Artigo Destaque dos editores

O controle das cláusulas abusivas nos contratos padronizados e de adesão por meio de tutelas preventivas e coletivas

Exibindo página 3 de 4
23/07/2009 às 00:00
Leia nesta página:

CAPÍTULO 3

O presente capítulo tem por objeto o estudo dos meios processuais e procedimentais hábeis ao efetivo controle das estipulações abusivas nos contratos de consumo padronizados e de adesão. Pretende-se demonstrar que, consistindo a proteção contra as cláusulas abusivas uma garantia básica do consumidor (art. 6º, IV, CDC), o Direito deve dispor de instrumentos que promovam a sua tutela efetiva, notadamente de forma a prevenir a sua violação. Buscar-se-á revelar a importância da solução coletiva de conflitos, haja vista ser esta a natureza das lides na sociedade massificada, ainda que quanto a estas demandas, típicas do Estado Social contemporâneo, se verifique o descompasso do direito processual clássico, estruturado sob uma perspectiva liberal e individualista.

Para tanto, será feita a análise, em um primeiro momento, da importância de uma atuação preventiva e coletiva do Direito, na medida em que se verificam conflitos de massa, em que uma atuação sucessiva, é dizer, reparatória, sobre os direitos violados é muitas vezes incapaz de promover uma garantia completa e efetiva de tais direitos. Em seguida serão tratadas duas formas de tutela aptas a prevenir o dano aos consumidores — a tutela inibitória e a tutela de remoção do ilícito — para depois se estudarem as técnicas processuais adequadas à sua concretização. Finalmente, far-se-á uma breve explanação acerca da ação civil pública, por se entender que é o meio mais efetivo na concretização da tutela preventiva e coletiva do consumidor contra as estipulações abusivas.

3.1 – Importância da prevenção coletiva contra as cláusulas abusivas

Como muitos grandes acontecimentos da sociedade contemporânea, as cláusulas abusivas são um fenômeno de massa. Como tal, possuem um potencial lesivo que transcende a esfera individual do consumidor, atingindo a toda a sociedade, coletivamente considerada. Este potencial lesivo, como restou claro de tudo o que foi até aqui exposto, é capaz de ferir de morte direitos básicos do consumidor constitucionalmente garantidos. Portanto, é imperioso que o Direito disponha de instrumentos capazes para evitá-lo ou ao menos para neutralizá-lo, tutelando assim, ditos direitos.

A tutela devida pela ordem jurídica, no entanto, em razão das peculiaridades que estes direitos apresentam, há de ser diversa daquela a que se está habituado e que é oferecida pela disciplina processual tradicional, pois os danos que as cláusulas abusivas podem acarretar não são necessariamente de ordem patrimonial (embora o sejam na maioria das vezes) e nem tampouco têm seu alcance restrito a esferas individuais. Se a simples vulneração do princípio da boa-fé, por exemplo, é capaz de configurar uma estipulação abusiva, não obstante ser comum que esta vulneração deságue em um desequilíbrio econômico, o bem jurídico que será primeira e principalmente afetado é a confiança do consumidor, e não o seu patrimônio. De outro lado, mesmo nos casos em que o que se vulnera é o princípio da justiça contratual, por estabelecerem-se obrigações desproporcionais, é custoso saber onde encontra-se o ‘justo’, e logo, quantificar pecuniariamente o prejuízo do consumidor.

Ademais, na sociedade massificada, a vulneração dos direitos é marcada pela pulverização de vítimas [124], de modo que os conflitos adquirem um perfil igualmente massificado. Torna-se, pois, recomendável a adoção de uma forma de tutela que os abranja conjunta e uniformemente, respondendo à altura ao fenômeno de massa que constituem as cláusulas abusivas.

A nova e complexa realidade, nota-se, evidencia o desgaste do modelo processual brasileiro atual, estruturado sob arraigada influência das ideologias liberais e individualistas do século XIX, e força a sua remodelação de modo a abarcar a realidade emergente de conflitos coletivos, para efetivamente tutelar a garantia constitucional de defesa do consumidor (art. 5° , inciso XXXII).

Como se sabe, o ordenamento clássico baseava-se em uma perspectiva repressiva-ressarcitória, atuante apenas após a verificação efetiva do dano. Isto se dava por conta do ideal de intervenção mínima do Estado Liberal, que visava — como foi estudado — garantir os cidadãos contra arbitrariedades estatais, redundando na consagração incondicional dos valores segurança jurídica, liberdade individual e patrimonialidade dos direitos [125].

Quer dizer, em nome da segurança jurídica (das liberdades clássicas), admitia-se, no liberalismo, a atuação estatal apenas e tão-somente após certificada e quantificada inequivocamente a lesão na esfera jurídica de alguém. Ainda assim, dita atuação somente poderia ser procedida após o descumprimento do devedor, em processo totalmente apartado daquele que reconheceu sua responsabilidade (cognição/execução). Não se concebia uma intervenção do Estado prévia à ocorrência de dano, visto que simples ameaça a direito não a autorizava: nenhuma intervenção era possível antes de condenado definitivamente o devedor [126].

Acreditava-se, ainda, que todos os direitos se podiam traduzir em pecúnia [127], ou seja, todos os direitos que fossem violados poderiam ser devidamente recompostos mediante indenização em dinheiro, e que — à vista da individualidade reconhecida aos direitos, ditos subjetivos — somente o seu titular é que poderia defendê-los em juízo [128].

Fácil notar-se que com o advento do Estado Social estes valores passaram a não corresponder mais à realidade, em virtude do reconhecimento de novos direitos não individuais e não patrimoniais aos cidadãos. Ora, se um determinado direito não é de titularidade exclusiva de um indivíduo e, portanto, pertence a uma generalidade de pessoas, quando não a todos, a regra de que apenas o seu titular pode defendê-lo em juízo torna-se insuficiente. Outrossim, tratando-se de direitos não patrimoniais, a tutela ressarcitória dificilmente será capaz de assegurá-los em sua inteireza.

Trazendo o raciocínio ao âmbito do direito do consumidor, esta mudança se faz sentir quando se pensa em direitos difusos relativos à tutela da confiança do consumidor, por exemplo. Considere-se, verbi gratia, uma propaganda enganosa dirigida a toda sociedade: o engano contido na mensagem publicitária fere o direito de o consumidor não ser lesado em sua confiança e ao mesmo tempo atinge um incontável número de consumidores potenciais, revelando o massivo alcance da conduta abusiva, cujo conteúdo, de início, não é patrimonial. Esta situação, note-se, exigirá uma tutela com contornos diversos daquela deferida às ofensas a direitos individuais de cunho patrimonial.

Por isso, o amadurecimento do Estado Social, reconhecendo a realidade complexa em que está inserido, assim como os novos direitos daí decorrentes, cuidou de proceder à remodelação reclamada pela nova ordem, reestruturando o ordenamento processual de modo a prestar efetiva tutela à garantia constitucional de defesa do consumidor (art. 5° , inciso XXXII). Para tanto, valeu-se da edição de normas como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública, além, é claro, das garantias expressas na Constituição Federal de 1988, que, juntas, possibilitam o desejado tratamento coletivo e preventivo das conflituosidades contemporâneas.

No Estado Social, tem-se em conta a impossibilidade de tradução pecuniária e a ineficiência do tratamento individualizado de certos direitos, privilegiando-se um enfoque preventivo e coletivo do processo. Com efeito, viu-se que os novos direitos reconhecidos aos cidadãos, dentre os quais se inserem a defesa do consumidor e, por conseguinte, o direito de este não ser lesado por estipulações abusivas, não se amoldam ao perfil ressarcitório do processo civil clássico.

