo seja preestabelecido [51].

A introdução destes deveres na ordem jurídica contratual coloca a boa-fé como limitadora do princípio da autonomia privada, na medida em que, ao impor a observância de determinadas condutas anexas à prestação nuclear do negócio jurídico que independe da vontade contratante, restringe o campo de atuação desta, que é livre para atuar, desde que cumprindo os encargos impostos pela boa-fé objetiva.

Cumpre, finalmente, destacar as três funções que a boa-fé exerce no Direito Contratual moderno: a interpretativa, a de integração e a de controle.

Segundo a sua função interpretativa, a boa-fé deve nortear a exegese dos negócios jurídicos, buscando o seu sentido objetivo, aparente, ou, quando este suscite dúvidas, o sentido que a boa-fé aponte como mais razoável. Aponta-se como o mais razoável o sentido que assegure a preservação do contrato (princípio da conservação do contrato), que seja mais favorável àquele que assume obrigações e que seja menos favorável à parte que o redigiu. Com fulcro na boa-fé, devem-se averiguar as finalidades que sejam objetivamente dedutíveis da declaração. Esta deverá ser entendida no sentido real, que lhe era atribuído pelo declarante quando o destinatário o conhecesse. Caso este não o conhecesse, a declaração deve ser entendida em seu sentido literal [52].

A função de integração exercida pelo princípio da boa-fé objetiva traduz-se na explicitação daqueles deveres de conduta já mencionados, impostos às partes no contrato. Reconhecer à boa-fé a função integrativa significa reconhecer o caráter complexo das obrigações, elevando-a a fonte autônoma de direitos e deveres, independentemente daqueles oriundos da vontade das partes [53]. Com efeito, os deveres – ditos fiduciários – que têm sua gênese na boa-fé, não obstante a sua generalidade e indefinição, não são de natureza meramente moral ou social. São, como bem acentua Fernando Noronha, "verdadeiros deveres jurídicos, mesmo que eles não sejam determináveis em grau suficiente para poderem caracterizar prestações autonomamente exigíveis" [54].

Por último, é de destacar-se a função de controle da boa-fé objetiva. Através do exercício desta função é que a boa-fé será capaz de controlar o conteúdo dos contratos, limitando o abuso de posições contratuais. A faceta controladora do princípio da boa-fé objetiva veda que "ao longo do desenvolvimento da relação contratual e mesmo antes de iniciada e após encerrada, o proceder das partes seja informado por padrões estranhos àqueles propostos (...) pela própria tutela da confiança" [55].

Neste passo, se a boa-fé com função de integração — ao impor deveres fiduciários aos contratantes — é capaz de limitar a autonomia privada, é primordialmente através de sua função de controle que exercerá a limitação da liberdade negocial e do exercício do direito que traduzem aquele princípio, e que podem, se irregularmente utilizados, invadir e lesar a esfera jurídica alheia. É que a noção de boa-fé com função de controle está intimamente ligada à ideia de abuso de direito: enquanto este revela-se no exercício do direito que ultrapassa o seu modo normal de uso, inobservando a função para a qual foi criado [56], aquela presta-se exatamente para impor ao exercício do direito os limites da finalidade que ensejaram a sua gênese. No abuso de direito tem-se, portanto, "uma violação do dever de agir conforme à boa-fé" [57]. Assim, a boa-fé interdita o abuso de direito, constituindo-se em verdadeira barreira ao uso imoderado da autonomia da vontade.

1.4.3.– Justiça contratual

A elevação do princípio da justiça contratual é reflexo da ideia de igualdade material que passa a reger o Estado Social. Seu conceito se reporta à concepção aristotélica de justiça comutativa, segundo a qual deve se buscar uma situação de equivalência nas relações de troca, de maneira que cada parte receba algo à altura daquilo que ofereceu.

Com efeito, "o princípio da justiça contratual traduz a idéia de razoável equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes, nos contratos comutativos" [58]. Importa na preocupação com o próprio conteúdo dos contratos, com os possíveis desequilíbrios concretos que estes possam guardar, medidos a partir de um critério ao mesmo tempo objetivo e substancial [59].

