2- Criminalização da conduta DOS FLANELINHAS sob o prisma da criminologia
O ramo do direito permite uma perfeita averiguação da pertinência de criminalizar determinada conduta é a Criminologia, que conforme definição de Edwin H. Suntherland, "é um conjunto de conhecimentos que estudam o fenômeno e as causas da criminalidade, a personalidade do delinqüente, sua conduta delituosa e a maneira de ressocializá-lo" [51].
Para esta ciência, conforme observa Sérgio Salomão Shecaira [52], o delito deve ser encarado como um problema social e, por isso, é preciso que existam alguns critérios para se entender um fato coletivamente como crime.
O aludido jurista elenca quatro critérios: i) incidência massiva na população; ii) incidência aflitiva; iii) persistência temporal; iv) existência de consenso a respeito de sua etiologia e das técnicas de intervenção eficazes para o seu combate.
A criminalização da conduta dos guardadores irregulares de veículos atende a todos estes critérios, sendo assim um imperativo também sob o ponto de vista deste ramo do direito.
A incidência massiva na população exige a ocorrência relativamente freqüente do fato, não se podendo criminalizar um acontecimento isolado, ainda que tenha causado certa revolta na comunidade. A ação dos guardadores irregulares de carros atende facilmente a esse requisito, visto que ela tem se mostrado cada vez mais comum nos centros urbanos (e agora até mesmo nas pequenas e médias cidades), tornando-se uma prática corriqueira, habitual.
O criminalista aponta também que a conduta deve produzir incidência aflitiva, pois não faz sentido que um caso sem relevância social seja criminalizado. A atividade dos flanelinhas é altamente prejudicial à população, em especial aos motoristas, que são submetidos a uma cobrança indevida pela utilização de um bem público e cotidianamente vêem ameaçados seu patrimônio e integridade física. A sociedade como um todo também é atingida na medida em que essa atividade aproveita-se do medo dos cidadãos e reforça o já presente clima de intranqüilidade, contribuindo assim para degradação do ambiente urbano.
O terceiro critério indica que a conduta praticada deve ter persistência temporal, isto é, não se deve estigmatizar comportamentos que representem uma moda ou algo transitório. O ato de cobrar pelo estacionamento em vias públicas existe há décadas e sua ocorrência tem crescido progressivamente em razão do crescimento de sua lucratividade, da ausência de repressão e do aumento do medo dos motoristas em relação aos abusos costumeiramente praticados pelos guardadores. No que se refere a esse quesito, a negligência estatal ao longo do tempo foi o determinante para o problema atingisse o elevado grau de danosidade atual.
Por fim, um fato a ser alcançado pela esfera criminal deve resultar de um consenso da sociedade. Por óbvio, não se exige uma anuência absoluta da população, impossível de ser obtida, mas sim um consentimento geral e expressivo. Dessa forma, muito embora a ingestão de bebidas alcoólicas possa ensejar um fenômeno massivo, aflitivo e de persistência temporal é consenso que na sociedade seu consumo e venda não deve ser criminalizado. [53]
Tal requisito relaciona-se com a teoria da adequação social, formulada por Hans Welzel. "Segundo Welzel, o Direito Penal tipifica apenas condutas que tenham um certa relevância social; caso contrário não poderiam ser delitos." [54] Trata-se do princípio da adequação social, segundo qual uma conduta não será considerada típica se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada. [55]
No que se refere aos flanelinhas, é inegável que se trata de uma atividade socialmente considerada como uma transgressão, como um mal que deve ser combatido. Tal conduta é altamente reprovada pela população, que, por entender ser esta uma questão de segurança pública, exige das autoridades uma atuação mais incisiva na solução das questão. A demonstração desta reprovação pública pode ser observada nas colunas dos leitores nos jornais, em blogs na internet [56]e no site de relacionamentos "orkut", no qual existem várias comunidades que manifestam sua desaprovação aos flanelinhas, sendo que uma delas, denominada "eu odeio guardadores de carros", conta com mais de dez mil membros. Há casos em que o inconformismo da população atinge níveis preocupantes, já havendo inclusive episódios de motoristas que reagem violentamente a abordagem dos guardadores, como 2003, quando um flanelinha foi assassinado após efetuar a cobrança [57] (existem ainda outros casos de guardadores baleados por motoristas indignados). [58]
Não se pode considerar que o pagamento efetuado pelo motorista ao guardador o torna conivente com sua atuação, pois é notório o fato de esse adimplemento decorre do temor suscitado pela presença do flanelinha, pelo medo de que um mal maior lhe sobrevenha. Além disso, é sabido que os motoristas inconformados muitas vezes não recorrem à força policial por temer represálias ou por não crer na eficácia da repressão promovida pelo poder público.