O devido acesso à Justiça garantido no art. 5° , XXXV, da Constituição Federal, adquire, no Estado Social, uma conotação material, diversa da garantia meramente formal a ele reservada no Estado Liberal. Isto implica no dever de o Estado garantir efetivamente o direito material por si declarado, indo além da mera garantia do direito de ação. Quer dizer, mais que garantir ao cidadão o direito de recorrer ao Estado-Juiz no caso de violação ou ameaça a seu direito, cumpre a este efetivamente tutelar aquele direito, garantindo que não seja violado ou que ao menos a violação seja minimamente sentida. Isto porque o próprio Estado, ao coibir a justiça de mão própria, reservando para si o monopólio da coerção, compromete-se (e é obrigado) a proteger de maneira efetiva os direitos que assegura, sob pena de perder o fundamento que legitima o seu poder jurisdicional. Para tanto, reitere-se, não basta que simplesmente declare o direito material dos cidadãos, garantindo-lhes o recurso ao Judiciário. O Estado deve estar dotado de mecanismos processuais de tal modo eficientes que, segundo a máxima chiovendiana, assegurem a quem tem direito tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito [129]. Trata-se da noção hoje tão em voga da efetividade processual, que encontra especial relevo no que concerne aos direitos do consumidor contra as estipulações abusivas [130]. Pode-se afirmar, na companhia de Marcelo Câmara, que

"quem recorre à Justiça deve ordinariamente alcançar o que lhe foi prometido pela ordem jurídica. O optimum processual radica na mais extensa coincidência possível entre o resultado prático decorrente do processo e a previsão abstrata da legislação a respeito do que haveria de ocorrer acaso as normas jurídicas fossem espontaneamente observadas" [131].

Bem de ver-se, repise-se, que o processo civil clássico, de cunho repressivo-ressarcitório, é inábil à tutela dos novos direitos, notadamente em virtude da intraduzibilidade pecuniária dos bens a que estes se referem [132]. É que, mesmo nos casos em que o direito violado possa ser plenamente reparado, só a demora entre a propositura da ação que vise dita reparação e o efetivo término de sua execução já afeta o titular do direito buscado, na medida em que poderia estar usufruindo deste direito acaso não houvesse a sua violação [133].

Daí ser inegável que a estruturação de um instrumental normativo que atue coletiva e preventivamente é muito mais apropriada para alcançar a tão visada efetividade do processo em uma sociedade que é marcada por conflituosidades coletivas sobre direitos não patrimoniais. Afinal, "o modo mais seguro e efetivo de se fazer valer o direito material é defendê-lo de um modo preventivo" [134] e, tratando-se de direitos afetados de forma massiva, também de modo coletivo. Na abalizada lição de Kazuo Watanabe,

"a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, evitará a sua banalização que decorre de sua fragmentação e conferirá peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos" [135].

Outrossim, a solução coletiva dos conflitos contemporâneos tem a vantagem de racionalizar o uso da justiça, na medida em que evita o ajuizamento de um incontável número de demandas idênticas e a consequente e inconveniente divergência de decisões que elas podem acarretar. Some-se a isto o maior reflexo pedagógico que uma demanda molécula é capaz de ofertar ao causador do conflito [136] e a valorização das normas de direito material que ela concretiza ao considerar as lesões que, no processo civil clássico, é dizer, individualmente, não seriam consideradas em razão de sua pequena monta [137].

Já a solução preventiva dos conflitos de massa que envolvem consumidores evita a violação dos direitos materiais, garantindo o fim visado pela noção de efetividade processual, que determina a asseguração destes como se as normas que os garantissem tivessem sido espontaneamente observadas.

O trato repressivo das cláusulas abusivas, ao contrário, permite que o seu potencial lesivo aflore e prejudique o consumidor. Tem-se em vista apenas a garantia da integridade patrimonial dos direitos [138], desconsiderando as demais facetas não patrimoniais que, na realidade complexa de hoje, eles podem apresentar. De outro lado, a orientação repressiva-ressarcitória, aliada à tutela individual, desencoraja o consumidor de buscar o Poder Judiciário, eis que no mais das vezes o dano individualmente considerado será de pouca monta e a solução do conflito demasiadamente demorada. Ao fornecedor é compensatória tal forma de tutela, uma vez que, dos milhares de atingidos pelas estipulações abusivas, apenas uma parca minoria insiste em perseguir a tutela de seus direitos, não lhe causando maiores preocupações.

O ordenamento brasileiro, atento à tendência, é expresso em consagrar a preferência pela prevenção coletiva das cláusulas abusivas [139]. Já no capítulo constitucional que elenca os direitos fundamentais, tem-se garantido o acesso à justiça mesmo para caso de simples ameaça a direito. Com efeito, dispõe o inciso XXXV do artigo 5° da Carta Magna: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Também o Código de Defesa do Consumidor determina nos seus artigos 4° , inciso VI e 6° , inciso VI, que se atue preventivamente na defesa dos interesses consumeristas. O primeiro dispositivo, ao referir-se à coibição eficiente dos abusos praticados no mercado de consumo, está a traduzir a noção recém-referida de preventividade, pois coibir eficientemente abusos implica em afastá-los preventivamente. Já o segundo, expressamente coloca a prevenção efetiva de danos como direito básico do contratante débil. Assim, inegável, não é só sob o ponto de vista doutrinário que se observa a superação do sistema processual clássico [140] e a importância de um enfoque preventivo e coletivo do processo.

O ideal de prevenção coletiva de danos, aliás, é reflexo direto do próprio Estado Social, pois somente neste se admite um intervencionismo estatal nas relações contratuais que seja capaz de desconsiderar a vontade, elemento outrora essencial a estas, e de mitigar o valor segurança jurídica que antes embasava o processo. Enfim, a orientação preventiva e coletiva propicia aquilo que o processo, na qualidade de instrumento, deve ser capaz de ofertar: uma resposta adequada a problemas emergentes da sociedade moderna [141].

3.2 – Dano e ilícito: distinção

A ideia de prevenção no processo civil implica a necessidade de se adotar uma acepção de ato ilícito diversa da tradicional, estruturada essencialmente sobre a noção de culpa e voltada a uma perspectiva eminentemente reparatória.

Por muito tempo, em matéria de responsabilidade civil, a doutrina civilista preocupou-se apenas com a noção subjetiva de ilícito, considerada no artigo 186 do Código Civil de 2002 (e no artigo 159 do código de 1916), e com a sua efetiva penetração na esfera jurídica alheia como ato causador de um dano [142]. Tal fato se deve à forte influência do ideário liberal sob o qual ela se firmou: partia-se da ideia de que o Estado somente poderia intervir nas relações entre os indivíduos em último caso, isto é, na hipótese em que um afetasse a esfera jurídica do outro, causando-lhe prejuízo, a fim de que este prejuízo fosse reparado. Quer dizer, o ilícito somente seria do interesse do Direito quando resultasse em dano passível de reparação. Afora estes casos, evidenciava-se irrelevante.

Esta demasiada importância que se dava ao dano, a qual decorria da ideia liberal de traduzibilidade pecuniária de todos os direitos a que já se aludiu, acabou por relegar o ilícito, puramente considerado, a um papel de somenos relevância, haja vista que "o Direito perderia seu sentido prático se tivesse de ater-se a conceitos puros" [143].

Todavia, conforme já se teve oportunidade de esclarecer, os direitos da contemporaneidade nem sempre são pecuniariamente tradutíveis e nem sempre comportam reparação posterior à sua violação que seja capaz de restituí-los a seu estado anterior. A antiga fórmula de ato ilícito não corresponde mais aos reclamos modernos, pois a tutela dos direitos mencionados não se amolda ao perfil reparatório que este conceito oferece. Afinal, conforme autorizado escólio de Luciane Tessler, "reduzir o ilícito ao dano é desconsiderar sua função assecuratória do ordenamento jurídico" [144].