É exatamente por buscar um equilíbrio material que o princípio distingue-se da noção de justiça contratual prevalente no período clássico. Sob a égide do liberalismo, a justiça contratual decorria do simples fato de as partes (iguais e capazes) terem livremente negociado, ainda que existentes, no plano fático, desigualdades reais. O conteúdo dos contratos era indiferente à ideia de justiça contratual daquele período histórico, pois cada indivíduo operava como melhor defensor do próprio interesse. Tutelava-se o equilíbrio meramente formal dos contratantes. A justiça, assim, era presumida a partir do fato de as partes terem tido igualdade de oportunidades no momento da formação do contrato: o contrato livremente querido pelas partes seria considerado justo.

A acepção social de justiça contratual, atenta para o fato de que a liberdade negocial traduz-se no mais das vezes em desequilíbrios objetivos do contrato, ocupa-se do efetivo contrabalanço entre prestação e contraprestação. Não se contenta com a simples asseguração às partes da igualdade no processo de contratação, é dizer, com a justiça formal encontradiça na época liberal. Busca, antes, uma paridade entre os benefícios que a parte recebe e os sacrifícios que assume.

Como se nota, a justiça contratual é fundamentalmente uma modalidade de justiça comutativa, correspondendo à idéia de equilíbrio entre direitos e obrigações que recaem sobre os ombros dos que firmaram os contratos. Repare-se que tal justiça contratual deve ser concebida de um modo substancial, ou material, é dizer, suficiente para assegurar, nos contratos de intercâmbio de bens e serviços, um efetivo equilíbrio entre os direitos e as obrigações das partes, recebendo cada qual benefícios que correspondam adequadamente aos sacrifícios que venham a assumir [60].

Fernando Noronha anota que a justiça contratual pode ser encarada sob um prisma subjetivo ou objetivo. Sob o primeiro enfoque tem-se a avaliação das partes contratantes acerca da correspondência entre os encargos que assumem e os benefícios que esperam obter em função do contrato. De outro lado, sob prisma objetivo, a justiça contratual revela-se no fato de cada parte obter benefícios que adequadamente contrabalancem os encargos que passa a titularizar. Tendo em conta o fato de que apenas o interesse geral justifica a intervenção do ordenamento jurídico nas consequências sócio-econômicas ligadas ao contrato, somente o enfoque objetivo é que pode ser utilizado na apuração da justiça contratual, sendo irrelevante a convicção íntima das partes acerca da justiça ou injustiça do negócio que entabularam. Nesta ordem de ideias, fala-se em justiça substancial objetiva [61].

Ressalte-se que o equilíbrio que se deve ter em mente não é absoluto (mesmo porque este dificilmente se atinge). O que este pretende garantir é uma relação de significativa paridade, sem desproporção manifesta. Somente haverá ofensa ao princípio da justiça contratual quando a situação resultante do acordo de vontades for manifestamente, gritantemente desequilibrada.

Posta a questão nestes termos, resta esclarecer quando o desequilíbrio é ou não manifesto, ou seja, quando há afronta à justiça contratual. Para o jurista há pouco mencionado, levando em conta que em geral são as próprias partes os melhores juízes de seus interesses, deve-se partir da distinção entre justiça formal e material, presumindo-se esta a partir daquela. É dizer, se o contrato foi celebrado em condições de justiça formal, presume-se haver justiça material [62].

Ocorre que nos contratos de consumo da atualidade, normalmente padronizados e de adesão, dada a ausência de negociação, as condições de justiça formal não se realizam. Não por coincidência, é nestes que mais se verifica a ofensa dos princípios da justiça contratual e da boa-fé, que se opera por meio das cláusulas abusivas a seguir tratadas.

Recorde-se, finalmente, que se o princípio da justiça contratual autoriza a intervenção do ordenamento jurídico no conteúdo dos contratos, não é ele o único que os rege. Às partes é assegurada também a liberdade de entabularem seus negócios, traduzida no princípio da autonomia privada. Assim, se são livres para contratar, há de assegurar-se a estabilidade do contrato, não podendo a intervenção do princípio da justiça contratual pôr em risco aqueloutro princípio. Há que se buscar um razoável ponto de equilíbrio entre os princípios, a fim de que nenhum reste descaracterizado por outro [63].

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Sobre a autora
Bruna Bonfante

Servidora pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFANTE, Bruna. O controle das cláusulas abusivas nos contratos padronizados e de adesão por meio de tutelas preventivas e coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2213, 23 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13208. Acesso em: 25 abr. 2024.

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