Destarte, estão presentes todos os requisitos mínimos para que a atividade do guardador irregular de veículos venha ser entendida coletivamente como crime. Cabe agora, considerando que a criminologia é uma ciência que leva em consideração o fenômeno da criminalidade como um todo (inclusive a pessoa do delinqüente), expor como o aspecto sociológico da conduta se relaciona com esta perspectiva de crimininalização.
Neste sentido, um recente estudo feito pela socióloga Neiara Araújo, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), conclui que "a rigor", não se pode nem configurar a atividade dos guardadores como trabalho já que o cliente não procura pelo serviço e quase sempre remunera o flanelinha por cansaço, medo, culpa ou coerção. A organizadora do estudo afirma ainda que "é hipócrita achar que organizando, eles estão melhorando de vida. É como se o cidadão tivesse que responder pelo desemprego em cada esquina." [59]
O cientista político Francisco Moreira, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), também aponta para a situação insustentável que se desencadeou pela atuação dos guardadores clandestinos. Ele assevera que "hoje somos reféns dessas pessoas que não sabemos nem quem são." [60]
Uma pesquisa coordenada por Elizete Menegat, professora da disciplina pesquisa social na Universidade Federal de Juiz de Fora, abordou o problema da ação dos guardadores clandestinos naquela cidade, confirmando o loteamento de pontos e a demarcação de território pelos flanelinhas. O estudo revelou que eles trabalham em áreas limitadas e confessam usar a rua como propriedade privada (guardadores mais antigos, que se intitulam proprietários das pistas e impõem o pagamento de aluguéis diários dos que estão no ponto há menos tempo, ou seja, o critério cronológico é o principal fator no estabelecimento das relações de poder, aliado sempre a um caráter intimidatório), demonstrando também que muitos possuem casa própria e um padrão de vida acima do que se imaginava. [61]
Para a professora e Assistente Social Angélica Duarte de Aguiar, autora da dissertação de mestrado "A lógica doméstica do espaço público de Brasília: flanelinhas no setor informal de trabalho" [62], pela Universidade de Brasília (UNB), "os guardadores de carros criam em suas áreas de trabalho pequenas sociedades com suas próprias regras e leis". Pela análise do referido estudo percebe-se que a conduta dos guardadores está ligada até mesmo a uma idéia de anarquia, de negação do regramento imposto pelo Estado para desenvolvimento das relações sociais.
Ainda assim, há quem pretenda justificar a atividade dos flanelinhas na questão da pobreza [63] e na falta de melhores oportunidades [64]. Seriam eles os frutos de uma sociedade desigual, as verdadeiras vítimas em um sistema capitalista opressor. Porém esse argumento ignora as peculiaridades da conduta frente às demais formas de ocupação informal, já que, dentre todas as opções de ofícios irregulares a que um cidadão pode valer-se em uma situação de desemprego, tais como venda de produtos falsificados ou oferecimento de transporte irregular, a atividade de guardador de carros é aquela que afronta mais diretamente a coletividade e por isso sequer deveria ser considerada como opção, como já afirmou a socióloga Neiara Araújo.