O Direito Civil, assim, vê-se forçado a revisitar um de seus principais institutos, a fim de que se assegure a tutela efetiva dos direitos que não comportam reparação posterior em pecúnia. Esta revisita é fenômeno recentíssimo e cuida de resgatar o conceito puro (e amplo) de ilícito como ato contrário ao direito, destacando-o da noção de dano. Com efeito, é de extrema importância para a concretização do ideal preventivo que se apartem os conceitos de ilícito e dano, pois nas tutelas preventivas o que se tem em mente é a tutela da norma [145], e apenas indiretamente a prevenção do dano. Isto porque o dano é apenas uma das eventuais consequências do ilícito, e não elemento de sua constituição. O que ocorre, ainda hoje, é que o ilícito costuma ser conceituado em razão de um de seus eventuais resultados. Daí persistirem restrições às tutelas preventivas, que independem da demonstração de dano.

Neste passo, remete-se, de início, para as considerações expendidas acerca das duas concepções possíveis que o termo ‘ilícito’ comporta (item 2.2): em uma acepção ampla, dita objetiva, o ilícito consiste em qualquer ação ou omissão contrária à conduta visada pelas normas jurídicas [146], ou seja, em qualquer ação humana contrária ao Direito; em uma acepção estrita, ou subjetiva, o ilícito liga-se à vulneração de direitos que possa ser subjetivamente reprovável, quer dizer, trata-se de ações ofensivas aos direitos alheios que podem ser imputadas a alguém que tenha agido com culpa ou dolo [147].

A acepção que melhor se amolda à tutela preventiva dos direitos é a ampla [148], pois não é possível pensar-se em culpa nos casos em que o ilícito sequer se verificou, ainda que subsista o perigo de vir a acontecer, o que é suficiente para a ação inibitória. Partindo-se desta concepção, tem-se que o ilícito é figura bem diversa do dano. Este não é elemento constitutivo daquele, mas apenas uma frequente consequência sua. O ilícito trata de comportamento condenado pelo ordenamento jurídico, ao passo que o dano apresenta-se como consequência meramente eventual, e não necessária do ilícito, que vai embasar somente o dever de ressarcir, o qual também não integra o conceito de ilícito [149].

Noutros termos, o dano é alheio à fatispécie do ilícito que, destaque-se uma vez mais, não implica necessariamente em dano. A ilicitude compreende "a reprovação da ação ou omissão do agente no plano marcado pela generalidade e abstração no qual a legislação coloca-se" [150][151].

Na lição de Braga Netto, "a estrutura conceitual do ilícito civil, no direito brasileiro prescinde do dano, satisfazendo-se com a configuração da contrariedade ao direito, que é juízo de valor negativo que o sistema jurídico faz relativamente à determinada ação ou omissão" [152].

Também a demonstração de culpa é irrelevante para a configuração do ilícito, se este for concebido em um sentido lato ou objetivo. É que, projetando-se a tutela preventiva a uma atuação futura, não é possível avaliar-se previamente o elemento subjetivo da conduta que se visa impedir. Mesmo porque a perquirição da culpa só tem relevo na estruturação da tutela ressarcitória, ou seja, quando evidenciado o dano, que, como se viu, não guarda relação necessária com o ilícito.

O dano cuida da objetivização de um prejuízo sofrido, e revela-se importante, já ressaltou-se, apenas como parâmetro de ressarcimento, porquanto a sua extensão consista exatamente na medida da perda sofrida pelos sujeitos lesados [153].

Consoante registra o autorizado magistério de Luiz Guilherme Marinoni:

"Para evidenciar que o dano não é elemento constitutivo do ilícito, argumentou-se que, quando se diz que não há ilícito sem dano, identifica-se o ato contra ius com aquela que é a sua normal conseqüência, e isto ocorreria apenas porque o dano é o sintoma sensível da violação da norma. A confusão entre ilícito e dano seria o reflexo do fato de que o dano é a prova da violação e, ainda, do aspecto de que entre o ato ilícito e o dano subsiste freqüentemente uma contextualidade cronológica que torna difícil a distinção dos fenômenos, ainda que no plano lógico" [154].

Vistas as devidas distinções, é possível compreender-se que pode haver ilícito sem dano (ao menos imediato), de modo que se justifique uma tutela da norma — antes relegada a permanecer desprotegida, visto a ausência de uma forma protetiva que o dispensasse — conducente à remoção do ilícito ou ao impedimento de sua efetivação, repetição ou continuação.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Será explicitado a seguir que esta tutela da norma pode ocorrer antes mesmo de efetivado o ilícito, ou após a sua efetivação na hipótese de ainda persistirem os seus efeitos. No primeiro caso estar-se-á diante da chamada tutela inibitória; no segundo, da tutela de remoção do ilícito.

3.3 – Fundamentos normativos das tutelas inibitória e de remoção do ilícito coletivas

As tutelas preventivas que serão adiante estudadas encontram seu respaldo normativo já na Constituição Federal. Ao depois, acham sustentáculo em normas de direito material e processual que, bem harmonizadas, são capazes de garantir a efetividade do direito do consumidor de não ser lesado por estipulações abusivas.

A Constituição da República, já no título que reserva às garantias e direitos fundamentais, cuida de assegurar, em seu artigo 5° , inciso XXXII, e também adiante, no artigo 170, inciso V, a defesa do consumidor. Estas normas tratam da defesa do consumidor como verdadeiro direito material que, como tal, deve ser efetivamente resguardado pelas normas processuais, sob pena de tornar-se letra morta. O artigo 170, aliás, trata a defesa do consumidor como verdadeiro princípio, que deve atuar no aperfeiçoamento da ordem econômica que está a regular.

A defesa do consumidor, referiu-se em diversas oportunidades no decorrer deste estudo, é efetivada primordialmente pelo combate às cláusulas abusivas, que se constituem no principal instrumento de vulneração de seus direitos exatamente porque implicam na ofensa aos dois princípios essenciais que regem as relações de consumo: o do equilíbrio contratual e o da boa-fé. Se assim o é, infere-se da exegese dos mandamentos constitucionais referidos que ao consumidor é reservado o direito constitucional de não ser lesado por estipulações abusivas.

Na esfera infraconstitucional, o embasamento legal de caráter material encontra-se no Código de Defesa do Consumidor. Já se consignou, no item 3.1, que os artigos 4° , inciso VI, e 6° , inciso VI, do Código ao referirem-se, respectivamente, a ‘coibição eficiente’ e ‘efetiva prevenção’, estabelecem sua flagrante preferência — e isto porque tem em conta as particularidades dos direitos que declara — por tutelas de natureza preventiva. No inciso seguinte deste último artigo, o Código declara o "acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vista à reparação e prevenção de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" um direito básico do consumidor. Quer dizer, tanto o ideal de prevenção quanto o devido acesso aos órgãos que possibilitem a concretização deste ideal, constituem-se direitos básicos do consumidor que, como tais, reitere-se, devem ser efetivamente tutelados por instrumentos processuais hábeis a concretizá-los.

Este mesmo artigo 6° , nos incisos VI e VII, refere-se a direitos e danos coletivos e difusos, o que implica no reconhecimento de que o ideal de prevenção dirige-se não só à tutela de interesses consumeristas individualmente considerados, mas também, e pode-se mesmo dizer principalmente, aos interesses dos consumidores considerados sob uma perspectiva coletiva. É que não se pode deixar de ter em conta o contexto em que se insere a tutela de consumidor — e que faz mesmo parte de sua gênese — que é a sociedade massificada da contemporaneidade. A própria natureza dos direitos dos consumidores não autoriza conclusão diversa: não fora a massividade da afronta aos interesses legítimos de contratantes economicamente débeis que caracterizam a categoria dos consumidores, estes não seriam resguardados da forma como hoje são. É dizer, se hoje se tutela o interesse do consumidor, é porque a sua vulneração foi sentida de maneira massiva. Desta forma, não há sentido em querer-se promover a tutela apenas individual da classe de consumidores.

Com relação às normas de direito processual, a Constituição Federal estabelece no artigo 5° , inciso XXXV, a garantia de que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Ora, teve-se oportunidade de ver alhures (item 3.1) que esta garantia, ao referir-se à ameaça a direito, cuida de legitimar as tutelas preventivas. É que se o direito não foi ainda violado, mas vem sofrendo ameaça de sê-lo, o Poder Judiciário haverá que apreciar dita ameaça e garantir que ela não se concretize. Se a ordem jurídica determina que os direitos por si declarados devem ser efetivamente garantidos, e se os direitos do consumidor, em razão de suas peculiaridades, não são perfeitamente amoldados às tutelas ressarcitórias, a maneira de efetivamente se assegurá-los é por meio de tutelas de prevenção.

Acerca do dispositivo constitucional aludido Marinoni ensina:

"O direito à adequada tutela jurisdicional — garantido pelo art. 5° , XXXV, da Constituição Federal — corresponde, no caso de direito não patrimonial, ao direito de uma tutela capaz de impedir a violação do direito. A tutela inibitória, portanto, é absolutamente indispensável em um ordenamento que se funda na ‘dignidade da pessoa humana’ e que se empenha em realmente garantir — e não apenas em proclamar — a inviolabilidade dos direitos da personalidade" [155].

Também o Código de Defesa do Consumidor possui previsões de natureza processual que, juntas com as contidas na Lei da Ação Civil Pública, irão dar suporte às pretensões preventivas e coletivas. No artigo 83 do Código dispõe-se que "para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies e ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela". Deste modo, se o direito a ser tutelado reclama para a sua efetiva asseguração uma ação de perfil preventivo e/ou coletivo, esta é admitida e deve ser preferida às demais.

No dispositivo seguinte, o Código confere ao magistrado o poder-dever de, nas ações cujo objeto seja obrigação de fazer ou não fazer, conceder a tutela específica da obrigação ou determinar o providenciamento do resultado prático equivalente. Novamente o Código reporta-se à ideia de efetividade do processo, na medida em que visa à realização do direito in natura. Neste passo, outra vez infere-se que, para o direito de o consumidor não ser lesado por estipulações abusivas ser realizado in natura, como deseja a lei, demanda-se uma tutela de perfil preventivo. Não sendo o direito mencionado perfeitamente "restituível" após a sua lesão, a efetividade do processo que atue na sua defesa só será plenamente alcançada por meio de uma ação preventiva.

Marcelo Câmara anota que o fato de o artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor possibilitar a prevenção do ilícito sem se referir a nenhuma situação particular de direito material e, portanto, reportar-se à defesa de qualquer direito ou interesse que possa se buscar por via da tutela inibitória, implica na afirmação, ao lado das previsões inibitórias típicas já existentes no ordenamento brasileiro, de uma tutela inibitória atípica [156].

Lido este dispositivo em consonância com o que prevêem os artigos 6° e 83 da Lei, chega-se ainda mais longe: a tutela inibitória atípica do artigo 84 pode também ser utilizada coletivamente. De fato, o artigo 6° , VI e VII, ao referir-se à prevenção de danos coletivos e difusos, juntamente com a preocupação com a tutela adequada e efetiva contida no artigo 83 do Código, não deixam margem à dúvida de que a tutela inibitória atípica prevista no artigo 84 pode e, se preciso for, deve atuar no âmbito coletivo. Ora, e se a tutela inibitória, na qual não houve sequer ilícito, é admitida com fulcro nos dispositivos aludidos, também o será a de remoção do ilícito, na qual a afronta à lei é muito mais evidente.

Destaque-se, conforme anota Luiz Guilherme Marinoni, que a previsão contida no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor, indo além do que dispõe o artigo 11 da Lei 7.347/85 [157], consagra a tutela inibitória pura, para qualquer direito difuso ou coletivo [158], ou seja, autoriza que se a utilize antes da prática de qualquer ilícito.

Finalmente, não se pode deixar de mencionar que o Código de Processo Civil, como norma de aplicação subsidiária, contém, em seu artigo 461, na nova redação dada em 1994, previsão de tutela preventiva praticamente idêntica à do artigo 84 do CDC [159]. A previsão, conforme apregoa a melhor doutrina, abre espaço para a prevenção de uma série de tutelas, e não só a inibitória, sendo que cabe ao magistrado aplicar a norma ao caso concreto da forma mais eficaz possível, sempre tendo em vista os escopos jurisdicionais e os direitos resguardados pela lei, entendendo-se esta de forma ampla, isto é, abrangente inclusive de princípios. Assim, não houvera a previsão específica das tutelas preventivas aptas a defesa do direito do consumidor não ser lesado por estipulações abusivas no CDC, a devida tutela poderia ser prestada com fulcro nas normas gerais de processo civil. Acerca do artigo 461 do Código de Processo Civil não serão feitas maiores digressões, porque refogem ao objeto do estudo e porque a sua disciplina corresponde integralmente àquela contida no já citado artigo 84, CDC. Porém, destaca-se a relevância do dispositivo, que constitui marco na evolução da tutela dos direitos e da efetividade do processo, na medida em que garante a prevenção de todos os ilícitos perpetrados.

Para arrematar, transcreve-se a precisa observação de Marcelo Câmara a respeito dos fundamentos normativos de uma tutela inibitória coletiva, que se aplicam igualmente à tutela de remoção do ilícito coletiva:

"Pode-se afirmar, portanto, que tanto no plano constitucional como no legislativo identificam-se dispositivos que amparam a articulação de uma tutela de perfil inibitório. Ao menos três razões apontam neste sentido: (1) a previsão de direitos constitucionais que demandam a prevenção, o que sugere expedientes processuais aptos a tutelá-los; (2) a consagração constitucional do princípio do acesso à justiça, com especial menção à ameaça a direito; (3) a definição, no Código de Defesa do Consumidor, de que sempre haverá uma ação capaz de propiciar aos direitos e interesses nele previstos a adequada e efetiva tutela" [160].

3.4 - Tutela inibitória

Vista a importância das tutelas preventivas, assim como os fundamentos legais que as embasam, passa-se à análise das espécies propriamente ditas, iniciando-se pela inibitória.

Ficou constatado que a tutela inibitória é capaz de garantir o direito do jurisdicionado de exigir o cumprimento específico da obrigação e encontra seu fundamento neste direito (de exigir a tutela específica) [161]. É através da tutela inibitória que o direito material terá a sua tutela específica, alcançando resultado equivalente ao próprio adimplemento.

Marcelo Câmara, expondo a ideia de Joaquim Felipe Spadoni, afirma:

"O direito de se exigir a tutela específica constitui o fundamento substancial da tutela inibitória, uma vez que o direito material à inibição do ilícito — também se fala em direito substancial de prevenção — apresenta-se na qualidade de consectário lógico do direito de se exigir precisamente a realização da prestação devida. O direito material de inibição do ilícito consubstancia-se na prerrogativa de se resguardar o bem jurídico diante da ameaça de sua violação. Se o ordenamento pretende garantir o desfrute do próprio bem — e não o mero equivalente pecuniário — há de obstar a prática do ilícito, garantindo a tutela específica" [162].

Seu objetivo é resguardar a norma, evitando a prática, a repetição ou a continuação do ilícito [163]. Desnecessária, pois, a invocação do dano para que a inibitória tenha cabimento, pois ela tem relação com o desejo da própria norma de evitar a lesão ao bem jurídico [164]. Por isto, basta apenas que se aponte a norma que impede o ilícito, sendo despiciendo falar-se em dano [165].