Diferentemente de outros trabalhadores que atuam na informalidade, os flanelinhas colocam os destinatários de seus serviços (que sequer são prestados) em uma incômoda situação de constrangimento, de forma que o motorista deve optar entre pagar ao guardador ou ter seu veículo ou até mesmo sua integridade física atingidos. Ao contrário dos demais trabalhadores irregulares, o guardador não oferece um serviço, ele o impõe através de uma ameaça velada. Quem remunera ao flanelinha não o faz por ato volitivo incólume mas sim tem sua vontade viciada pelo medo, pelo temor que um mal maior lhe sobrevenha.
Ainda que outros agentes da economia informal igualmente venham a praticar atos contrários ao ordenamento jurídico, a diferença está na natureza do bem lesionado, pois suas atividades atingem, quando muito, a economia popular, enquanto a conduta dos guardadores atenta contra a liberdade individual das pessoas, seu patrimônio, sua livre capacidade autodeterminação, dentre outros bens jurídicos, o que denota a sua maior reprovabilidade.
Neste sentido, cabe relembrar as palavras do Juiz Daniel Ribeiro Lagos: "se for justificar essa atividade no desemprego, estaria justificado a pistolagem, o tráfico de entorpecentes, entre outros, com reflexos econômicos, o que é inadmissível" [65]. Da mesma forma, a Juíza Liana Bardini Alves também afirmou que o desemprego "não implica em flanelinhas lotearem grande parte das vias públicas, exigindo preços altíssimos para que os veículos permaneçam incólumes" [66]. Assim sendo, não se pode admitir que a falta de ocupação seja usada como pretexto para práticas criminosas, como por exemplo, a coação de motoristas a pagarem pela utilização de bem público.
Não se pretende negar o fato de que muitos recorrem a "flanelagem" por falta de oportunidades no mercado de trabalho. Entretanto, são comuns os relatos de que muitos guardadores auferem uma renda significativa em sua atividade (muito superior ao ordenado dos trabalhadores formais) e que a conduta tem se mostrado cada vez mais lucrativa. Muitos se mantém no ofício, não pela ausência de uma alternativa idônea, mas sim por ser este o caminho que lhe garante maior benefício próprio, sem que se importar com questões legais, éticas ou morais. [67]
Neste contexto, para que não restem dúvidas quanto a necessidade desta criminalização, cabe tecer uma breve consideração sobre o principio da co-culpabilidade. Segundo este princípio, o juízo de reprovabilidade sobre uma conduta deve basear-se na concreta experiência social dos réus, nas oportunidades que se lhes depararam e na assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do Estado que vai impor-lhe a pena [68]. Em outras palavras, a idéia da co-culpabilidade funda-se na constatação de que, se nenhuma sociedade apresenta mobilidade vertical, a ponto de oportunizar a todos os seus integrantes o mesmo espaço social, o juízo de reprovação penal deve adequar-se, em cada caso, ao espaço social conferido ao indivíduo. [69]
Este princípio possui grande relevo quando percebemos que muitos se tornam flanelinhas em virtude da ineficiência assistencial do Estado. Todavia, isso não implica em considerar o aludido princípio como um óbice a criminalização da atividade. Isto porque a doutrina que advoga pela aplicação da co-culpabilidade entende a mesma como circunstância supra-legal de atenuação da pena e não como orientação a atuação legislativa na tipificação de condutas. Logo, trata-se de um princípio a ser empregado pelo magistrado (na análise do caso concreto, na atenuação da sanção penal) e não pelo legislador (na criminalização de condutas ofensivas a sociedade). Dessa forma, ainda que o juiz possa optar por relevar a sanção a ser aplicada a um flanelinha levando em consideração sua condição social adversa, tal fato não impede que a atividade seja erigida a categoria de crime em razão de todos os argumentos apontados até agora no presente artigo.
Dito isto, passamos agora a analisar como o legislativo pátrio vem enfrentando este tormentoso problema.