O único pressuposto da tutela inibitória, para Luciane Tessler, é a iminência da prática do ilícito. Não se preocupa com o dano porque objetiva a tutela da norma, a integridade do ordenamento, e apenas mediatamente evitar o dano. Consoante afirma com brilhantismo a autora, "a tutela da norma pode até evitar a concretização de danos, porém a sua função está muito além: resgata o status de legitimidade do ordenamento, uma vez que a existência do Estado de Direito pressupõe o respeito às suas normas" [166][167].

Também a culpa é irrelevante, pois preocupando-se a tutela inibitória com a violação da norma, pura e simplesmente, pouco importa a culpa subjetiva daquele que está na iminência de cometer a ilicitude. O escopo da tutela não se relaciona com a conduta subjetiva do agente, que só terá relevância, ficou constatado (item 3.2), quando se pretende responsabilizá-lo, ou, excepcionalmente, no caso de o elemento subjetivo compor a estrutura do ilícito [168]. Ademais, ficou dito anteriormente, dirigindo-se a inibitória a uma ação futura, dificilmente será possível aferir a intenção do agente que está na iminência de cometer o ilícito que se pretende evitar. Por tais razões, a tutela inibitória prescinde da demonstração da culpa do agente. O máximo que se poderá exigir é a identificação deste a fim de determinar-lhe a adoção de determinado agir que conduza ao fim visado pela actio, ou seja, a impedir a ocorrência do ilícito [169].

Desta forma, não sendo necessária a demonstração do dano e nem da culpa, o campo de cognição judiciária se restringe e o procedimento é acelerado. Assim, havendo ameaça de lesão a alguma norma, pode-se pedir ao juiz uma ordem para que se observe o conteúdo da obrigação trazida pela norma a fim de impedir-lhe a violação. "Esta ordem, destinada a inibir a violação à obrigação, tem por último escopo garantir o gozo do bem in natura" [170], e pode ser tanto de fazer quanto de não fazer, conforme o ilícito seja omissivo ou comissivo, respectivamente. Fala-se a respeito da ordem visada, em inibitória positiva (ordem de fazer) ou negativa (ordem de abstenção) [171].

A tutela inibitória será dita pura, ou tout court, quando dirigida a um ilícito que se teme venha a ser realizado. O ilícito, neste caso, ainda não se verificou, o que existe é um temor, uma ameaça de que venha a sê-lo. A dificuldade desta modalidade de inibitória relaciona-se à sua prova, uma vez que o ilícito futuro, potencial, iminente, é de difícil evidenciação. Pode, doutra banda, dirigir-se contra a repetição ou continuação de um ilícito, sendo estas as hipóteses mais comuns. Haverá repetição do ilícito quando o ato antijurídico for perpetrado novamente, com um intervalo entre um ato e outro. O ilícito será continuado quando corresponder a uma atividade contra ius de caráter contínuo, que protrai-se no tempo: "caracteriza-se por ações reiteradas, que configuram continuadas violações à norma" [172]; a ilicitude continua na medida do prosseguimento da atividade. Correspondem às noções de direito penal de concurso de crimes e crime continuado.

Com relação à continuação do ilícito, sobreleva distinguir as noções de ilícito continuado e ilícito de eficácia continuada, visto que, conforme seja o caso, a tutela adequada será diversa. Neste passo, considera-se continuado o ilícito que, conforme foi acima explicado, corresponder a uma atividade contra ius de caráter contínuo, que protrai-se no tempo. Já o ilícito de eficácia continuada consiste naquele cujos efeitos têm natureza continuada, ou seja, o que perdura no tempo é a eficácia do ilícito, e não a sua prática, a qual se configura instantaneamente. Esta distinção é essencial para a compreensão da tutela de remoção do ilícito que será tratada a seguir, pois apenas o ilícito continuado é que deve ser objeto da tutela inibitória; o ilícito que tiver a sua eficácia continuada no tempo será melhor combatido pela tutela de remoção do ilícito. Conforme esclarece Marinoni, há eficácia continuada

"quando o ilícito se perpetua no tempo em decorrência de uma ação que já ocorreu, mas cujos efeitos ainda se propagam no tempo, não há mais como, em determinado sentido, impedir a continuação da prática do ilícito, embora seja possível impedir a continuação de seus efeitos. Ou seja, somente a ação (ou omissão) continuada pode ser inibida, e não a ação cujos efeitos se perpetuam no tempo. Existe diferença entre impedir o agir ilícito e remover o ilícito cujos efeitos estão repercutindo no tempo" [173].

Insta ressaltar ainda que a tutela inibitória, conquanto preste-se a agir preventivamente, não deve ser confundida com a tutela cautelar ou a tutela antecipatória, pois guarda com estas sensíveis diferenças. Com efeito, é diversa da tutela cautelar pelo fato de que, enquanto esta presta-se a assegurar a futura satisfação dos direitos, a tutela inibitória presta-se a satisfazer ditos direitos, e não a meramente assegurar a sua futura satisfação. A cautelar singulariza-se pela sua instrumentalidade hipotética, dirigida à asseguração não satisfativa e temporária dos direitos; a inibitória, pela satisfatividade do direito à prevenção do ilícito, através da proteção direta da situação material em si, focada no ilícito. Ademais, a tutela inibitória não é de cognição sumária, como a cautelar, mas sim, de cognição exauriente [174]. Já da tutela antecipada a inibitória afasta-se porque esta não se funda em juízo de verossimilhança como aquela. Embora a tutela antecipada conduza a provimentos de caráter satisfativo da mesma forma que a tutela inibitória, funda-se "nos requisitos gerais vinculados à tutela de urgência, ou seja, o fumus boni iuris e o periculum in mora, que se traduzem na probabilidade da ilicitude e no justificado receio de que, ao longo do processo de conhecimento, o ilícito venha a ser praticado (art. 84, § 3º, do CDC)" [175]. Nada impede, entretanto, e, aliás, é o que a maior parte das situações materiais exige, que a tutela inibitória seja usada juntamente com a antecipatória, otimizando os seus resultados.

Longe da pretensão de esgotar a matéria, estes são os principais aspectos da tutela inibitória que importam ao objeto deste trabalho. Possível vislumbrar-se, a partir deles, o valor que o Direito vem dando à realização específica dos direitos, por meio da autorização que dá ao Estado (note-se que se trata de reflexo do Estado Social) de intervir mais ativamente nas relações privadas, prevenindo as violações aos direitos que cuida de afirmar, e de fato assegurando-os.

3.5 – Tutela de remoção do ilícito

Ficou dito na seção anterior que o ilícito continuado distingue-se do ilícito de eficácia continuada: este consiste no ilícito perfectibilizado em um determinado momento cujos efeitos persistem, protraídos no tempo, gerando constante violação da norma; aquele refere-se ao ilícito praticado reiteradamente, normalmente traduzido em uma atividade contra ius de caráter contínuo.

Sobre o ilícito de eficácia continuada, Marinoni enfatiza que há apenas uma ação, cujo efeito ilícito perdura no tempo, ao passo que no ilícito continuado há uma ação continuada ilícita. "Nessa última situação" — prossegue o docente — "a ilicitude continua na medida do prosseguimento da ação ou da atividade, ao passo que na primeira, a ilicitude não é relacionada com a ação, mas sim com o efeito que dela decorre e se propaga no tempo" [176].

Constatada a distinção, infere-se que no ilícito de eficácia continuada já houve a violação da norma que a tutela inibitória tem em vista. Quer dizer, o ilícito já sucedeu, é fato ocorrido, do qual persistem apenas os efeitos, capazes, entretanto, de perpetrar a situação de ilicitude. Assim, se já se perfectibilizou o ilícito e não há mais como prevenir a sua ocorrência, a situação revela-se incompatível com a tutela inibitória. Neste caso, ela será inábil à promoção do direito material assegurado pela norma que visa resguardar. A norma pedirá, então, outra forma de tutela que seja capaz de protegê-la. E é aí que tem cabimento a tutela de remoção do ilícito [177].

A tutela de remoção do ilícito irá atuar, neste passo, em momento posterior à prática do ilícito. Adequa-se aos casos em que o ilícito e o dano verificam-se em momentos diversos, pois dirige-se a remover, como diz o próprio nome, o ilícito, e evitar o dano que, na hipótese, ainda encontra-se em estado potencial. É que não havendo mais violação à norma a ser inibida, mas perigando tal violação causar um dano, compete ao magistrado prestar uma tutela que, tão logo possível, exclua a situação de ilicitude do mundo fenomênico evitando os danos que dita situação possa ocasionar.

Dois, portanto, são os aspectos sob os quais a tutela de remoção do ilícito deve ser examinada: o ilícito e o dano. Considerando-se o ilícito, tem-se que a tutela de remoção não irá — como a inibitória — preveni-lo, eis que diante da sua ocorrência previamente à atuação da tutela, isto não é mais possível. Não havendo mais o que se fazer para evitá-lo, a remoção do ilícito tem em vista a repressão do ilícito. Pode-se dizer, assim, que enquanto a inibitória é preventiva do ilícito, a tutela de remoção é repressiva do ilícito.

O interesse em reprimir o ilícito, além de conduzir à prevenção de dano futuro e iminente dele decorrente, reside no próprio interesse do Estado em garantir a legitimidade do ordenamento jurídico, cuja violação não pode ficar sem resposta. Em outras palavras, conforme a arguta observação de Luciane Tessler, feita acerca da inibitória, mas que também se amolda perfeitamente à remoção do ilícito, a tutela "resgata o status de legitimidade do ordenamento, uma vez que a existência do Estado de Direito pressupõe o respeito às suas normas". Por isto, se não é mais possível prevenir a violação da norma, isto não implica em que não se deva reprimi-la.

Analisada sob a perspectiva do dano, a tutela de remoção do ilícito atuará preventivamente, no sentido de evitá-lo, pois nestes casos, embora já se tenha verificado a conduta ilícita, ainda não houve o dano, que, entretanto, acha-se em estado potencial. A tutela de remoção do ilícito impede a superveniência dos efeitos danosos do ato antijurídico. Se é a situação de ilicitude que cria a potencialidade danosa, ao promover-se a remoção desta situação ilícita, estar-se-á, automaticamente, afastando-se a sua consequência: o dano potencial. Diz-se, deste modo, que com relação ao dano, a tutela de remoção do ilícito é preventiva.

A natureza da tutela ora tratada, sensato concluir, é dúplice: com relação ao ilícito, é repressiva; tratando do dano é preventiva. Luciane Tessler afirma-a repressiva do ilícito e preventiva do dano.

Não se pode negar, no entanto, que a tutela de remoção do ilícito é, assim como a inibitória, uma forma de tutela da norma. A sua especificidade reside no fato de que atua em momento posterior à sua vulneração. Há que restar claro, outrossim, que não é porque se diz que a tutela de remoção do ilícito é preventiva do dano, que a tutela inibitória não o será. Ao contrário, ambas previnem o dano, e pode-se arriscar dizer que a inibitória até com maior eficiência, pois que atuante em momento anterior. A distinção de ambas, repise-se, está no trato que dão à tutela da norma: a inibitória, preventivo; a de remoção do ilícito, repressivo.

Diz a autora mencionada que a tutela de remoção do ilícito exige dois pressupostos, um positivo e outro negativo. O positivo consiste na demonstração de um ilícito praticado, a ocorrência da violação da norma. O negativo, na não superveniência do dano. É que caso já se tenha verificado o dano decorrente do ato ilícito, a tutela de remoção do ilícito não será a mais adequada, por incapaz de repará-lo. Nesta hipótese, a tutela adequada à realização material do direito é a ressarcitória, que visa a repressão do dano e já não mais apenas do ilícito. Desta forma, mais que prescindir da demonstração do dano, a tutela de remoção do ilícito exige a sua ausência. Por isso fala-se em pressuposto negativo.

A exemplo da tutela inibitória, também aqui a demonstração de culpa será dispensada, porque irrelevante ao fim visado pela tutela — a norma. "Na realidade, quando se pensa em tutela do ilícito, busca-se proteger a norma. Portanto, interessa verificar apenas se houve ou não houve violação à norma. Não há que se perquirir acerca dos motivos que levaram à inobservância da lei" [178].

No mais, a tutela de remoção do ilícito assemelha-se à inibitória: é satisfativa, de cognição exauriente (não se confunde com a cautelar e a tutela antecipatória, embora possa ter seus efeitos potenciados pelo uso integrado com estas), possibilita a realização específica do direito, entre outros.

3.6 – Técnicas processuais: mandamental e executiva lato sensu

Demonstrados os tipos de tutela hábeis a garantir o direito do consumidor de não ser atingido por estipulações abusivas, insta estudar os meios postos à disposição pelo ordenamento jurídico para a sua concretização. Estes meios traduzem-se nos instrumentos de que o juiz dispõe para viabilizar a efetivação das tutelas até aqui estudadas, pois de nada adiantaria proclamar direitos e garantias e positivar formas de tutelas sem que houvesse técnicas processuais correspondentes, ou seja, que lhes garantam a devida realização. Afinal, se se veda a justiça pelas próprias mãos, conferindo-se ao cidadão o direito à tutela jurisdicional (art. 5° , XXXV, CF), consistente em uma resposta adequada e efetiva do Estado-Juiz, pressupõem-se estruturadas técnicas processuais que atendam àquele desiderato de resposta [179].

As técnicas processuais são, assim, os "instrumentos conferidos ao juiz para que, no momento em for prestar a tutela jurisdicional, possa, efetivamente, garantir a tutela do direito" [180]. Devem adequar-se ao objeto de tutela, no sentido de aproximarem-se das peculiaridades do direito material que têm em vista, a fim de abrangê-lo tanto quanto possível. Quer dizer, as técnicas processuais devem ser instrumentalizadas com mecanismos que possibilitem o atendimento das exigências de cada caso concreto. A forma deve compatibilizar-se com a realidade. Afinal, a "legitimação do processo está precisamente nos resultados que alcança. Ele não é um valor considerado em si mesmo, senão que uma ferramenta posta à disposição do jurista, para a confirmação do sistema" [181].

Neste passo, pode-se afirmar que também as peculiaridades do direito do consumidor de não ser atingido por estipulações abusivas devem ser consideradas pelas técnicas processuais do ordenamento jurídico. Tendo-as em consideração, não se pode concluir diversamente de que as técnicas processuais correspondentes à classificação tripartite das sentenças (constitutiva, declaratória, condenatória) não as atendem, seja porque são inaptas a garantir a inviolabilidade do direto, através de uma ação preventiva, seja porque inaptas a restabelecê-lo ao seu estado anterior, em caso de violação. A incapacidade destas técnicas de responderem adequadamente ao direito material é reflexo da superação do processo civil clássico, estruturado sobre os valores do Estado Liberal e desatento ao reconhecimento de novos direitos pelo Estado Social, que exigem ação estatal prévia à sua vulneração.

Necessária, portanto, a utilização de técnicas diversas, que atuem em consonância com o direito material visado, efetivamente protegendo-o. Nesse contexto, entende-se que as melhores técnicas para a tutela do direito de o consumidor não ser atingido por cláusulas abusivas são a mandamental e a executiva lato sensu, expressamente previstas no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 461 do Código de Processo Civil, porquanto capazes de obter resultados imediatos e efetivos no plano material.