3- Projetos de lei
Diante de todo o exposto até o momento, fica patente a necessidade da criação de uma tipificação específica capaz de coibir de forma eficaz a ação dos guardadores de carros clandestinos, uma tarefa que cabe ao legislativo federal, o único competente a legislar em matéria penal (art. 22, Inc. I, CF/88). Dois projetos de lei visando essa criminalização já foram apresentados no Congresso Nacional, um foi rejeitado e o outro está em tramitação. [70]
A proposta pioneira foi uma iniciativa do então deputado federal pelo PFL/SP, Sr. Neuton Lima, que, ao defender a necessidade de se responsabilizar penalmente aqueles que se aproveitam da frágil posição dos proprietários de veículos, acabou rompendo com forma pusilânime pela qual o legislativo tratava a questão até aquele momento. Ele foi o autor do PL 2953, apresentado em 2004, cuja pretensão era tornar crime a "cobrança de taxa pelo serviço de vigilância de carros em locais públicos", tipificando a atividade como modalidade de extorsão indireta [71]. Na fundamentação de sua proposta, Neuton Lima discorreu acerca da fragilidade dos motoristas diante da injusta atuação dos guardadores:
A segurança pública é dever do Estado... não obstante, é fato corriqueiro, principalmente nos centros urbanos, os proprietários de veículos passarem pelo constrangimento de pagar para que particulares vigiem seus veículos, ao estacionarem os mesmos em vias e locais públicos. No mais das vezes, o dono do veículo submete-se ao pagamento temendo que o pseudo-guardador possa lhe afligir danos não somente materiais como físicos. [72]
Mesmo tratando-se de uma iniciativa louvável, a proposta foi arquivada após parecer negativo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no final de 2005. Na época, o Deputado Federal Marcelo Ortiz, na condição de relator da referida comissão, embora tenha entendido pela constitucionalidade e boa técnica legislativa do projeto, proferiu parecer pela injuridicidade e no mérito, pela rejeição.
Três anos depois o assunto volta a ser discutido no Congresso Nacional, agora em razão de uma iniciativa do Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ), autor do PL 4501, apresentado em 16 de dezembro de 2008. Ignorando o precedente negativo, Biscaia volta a propor a criminalização dos flanelinhas.
O deputado, que já foi Secretário Nacional de Segurança Pública em 2007, expõe de forma clara a justificação de sua proposta:
É grave situação a que estão sujeitos cidadãos e cidadãs que, ao procurarem um local para estacionar seus veículos, tornam-se reféns da ação injustificada e desordenada de guardadores clandestinos, conhecidos como "flanelinhas", que controlam as vias públicas sem possuir qualquer autorização do poder público... aqueles que se recusam a pagar as elevadas quantias exigidas, tem seus veículos furtados, danificados ou sofrem agressões físicas. [73]
Biscaia também propõe que vigilância de carros em locais públicos seja tipificada como modalidade de extorsão indireta. Para isso, pretende acrescentar ao Código Penal o artigo 160-A, que figuraria a seguinte redação:
Art.160- A Solicitar ou exigir, para si ou para terceiro, a qualquer título, dinheiro ou qualquer vantagem, sem autorização legal ou regulamentar, a pretexto de explorar a permissão de estacionamento de veículo alheio em via pública:
Pena – detenção, de 1 a 3 anos, e multa.
Atualmente (leia-se: agosto de 2009) o projeto está em tramitação no congresso e aguarda parecer a ser proferido pelo relator da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, o Deputado João Campos (PSDB-GO). Antes de seguir para votação no plenário, a proposta deve passar ainda pela Comissão de Constituição e Justiça.
3.1 – Argumentos pela aprovação do PL 4501/08
Em defesa da aprovação desta recente proposta pela criminalização da conduta dos guardadores clandestinos podemos invocar todos os argumentos expostos no presente artigo, tais como existência de lesão efetiva a bens jurídicos relevantes, o fracasso das outras formas de intervenção menos gravosas e o merecimento desta tutela penal diante da criminologia.
Para somar os argumentos apresentados e para que não restem dúvidas quanto à viabilidade desta necessária criminalização, passa-se a analisar o pretexto utilizado pelo relator Marcelo Ortiz para rejeitar a proposição anterior de autoria de Neuton Lima. Com isso, pretende-se demonstrar que os argumentos apresentados anteriormente não são aptos a obstar o sucesso deste novo projeto, de autoria do Deputado Antônio Biscaia.
No que tange a juridicidade, assim afirmou o relator:
A proposta se vale de núcleos verbais incompatíveis com a tipificação da extorsão, como ‘receber’ ou ‘aceitar’.
Receber ou aceitar dinheiro ou outra vantagem econômica como modalidade de pagamento pela vigilância de automóveis em estacionamento não se coaduna com a conduta própria do crime de extorsão...
Assim, a nosso, ver é injurídico o Projeto, por estar em desacordo com a sistemática penal vigente em nosso ordenamento jurídico.
De fato o PL 2953/04 pecou ao apontar um rol amplo de ações com caracterizadoras do delito a ser tipificado. Segundo a proposta, o crime teria como ação incriminada exigir (forçar,coagir), solicitar (requerer,requisitar), receber (ser-lhe enviado) e aceitar (admitir, anuir) a promessa de receber dinheiro ou qualquer outro vantagem econômica. [74]
Esta crítica foi superada pelo PL 4501/08, que não contempla os núcleos verbais alvos da objeção (receber e aceitar), prevendo apenas as condutas de exigir e solicitar. Portanto, quanto à técnica legislativa, não há razões que possam ensejar a rejeição do PL 4501/08.
No que se refere ao mérito do projeto, tal foi a argumentação do relator:
Quanto ao mérito, a proposição não merece prosperar. A busca de novas tipificações não se tem revelado meio eficaz de combate ao crime.
Agravar penas, criminalizar novas condutas, retirar benefícios dos condenados, todas estas manobras legislativas não têm sido eficazes como prevenção dos delitos.
A maior eficiência da Justiça, a celeridade processual e a efetividade da punição são aspectos muito mais importantes, que estão a merecer atenção do legislador.
Não se nega que, conforme expressa Francisco Assis de Toledo, o delito é um "fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídico-penal." [75] Mas o fato de o direito penal não ser a resposta definitiva para o crime não o impede de desempenhar um importante papel no combate a delinqüência. O próprio Assis Toledo afirma ser este ramo do direito "um instrumento eficaz na prevenção do crime." [76]
A ação do legislador, no momento da cominação legal abstrata da pena, funciona como prevenção geral a pratica de novos delitos, seja de forma negativa, através da intimidação sobre a generalidade das pessoas, atemorizando os possíveis infratores em potencial; seja de forma positiva, contribuindo para o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Quando o relator afirma que o agravamento de penas e a diminuição de benefícios dos condenados não são uma solução para a questão da violência, ele está com a razão. Como bem observa Luiz Flávio Gomes, o infrator valora mais as conseqüências próximas e imediatas de sua conduta - risco de ser preso - que as finais e mediatas - gravidade da pena cominada. [77]
Entretanto, quando o relator assevera que a criminalização de uma forma de delinqüência não é um mecanismo importante a ser usado contra a conduta que se pretende combater, trata-se de um verdadeiro disparate. Como pode a força policial mostrar eficiência no enfrentamento de uma atividade que sequer está tipificada?
Pela afirmativa de Luiz Flávio Gomes acima citada observa-se que deve haver ao menos a possibilidade de o infrator ser preso, tendo assim o legislativo um importante papel preventivo.
Dessa forma, para inibir uma atuação ilícita deve haver ao menos uma correta tipificação penal, somada a uma atuação eficaz da força policial e do poder judiciário, de forma que o infrator venha ao menos cogitar a possibilidade de sofrer alguma sansão relevante.
O relator declara ainda que a maior eficiência da justiça e a efetividade da punição são mais importes e merecem maior atenção do legislador que a criminalização. Porém, como pode haver efetividade da punição de uma conduta que em si não constitui nenhum delito previsto na legislação vigente?
Atualmente a atividade dos flanelinhas é enfrentada de forma variada, ora sendo considerada crime, ora simples contravenção, mas na maioria das vezes encarada como um ato meramente imoral. Isso enfraquece tanto o poder judiciário quanto os mecanismos executivos de controle, o que pode ser resolvido da forma apontada por Cesare Beccaria: "em um povo forte e valoroso, a incerteza das leis é constrangida finalmente a substituir-se por uma legislação exata" [78].
Neste sentido, este renomado penalista ainda observa:
Uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência...Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes. [79]
Esta primorosa afirmativa denota a incontestável necessidade da atuação inovadora do legislador penal para reprimir essa atividade que atenta contra a liberdade individual, o patrimônio, a ordem pública e o bem estar social, e que até o momento não tem recebido a devida atenção dos órgãos competentes.
A urgência desta lei específica guarda relação com princípio da legalidade, mais precisamente com o sub-princípio da taxatividade (nullum crimen, nulla poena sine lege certa), que constitui uma comando dirigido ao legislador para redigir a disposição legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico [80]. Sobre este a finalidade deste princípio e sua relação com a tipificação de novas condutas, é oportuna a lição de Juarez Tavares:
Considerando que a função primeira do direito penal é a de delimitar as áreas do justo e do injusto, mediante um procedimento ao mesmo tempo substancial e informativo, a exata descrição dos elementos que compõem a conduta criminosa serve, primeiramente, ao propósito de sua materialização, quer dizer, sua condição espaço-temporal; depois, como instrumento de comunicação entre o Estado e os cidadãos, pelo qual se assinalam as zonas do proibido e do permitido; por fim, de regulação sistemática [81]
Logo, deve o legislador atuar de forma que os dispositivos penais sejam exatos, impedindo que um comportamento seja encarado por vezes como crime e por outras com um ato desprovido de qualquer ilicitude. [82]
Sobre esse papel do legislativo, vale citar o ensinamento de Eduardo Bittar:
O Poder Legislativo é mesmo o coração do Estado, para Rousseau, enquanto que o Poder Executivo é-lhe o cérebro; se o cérebro se paralisa e o coração funciona, ainda assim há vida, mas se o coração cessa suas funções, não há mais vida. [83]
Assim, o desempenho do poder executivo na promoção do bem estar social depende diretamente do legislativo. Ora, sabe-se que no Brasil o poder executivo muitas vezes tem uma atuação caquética, se envolvendo constantemente em escândalos de corrupção. Se, além de uma aplicação deficitária das leis, estas sequer forem criadas, o colapso de todo o sistema inevitavelmente será instaurado.
Não se propõe aqui uma "inflação legislativa", expressão empregada por Francesco Carnelutti ao comentar o exagerado aumento do número de leis penais. [84] A atuação desmedida do legislador é, de fato, prejudicial. Entretanto, não se pode ignorar a existência de casos em que se torna imprescindível uma atuação inovadora do Direito Penal.
Essa necessidade se dá em decorrência das constantes e significativas transformações sociais, cujos impactos muitas vezes se traduzem em nocivas conseqüências a toda coletividade. Não se pode negar que a dinâmica da vida impulsiona a dinâmica normativa. Se uma conduta, até então não tipificada, torna-se altamente reprovada pela população, atinge frontalmente bens jurídicos relevantes e, por conseqüência, atenta contra paz social, é inegável a urgência da atuação legislativa. Mesmo que essa criminalização não seja a solução categórica para o problema, é incontestável que a mesma desempenha um papel vital em sua repressão.
É justamente o que se observa em relação à atividade dos flanelinhas. O problema, que parecia inofensivo no início, tem tomado grandes proporções e se tornado uma questão de segurança pública. Diante disso, o cidadão, que cotidianamente vê seu patrimônio, liberdade individual e integridade física ameaçados pelos guardadores irregulares de veículos, muitas vezes tem a sensação de não ter a quem recorrer, de não ter meios legais para proteger-se de seu algoz. Essa realidade demanda uma correta tipificação da atividade, de forma que Direito Penal venha cumprir sua função precípua de preservar as condições essenciais a uma pacífica convivência dos indivíduos. [85]