A sentença mandamental, para Luciane Tessler

"caracteriza-se por emanar uma ordem ao demandado, sob pena de sanção. A determinação do juiz está sempre acompanhada de um elemento de coerção, que tem por fim atuar sobre a vontade do réu, a fim de convencê-lo a cumprir a obrigação. Sua grande vantagem é exatamente seu potencial coercitivo. Diante da ordem do juiz, agregada a uma ameaça de sanção, o demandado já sabe que, se descumprir a obrigação sofrerá uma ‘penalidade’. Na decisão mandamental o juiz ‘manda’, não apenas declara ou condena, visto que a determinação vem sempre acompanhada de medida coercitiva" [182].

Eduardo Talamini ensina que "as sentenças mandamentais contêm ordem para o réu, a ser atendida sob pena de se caracterizar afronta à autoridade estatal e, eventualmente, crime de desobediência" [183] (destacou-se). O autor prossegue afirmando que é este o aspecto que a diferencia das demais categorias de sentença, e não propriamente o fato de a ordem estar acompanhada de uma medida coercitiva. Acerca da relação existente entre a medida de coerção e a técnica mandamental, o autor leciona:

"A medida processual de coerção, além de funcionar como técnica de indução da conduta do destinatário, presta-se a chancelar a autoridade estatal do ato que a veicula. Todavia, o aspecto essencial do provimento em exame não reside tanto em fazer-se acompanhar da medida processual de coerção, mas em veicular uma ordem diretamente voltada à parte. (...) Em síntese, o que confere ‘força coercitiva’ ao provimento mandamental não é a medida processual de coerção que eventualmente o acompanhe, mas seu conteúdo de ordem, por força do qual seu descumprimento caracterizará afronta à autoridade, juridicamente censurável" [184].

A medida coercitiva, ou ameaça de sanção pelo descumprimento da ordem, pode consistir em multa, prisão civil, ou qualquer outra que se mostre mais adequada e eficiente no caso concreto. O juiz é dotado de certa maleabilidade no manejo destas medidas — o que é fundamental na realidade dinâmica de hoje — a fim de que possa amoldar a prestação jurisdicional ao direito material visado, garantindo-lhe efetividade.

A técnica mandamental atua sobre a vontade do réu, fazendo com que "voluntariamente" cumpra a obrigação, ordenando, se preciso com medidas coercitivas que o incentivem a tanto, que proceda de maneira lícita. Ou seja, é o próprio devedor que vai adimplir a obrigação devida, e nunca um terceiro, por sub-rogação, como ocorre na execução. Este aspecto é fundamental, mormente quando se tem em vista obrigações de fazer infungíveis ou obrigações de não fazer, que não podem ser realizadas por ato de substituição da vontade [185].

Ademais, a sentença mandamental, bem como a executiva lato sensu, tem a vantagem de produzir resultado em virtude de sua própria eficácia, quer dizer, independe de um processo de execução forçada para produzir efeitos. São por isto chamadas por Sérgio Cruz Arenhart de "tutelas de prestação concreta", pois realizam elas próprias o direito, respondendo às pretensões que demandam alteração fática [186].

A sentença executiva lato sensu, a seu turno, do mesmo modo que a mandamental, realiza imediatamente a pretensão do autor, mas desta vez por meio da adoção de medidas executivas dentro do próprio processo de conhecimento. A grande diferença entre o provimento executivo lato sensu e o mandamental reside no fato de que naquele a realização da pretensão material independe da vontade ou de qualquer conduta da parte devedora: o juiz determina a terceiro (auxiliares da justiça) a realização de medidas que a substituam, sub-rogando-se na vontade do devedor e alcançando resultado equivalente. Este tipo de provimento adequa-se às obrigações de fazer fungíveis e rompe com a ideia de que cognição e execução devem ocorrer em processos apartados [187].

Vistas estas noções, tem-se que à tutela inibitória melhor amolda-se a técnica processual mandamental, enquanto à de remoção do ilícito, a executiva lato sensu [188]. É que, no caso de remoção do ilícito, o ato realizador da tutela não precisa ser feito pelo réu, ou seja, se a sentença declarou algo ilícito, não há necessidade de que seja o réu o responsável por removê-lo; o interesse maior da tutela está no afastamento da ilicitude, com vistas a evitar a superveniência do dano, independentemente de quem o faça [189]. Isto impõe a geração de resultados rápidos e eficazes, que a medida executiva certamente alcança mais eficientemente.

Já a tutela inibitória, uma vez que se dirige a evitar uma ação ilícita por parte do réu, costuma necessitar da técnica mandamental para a sua efetivação, pois tratando-se de tutela que busca impedir um ato contra ius, deve atuar sobre a vontade daquele que se encontra na iminência de praticá-lo, no sentido de pressioná-lo a não fazer ou a deixar de fazer [190], ou, ainda, tratando-se de ilícito omissivo, a fazer. Nestes casos, parece mais adequado (porque menos gravoso) o uso da coerção indireta, uma vez que, por esta via, confere-se ao demandado a possibilidade de, voluntariamente, não praticar o ato que se deseja impedir [191].

A verdade, no entanto, é que não há relação entre sentença mandamental e infungibilidade [192], de modo que esta sentença também pode atuar para remover um ilícito, assim como a sentença executiva pode atuar para inibi-lo. Tudo dependerá do caso concreto, que mostrará qual a técnica mais adequada à efetivação da tutela do direito material. Não há uma rigidez de formas, pois não é a técnica utilizada que definirá a natureza da tutela; ela apenas atua como instrumento a seu serviço. É dizer, a adoção da técnica executiva para evitar a prática do ilícito não desnatura a tutela inibitória, assim como a adoção de técnica mandamental para remover um ilícito não retira a natureza da tutela, que continuará sendo de remoção [193].

Finalmente, deve-se consignar que o uso das técnicas processuais deve ser feito pelo magistrado com a devida racionalidade e proporcionalidade, visto que a liberdade que a lei lhe conferiu tem por escopo exclusivo permitir-lhe a adoção da melhor técnica ao caso concreto. Desta feita, deve limitar-se à necessidade e à adequação da medida, tendo sempre em mente, além do princípio da efetividade da tutela, o do menor sacrifício, e atentando, ainda, ao que apregoa o artigo 84, §4° , do Código de Defesa do Consumidor, quando se refere à multa suficiente e compatível com a obrigação [194].

3.7 – A ação civil pública como o instrumento processual mais efetivo na concretização do tutela preventiva e coletiva do consumidor contra as cláusulas abusivas

Não há como falar em tutela coletiva do direito do consumidor de não ser atingido por estipulações abusivas sem fazer menção, ainda que breve, à ação civil pública. Considerando a realidade de massa e a natureza transindividual ou individual homogênea dos direitos do consumidor, deduz-se que a sua proteção não pode ser satisfatória se tratada sob uma perspectiva individualizada.

A definição dos direitos transindividuais — assim entendidos os difusos e coletivos — e dos individuais homogêneos, representa a consciência de que determinados bens, porque pertencentes a toda a sociedade ou a determinado grupo, são fundamentais para a adequada organização social. Mesmo os direitos individuais homogêneos, que envolvem diversos titulares de direitos de origem comum, porque refletem os conflitos típicos da sociedade de massa, recomendam um tratamento coletivo a fim de efetivar a proteção dos indivíduos lesados e evitar a impunidade daqueles que provocam os danos, que podem ser pequenos apenas em uma perspectiva individual [195].

Neste contexto, a utilização da ação civil pública evidencia-se fundamental, eis que se constitui no instrumento processual apto a tutelar em juízo os direitos carregados com aquelas peculiaridades diversas vezes referidas. De fato, é ela amoldada às exigências dos direitos transindividuais, feitas no sentido da remodelação dos conceitos clássicos de legitimidade para a causa e coisa julgada material, conceitos estes estruturados, no direito clássico, para atenderem apenas os conflitos individuais. Seu objetivo é basicamente "proteger os novos direitos e aqueles típicos da sociedade de massa e, ainda, viabilizar a participação, mesmo que indireta, na reivindicação desses direitos" [196].

Marinoni explica, acerca da inidoneidade dos conceitos clássicos referidos à tutela de interesses transindividuais, que

"Conceitos deste tipo não servem para os direitos transindividuais (coletivos e difusos), simplesmente porque eles são indivisíveis e, em razão disso, devem ser reivindicados por entes que tenham idoneidade e capacidade para protegê-los em juízo. Se a legitimidade, no caso, tem que ser obrigatoriamente deferida a um ente coletivo — que então passa a defender o direito de várias pessoas — a coisa julgada material, por absoluta conseqüência lógica, tem que passar a beneficiar a todos os titulares do direito em litígio" [197].

A seu turno, Mauro Cappelletti e Bryant Garth defendem que a revisão dos problemas de legitimidade e a instituição de um sistema de representação dos interesses difusos constitui a segunda grande onda renovatória do Processo Civil. E anotam:

"Uma vez que nem todos os titulares de um direito difuso podem comparecer a juízo — por exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região — é preciso que haja um ‘representante adequado’ para agir em benefício da coletividade, mesmo que os membros dela não sejam citados individualmente. Da mesma forma, para ser efetiva, a decisão deve obrigar a todos os membros do grupo, ainda que nem todos tenham tido a oportunidade de ser ouvidos. Dessa maneira, outra noção tradicional, a da coisa julgada, precisa ser modificada, de modo a permitir a proteção judicial efetiva dos interesses difusos" [198].

Atenta à moderna realidade, a disciplina da ação civil pública resolve o problema da legitimidade por meio de um sistema de substituição processual. Com efeito, a combinação do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública com o artigo 82 do CDC, estende-a ao Ministério Público [199], à União, aos Estados, Municípios e Distrito Federal, às autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, destinadas à defesa dos interesses do consumidor e às associações civis, constituídas há pelo menos um ano ou que demonstrem manifesto interesse social (§ 4º do artigo 5º da Lei 7347/85), com finalidade institucional de defender os interesses protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Cuida-se de legitimidade autônoma, concorrente e disjuntiva, na medida em que qualquer dos legitimados pode propô-la (concorrente), isolada ou conjuntamente (autônoma), sem depender da concordância dos demais legitimados (disjuntiva).

Com relação à coisa julgada, a ação civil pública possibilita adequada resposta ao fenômeno de massa traduzido nas cláusulas abusivas. A lei regula que a sentença terá, no caso de direitos difusos, efeito erga omnes; tratando-se de direitos coletivos, a sentença produzirá efeitos ultra partes; e, finalmente, em sendo objeto da ação direitos de natureza individual homogênea, a sentença produzirá efeitos erga omnes apenas em caso de procedência do pedido, para beneficiar as vítimas [200].

O legislador tomou ainda o cuidado de evitar práticas fraudulentas para formar coisa julgada através de ações simuladas, ao instituir a coisa julgada secundum eventum litis. Quer dizer, a extensão subjetiva dos efeitos da sentença depende do resultado da lide: nos casos em que a ação for julgada improcedente por ausência de provas tais efeitos não se produzem, e outra ação poderá ser proposta. Assim, impede-se que o autor, em conluio com o demandado, possa instaurar ação temerária, sem produzir as provas necessárias, com o desiderato de obter sentença de improcedência imutável, e salvaguardando a conduta ilícita do réu [201].

Não se pode deixar de mencionar, ainda acerca da coisa julgada na ação civil pública, a alteração que a Lei 9.494/97 introduziu na redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, pretendendo limitar o alcance subjetivo da coisa julgada material aos limites da competência territorial do órgão prolator. Com a alteração, o artigo passou a dispor que "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por falta de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" (destacou-se).

Ora, é flagrante a confusão legislativa entre coisa julgada e competência territorial do juiz e limites da coisa julgada: a decisão do juiz, uma vez legitimada pelo poder jurisdicional que lhe é conferido, é dotada de imperatividade e inafastabilidade em todo o território nacional, e não se confunde com a competência, como divisão de funções e atribuições em territórios [202]. Embora não reconhecida pelo STF, a inconstitucionalidade do dispositivo é flagrante, pois afronta o poder de jurisdição dos juízes [203]. Inobstante este fato, o problema pode ser solucionado mediante o controle difuso de constitucionalidade: com isto, alerta Luciane Tessler, o juiz, além de afastar a norma inconstitucional, preserva os efeitos de sua decisão [204]. Há que se lembrar, outrossim, que a alteração legal atingiu apenas a Lei da Ação Civil Pública, sem alterar o dispositivo que trata da coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor (artigo 103), o qual, por força do contido no artigo 21 daquela Lei, se aplica à ação civil pública. Assim, para afastar-se o dispositivo ilegal, basta fundamentar-se integralmente no Código de Defesa do Consumidor [205].

Perceba-se que a disciplina da Lei 7.347/85 combinada com o disposto no Título III do CDC, ao diferenciar o regime de legitimidade para a causa e da coisa julgada material, é capaz de atender às modernas exigências de efetividade da tutela jurisdicional, na medida em que permite a defesa de interesses que ultrapassam as raias da individualidade e lança seus efeitos para além destes limites, abarcando a toda uma coletividade de pessoas titulares de um direito ou de vários direitos de mesma origem.

Ademais, ao permitir que em uma única ação se tutele o direito de várias pessoas, a ação civil pública "além de eliminar os custos das inúmeras ações individuais, torna mais racional e célere o trabalho dos juízes e neutraliza as vantagens do litigante que, não fosse a ação única, se transformaria em habitual, e assim teria vantagens sobre o litigante eventual" [206].

Especificamente no que toca à prevenção, as tutelas inibitória e de remoção do ilícito coletivas encontram sua fundamentação legal na combinação dos artigos 83, 84, 6º, VI, do CDC e 5º, XXXV, da CF. Assim, diz Marinoni que os artigos 83 e 84 do CDC, lidos à luz dos artigos 5º, CF, e 6º, VI, CDC, segundo os quais o consumidor tem o direito de ser protegido preventivamente contra o uso de cláusulas gerais abusivas (art. 6º, IV, CDC), conduzem a concluir que os legitimados à ação coletiva (art. 82, CDC) podem propor ação para inibir o uso de cláusulas gerais abusivas [207], ou removê-las, caso já estejam inseridas nos contratos firmados. E arremata o doutrinador:

"diante desse sistema de proteção aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é correto dizer que o direito brasileiro possui legislação que, adequadamente interpretada, pode prestar uma série de tutelas — e não uma só, como alguém poderia supor ao ouvir falar em ‘tutela coletiva’" [208].

Deste modo, se se buscarem as tutelas inibitória e de remoção do ilícito por meio da ação civil pública, ter-se-ão potencializados os objetivos de prevenção e efetividade jurisdicional, pois, a um só tempo, obtém-se a tutela da norma (preventiva ou repressiva, conforme seja o caso de inibitória ou de remoção) e atinge-se um incontável número de pessoas que, se consideradas individualmente, muito provavelmente não teriam seus direitos tutelados.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Bruna Bonfante

Servidora pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFANTE, Bruna. O controle das cláusulas abusivas nos contratos padronizados e de adesão por meio de tutelas preventivas e coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2213, 23 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13208. Acesso em: 18 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos