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A necessária criminalização da conduta dos guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas)

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10/08/2009 às 00:00
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SUMÁRIO: Introdução. 1. A garantia de um Direito Penal Mínimo versus a necessária da criminalização da conduta dos flanelinhas. 1.1. Caráter fragmentário do Direito Penal. 1.1.2. Bens Jurídicos atingidos pela conduta dos flanelinhas. 1.2. Caráter subsidiário do direito Penal. 1.2.1 O fracasso dos sistemas de controle de flanelinhas implantados nas cidades brasileiras. 2. A criminalização da conduta dos flanelinhas sob o prisma da criminologia. 3. Projetos de lei. 3.1. Argumentos pela aprovação do PL 4501/08. Considerações finais. Bibliografia


INTRODUÇÃO

"Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar..."

Esta célebre cantiga popular fala de alguém que sonha em ser proprietário de uma rua para que possa fazer dela o que bem entender (ladrilhar com pedrinhas de brilhantes, por exemplo). Todavia, sabemos que esta pretensão é juridicamente impossível no ordenamento pátrio, que define as ruas como bens públicos de uso comum do povo [01], jamais podendo ser apropriadas por particulares ou até mesmo usucapidas.

Entretanto, alguns personagens da sociedade atual parecem querer concretizar o ideal pregado naquela antiga canção. São os guardadores de carros clandestinos, popularmente conhecidos como flanelinhas, que literalmente se apoderam das vias públicas e passam a tratá-las como propriedade privada.

Analisando o fenômeno por esse lado pode até parece que se trata de algo engraçado, mas a realidade tem revelado um cenário estarrecedor: ameaças e intimidação de motoristas, extorsão, furtos e roubos, disputas violentas por território... estes são apenas alguns dentre os muitos atos abomináveis praticados por flanelinhas que constantemente são noticiados pela mídia.

Os aspectos jurídicos da conduta já foram minuciosamente abordados em dois artigos anteriores (aos quais remetemos o leitor para melhor compreensão do problema): o primeiro [02] apontou os vícios da regulamentação da atividade através de uma decrépita lei federal e expôs os reflexos perniciosos de sua prática sobre todo o meio social em que está inserida. O artigo seguinte [03] demonstrou a relação existente entre a conduta dos flanelinhas e os tipos previstos na legislação penal vigente, demonstrando que, a partir da análise do caso concreto, é possível o enquadramento da conduta em variados delitos, tais como os crimes de extorsão, constrangimento ilegal, estelionato, usurpação de função pública e a contravenção de exercício ilegal de profissão ou atividade. Entretanto, ficou evidenciado que esta amplitude de possibilidades teve implicações práticas negativas, visto que a ausência de um consenso quanto à forma devida de repressão têm favorecido a impunidade e o conseqüente descrédito do judiciário e dos órgãos estatais encarregados de coibir delitos. Em outras palavras, a falta de uma tipificação específica tem se mostrado um grande óbice, tanto para a atuação do magistrado quanto para desempenho efetivo das atribuições constitucionalmente traçadas para os órgão executivos de repressão, que na maior parte das vezes se mantêm inertes diante de tão odiosa prática delitiva.

Em função disso, e em virtude da imperiosa de necessidade de certeza das leis, principalmente em se tratando de matéria penal, abordaremos no presente artigo a necessária e urgente criação de uma tipificação específica capaz de coibir a ação dos flanelinhas de maneira eficiente e adequada.


1- A GARANTIA DE UM DIREITO PENAL MÍNIMO VERSUS A necessária da criminalização da conduta dos flanelinhas

Pode parecer um contra-senso iniciar um artigo que defende a criminalização de uma conduta abordando o princípio da intervenção mínima, mas o que se pretende é justamente provar que a tipificação da atividade dos guardadores irregulares obedece aos mais variados limites impostos a tutela penal em um Estado de Democrático de Direito, não se tratando, portanto, de uma medida austera e imoderada, típica de um Direito Penal máximo, de um Direito Penal do inimigo.

Sendo o Direito Penal a forma mais drástica de intervenção estatal na liberdade dos indivíduos, em respeito às garantias constitucionalmente asseguradas, sua interferência no seio social deve ocorrer apenas para tutela dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa.

Essa intervenção apenas é legítima em situações extraordinárias, ou seja, como a ultima ratio, a última instância formal de controle da sociedade. Logo, sua ingerência na vida do cidadão deve ser mínima, garantia essa erigida à categoria de princípio. Este é assim definido por Cesar Roberto Bitencouert:

O Princípio da Intervenção Mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconiza que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. [...] Por isso, o Direito Penal deve ser ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramo do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo, e da própria sociedade. [04]

O aludido princípio aparece então como uma barreira a criminalização desenfreada de quaisquer comportamentos que lesionem bens jurídicos, de forma que a atuação legislativa em matéria penal seja sempre limitada.

A jurista Alice Bianchini afirma que quando se tratam de condutas com elevado grau de reprovabilidade e danosidade social é comum o entendimento de que só um meio particularmente vigoroso, no caso a intervenção penal, poderá, a contento, proteger a sociedade [05]. Entretanto, embora o direito penal desempenhe esse imprescindível papel na promoção da paz social, sua atuação encontra sólidos limites no principio da intervenção mínima, de forma que a performance do legislador na tipificação de condutas deve ser restringida levando-se em consideração um importante binômio:

Somente podem ser ingeridas à categoria de crime, condutas que, efetivamente, obstruam o satisfatório conviver da sociedade. Desta forma, o princípio da intervenção mínima pode significar tanto a abstenção do direito penal de intervir em certas situações (seja em função do bem jurídico atingido, seja pela maneira com que veio a ser atacado) – o que lhe dá o traço fragmentário – como também a sua utilização em termos de último argumento. Neste caso o sistema punitivo é chamado a interceder de forma subsidiária... O princípio da intervenção mínima, portanto, tem seu núcleo a partir da verificação do grau do binômio subsidiariedade / fragmentariedade. [06]

Dessa forma, afirma a doutrinadora que determinada conduta só irá merecer a tutela penal quando sua criminalização mostrar-se consentânea com as duas características intrínsecas de um direito penal mínimo: a fragmentariedade e a subsidiariedade.

Nilo batista promove a mesma relação, entendendo que a intervenção legislativa em matéria penal se dará unicamente quando for demonstrada a ineficiência dos demais ramos do direito em punir com a veemência necessária a conduta (subsidiariedade) e quando restar provado que o ilícito violou valores cuja alçada de atribuição para punir é do direito penal (fragmentariedade). [07] Com arguta visão e notável poder de síntese, Francisco Assis Toledo também assevera que a limitação ao desiderato legislativo em matéria penal dá-se através das duas formas mencionadas: "Fica, pois, esclarecido o caráter limitado do direito penal, sob duplo aspecto: primeiro, o da subsidiariedade de sua proteção de bens jurídicos; segundo, o dever estar condicionada sua intervenção à importância ou gravidade da lesão, real ou potencial.." [08]

Assim, considerando os argumentos expostos, para que a cobrança pelo serviço de vigilância de veículos em locais públicos venha ser considerada como crime é necessário analisar se essa tipificação mostra-se consentânea com a garantia de um direito penal mínimo e com seu caráter subsidiário e fragmentário.

Passa-se agora a analisar essas duas características apontadas pela respeitável doutrina, comparando-as com a perspectiva da elaboração da tipificação da cobrança pelas vagas de estacionamento em vias públicas.

1.1 – CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL

Da observação do princípio da intervenção mínima conclui-se que o direito penal deve ocupar-se apenas de parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica, o que faz com ele guarde sempre um nítido traço fragmentário.

Destarte, o princípio da fragmentariedade seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção constitui uma orientação dirigida ao legislador nas escolhas das condutas que devem ser tuteladas penalmente, não cabendo a ele criminalizar todas as ações capazes de vulnerar bens jurídicos, mas apenas aquelas mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes. Essa característica levou Luiz Regis Prado a afirmar que o bem jurídico revela-se como marco de legitimidade da legislação penal [09]. Sobre o tema, o ilustre penalista Francisco Assis Toledo assevera que "bens jurídicos são valores éticos sociais que o Direito para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas". [10]

Esse caráter fragmentário guarda ainda relação com outros dois importantes princípios do direito penal: o princípio da ofensividade, segundo o qual o legislador deve adotar, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha conteúdo verdadeiramente ofensivo a um bem jurídico penalmente protegido [11] ; e o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, segundo o qual não compete ao Direito penal tutelar valores puramente morais, éticos ou religiosos. [12]

Ao abordar essa questão, Alice Bianchini relaciona o merecimento da tutela penal com a dignidade do bem jurídico e a gravosidade da conduta que lhe seja substancialmente ofensiva [13]. Essa análise permite a autora concluir que "deve-se verificar se a conduta que se está criminalizando (e, por conseqüência, protegendo), efetivamente, é danosa para a sociedade – tanto que justifique a sua inscrição em um tipo penal". [14]

Paulo de Souza Queiroz compara o Direito Penal a uma UTI de um grande hospital, só devendo ser acionado quando realmente a gravidade da situação assim o justifique. [15] Embora pela afirmação acima possa parece que esse caráter fragmentário coloque os indivíduos probos em situação de desamparo, como doentes sem médicos, na verdade essa característica configura verdadeiro instrumento de proteção do cidadão. È o que observa afirma Maura Roberti: Sendo o Direito Penal a forma mais drástica de intervenção na vida social, seu caráter fragmentário, antes de representar um defeito, se apresenta como uma virtude, na medida em que impõe o limite imprescindível a um totalitarismo da proteção estatal, este sim prejudicial dentro de um Estado Democrático de Direito. Assim é que a natureza da fragmentariedade do Direito Penal trata de um limite material do ius puniendi, de natureza político-criminal, que tem a sua origem no princípio da intervenção mínima. [16]

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Isto posto, considerando que o Direito Penal se preocupa apenas com fragmentos do amplo rol de bens juridicamente tuteláveis, deve o legislador erigir a categoria de crime apenas aqueles casos em que há uma ameaça real a esses bens, não disciplinando condutas de menor relevância.

Dessa forma, para tipificação da conduta dos flanelinhas, deve-se antes verificar se esta é uma atividade "efetivamente, é danosa para a sociedade – tanto que justifique a sua inscrição em um tipo penal" [17]. É, portanto, indispensável a constatação de que a ação por ele realizada venha a atingir "bens jurídicos considerados essenciais à existência do indivíduo em sociedade" [18].

1.1.2. Bens Jurídicos atingidos pela conduta dos flanelinhas

Primeiramente deve-se destacar que a conduta do guardador clandestino é pluriofensiva, uma vez que lesa ou expõe a perigo de dano mais de um bem jurídico.

A primeira vista, nota-se que a atividade é lesiva ao patrimônio, pois motorista é constrangido a pagar para estacionar em uma vaga que, sendo pública, deveria ser-lhe garantida sem qualquer contraprestação. É motivo de revolta para um trabalhador honesto ter que despender de parte seu dinheiro para um meliante cuja renda mensal pode ser até maior que a sua.

O valores exigidos tem aumentado na proporção em que cresce o temor da população em relação a eles, visto ser cada vez mais comum os relatos de crimes praticados contra aqueles que resistem a cobrança. Trata-se é um ciclo vicioso, pois à medida que a atividade tem se tornado mais rentável, mais pessoas de suspeita índole tem se interessado em praticá-la.

O patrimônio é também atingido quando o guardador arranha veículo, fura o pneu, arranca peças e acessórios ou ainda atua como facilitador no furto do automóvel. Assim como a pena no direito penal, tais práticas tem função retributiva (sansão a motoristas que negaram o pagamento exigido) e preventiva (inibir que outros condutores venham a resistir a cobrança).

Outro bem jurídico atingido é a liberdade individual, compreendendo a liberdade psíquica (livre formação da vontade) e liberdade física (liberdade de movimento) [19]. Ao motorista, como qualquer outro ser humano, é reconhecido o direito fundamental de fazer tudo aquilo que a lei não proíba expressamente, não podendo ser compelido a fazer senão o imposto por lei (art. 5°, inc. II, CF/88).

Todo cidadão tem o direito de utilizar-se do espaço público, principalmente tratando-se de bens públicos de uso comum do povo, como ruas e praças (art. 99, inc I, CC/02). Ao obstaculizar o exercício desse direito, os flanelinhas impedem que o condutor faça algo que a lei permite e, dessa forma, atenta contra sua liberdade.

Considerando que no mundo moderno é indispensável a utilização de automóveis para locomoção, qualquer conduta que perturbe a circulação dos motoristas representa também um embaraço ao direito de ir e vir (jus ambulandi).

No modus operandi da atividade ainda há outra afronta à liberdade individual: o guardador intimida o motorista através da forma ameaçadora com que faz sua cobrança. Essa ameaça, mesmo que velada, mostra-se eficaz em aterrar o sujeito passivo (motorista), atentando contra sua tranqüilidade, sua paz de espírito.

Destarte, tem-se a produção de efeitos negativos na livre capacidade autodeterminação da vontade do condutor. Os guardadores geram um clima de intranqüilidade e se aproveitam do medo da violência. Isto é inadmissível nos dias atuais, cujos índices de criminalidade e banalização da vida por si só já são capazes atemorizar demasiadamente o cidadão, que vive em constante estado de estarrecimento.

A atividade constitui ainda um afronta a administração pública, uma vez que a cobrança pelo estacionamento em locais públicos compete, nos termos do CTB, aos órgãos municipais de trânsito, o que lhe confere e nítido caráter de serviço público [20]. Além disso, ao exigir uma contraprestação por um serviço de vigilância imposto ao cidadão, está o flanelinha cobrando por um direito constitucionalmente garantido ao indivíduo e sua propriedade, a segurança pública (art.144, caput, CF/88) [21], cujo dever de zelar cabe aos órgãos do estatais competentes, e nesse caso mais precisamente à policia militar, cuja tarefa constitucionalmente traçada é a de "polícia ostensiva e a preservação da ordem pública"(art.144, par. 5°, CF/88).

Existem ainda outras ações que, embora praticadas de forma secundária, costumeiramente aparecem relacionadas aos guardadores irregulares de veículos, evidenciando assim a necessidade de sua repressão. São exemplos: agressões a motoristas (violando assim sua integridade física e psíquica), disputas violentas entre si pela demarcação de pontos, corrupção ativa perante policiais e fiscais municipais, dentre outros.

Pelo exposto é também possível observar que a conduta atinge frontalmente a paz pública, na medida em que o guardador se aproveita do medo do cidadão em relação à violência, o que contribui para o incremento desse clima de intranqüilidade e promove a uma ainda maior degradação do ambiente urbano.

Notadamente, trata-se de uma atividade que representa a impotência do poder público perante a marginalidade, sua ineficiência em manter a ordem e coibir práticas que atentam contra a paz social. Por conseguinte, outro bem tutelado através da criação do novo tipo seria o sentimento de paz jurídica. E isso porque a conduta gera no espírito do indivíduo insegurança quanto à proteção dispensada pelo Direito. O cidadão tem a impressão de se viver em uma terra sem lei, ou melhor, em uma terra de muitas leis, porém sem respeito a elas. Deve o Estado tutelar penalmente os importantes bens jurídicos atingidos pela atividade, sob pena de um irremediável descrédito.

Portanto, a criminalização da conduta do flanelinha mostra-se consentânea com o caráter fragmentário do direito penal pois mesmo quando a atividade não atinge diretamente um bem jurídico relevante, expõe esse bem a um perigo concreto, real e efetivo de lesão.

1.2 – CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL

Seguindo a análise intervenção mínima, tem-se que o direito penal deve ser visto como remédio último, cuja presença só se legitima quando os demais ramos do direito se mostram ineficazes, o que lhe garante seu caráter subsidiário. Sobre essa característica, assim observa a Alice Bianchini:

A criminalização de determinada conduta que ofenda bens ou valores fundamentais de forma grave ou que os tenha exposto a perigo idôneo só se justifica se a controvérsia não pôde ser resolvida por outros meios de controle social, seja formal ou informal, menos onerosos (princípio da necessidade), o que caracteriza o direito penal como sendo subsidiário. [22]

Dessa forma, além de verificar se a conduta a que se pretende criminalizar é de fato ofensiva a bens jurídicos relevante (conforme se verificou no tópico anterior), deve o legislador penal observar se em relação a estes bens se mostraram insuficientes as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico em outras áreas extrapenais.

A esse respeito é também oportuna a lição de Claus Roxin:

A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. [23]

Assim sendo, o Direito Penal deverá sempre ser visto como suplementar a outros ramos do ordenamento jurídico, os quais são primeiramente preparados para solucionar lides e desavenças sociais, sem maiores traumas e evitando sempre a sanção penal. Estabelece, portanto, uma proteção acessória aos bens jurídicos, proteção esta que se atem apenas àquelas condutas particularmente danosas, cuja repressão não se possa, efetivamente, confiar a instâncias mais adequadas e socialmente menos onerosas de controle social. [24]

Esse traço subsidiário implica, portanto, que a intervenção repressiva no círculo jurídico dos cidadãos só tenha sentido como imperativo de necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como único e último recurso para proteção do bem jurídico, cedendo a ciência criminal a tutela imediata dos valores primordiais da convivência social e atuando somente em último caso. [25] Logo, o direito penal deve ser a visto como última ratio, como a solução derradeira para o problema que se pretende enfrentar.

Diante disso, conclui-se que a atividade dos flanelinhas, ainda que lesione ou exponha a perigo de lesão importantes bens jurídicos tutelados pelo Estado, apenas poderá ser erigida a categoria de crime se ficar constatada a ineficiência dos demais ramos do direito em reprimir com a veemência necessária a tão intolerável conduta. É o que se buscará demonstrar nas próximas linhas.

1.2.1 O fracasso dos sistemas de controle de flanelinhas implantados nas cidades brasileiras

No combate a ação dos guardadores clandestinos de veículos, todos as alternativas extrapenais empregadas até o momento não obtiveram êxito. Conforme já foi evidenciado de forma minuciosa [26], a legislação pátria contempla uma regulação para profissão através de uma lei federal, porém, após mais de trinta anos de vigência desta normatização, ela ainda está longe de alcançar o seu objetivo de conter o loteamento das ruas e os abusos costumeiramente praticados. Estes problemas apenas aumentaram desde sua edição.

Além de ignorada e de ser ineficaz na repressão dos delitos decorrentes da atividade, a referida regulamentação apresenta série de irregularidades, sendo patentemente contrária ao ordenamento jurídico como um todo. Em síntese, não pode uma lei legitimar a apropriação de um espaço público e a cobrança imposta por particular pela prestação de um serviço que legal e constitucionalmente é atribuído aos órgãos do Estado. [27]

Não obstante o insucesso desta legislação, algumas cidades têm buscado, sem sucesso, soluções administrativas para amenizar os impactos nocivos da atividade sobre seus cidadãos. São exemplos atuais as cidades de Porto alegre (MS) e Brasília (DF) cujos projetos de regularização foram apresentados à população como uma panacéia para a insegurança urbana gerada pela atuação dos flanelinhas. Todavia, tais ações pecam por ignorar que vários municípios já se empenharam neste mesmo propósito e em todos os casos ficou evidenciado que esta é uma questão mais afeta ao direito penal que à seara administrativa.

A primeira cidade a tentar regulamentar a atividade foi Ribeirão Preto (SP) através da Lei Municipal 8341/99, que permitiu a celebração de um convênio entre a prefeitura e um sindicato de guardadores de veículos. Teoricamente esta lei faria diminuir os ilícitos habitualmente praticados pelos guardadores informais através do controle municipal, mas na prática, verificou-se a impossibilidade de uma efetiva fiscalização já que a questão ultrapassava o âmbito administrativo, sendo um verdadeiro caso de polícia. O convênio foi extinto e atualmente a cidade está entre aquelas que mais enfrenta problemas com flanelinhas na país.

A despeito deste fracasso, dois deputados federais apresentaram projetos de lei que pretendiam expandir a experiência de Ribeirão Preto para todo país, a saber, o PL 6958/02, de autoria do Deputado Lamartine Posella (PMDB/SP), e posteriormente o PL 2725/03, de autoria do Deputado Cláudio Magrão (PPS-SP). Por óbvio, ambas propostas foram rejeitadas, ficando inclusive demonstrado pelo relator do último projeto que a lei editada em Ribeirão preto é flagrantemente inconstitucional porque "contraria o art. 30, inciso I, da Constituição Federal e o princípio federativo". Na condição de relator, o deputado Eudes Xavier (PT/CE) afirmou ainda que "deve ser lembrado, outrossim, que a segurança dos cidadãos deve ser garantida pelo Estado, mediante a atuação de servidores públicos e não de trabalhadores autônomos."

Em Maringá, cidade paranaense onde existem mais de 200 mil veículos, a prefeitura também experimentou um projeto de regularização, com oferta de cursos de qualificação e cadastramento, mas a experiência novamente foi fracasso. Os flanelinhas foram convocados a devolver os coletes de identificação após a constatação de que os abusos continuavam a ser cometidos e continuariam independentemente de qualquer intervenção do poder municipal. Percebeu-se também que a presença dos guardadores estava sempre atrelada a alguma forma de criminalidade.

Dentre os muitos crimes ocorridos, um chamou atenção: uma motorista se recusou a dar gorjeta a um flanelinha e teve o vidro do carro quebrado por uma pedra lançada pelo guardador. Os estilhaços feriram seu filho de 8 meses, que estava no banco traseiro, na semana anterior. [28] Na semana anterior um guardador teria batido com um facão no carro de um motorista que tinha se negado a lhe pagar; outro foi autuado por desacatar um policial ao reagir à abordagem dizendo "estou pedindo dinheiro sim e vou continuar, pois sou cadastrado na prefeitura, seu palhaço". [29] Além destes casos, no ano anterior um guardador foi assassinado em uma disputa por território entre os próprios flanelinhas

Everaldo Belo Moreno, presidente do Conselho de Segurança da cidade, que também organizou o projeto, reconheceu seu insucesso e foi mais além, afirmando: "Vamos iniciar também uma campanha de conscientização, pedindo à população para que não dê dinheiro a eles, pois o motorista não precisa pagar para estacionar o carro em um local público específico para isso... Ajudá-lo significa, muitas vezes, abastecer a venda ilegal de entorpecentes." [30]

Em São José do Vale do Rio Preto (SP) foi editada a Lei Municipal n° 7246/98com o fim de regulamentar a atividade dos guardadores de veículos "em dias de aglomeração pública", atividade esta definida como "biscate" pela própria lei. Posteriormente essa lei acabou sendo declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou procedente uma ADIN [31] proposta pelo Prefeito da cidade. Ficou evidenciado que esse tipo de regulamentação, além de ineficiente, é inconstitucional.

Em Volta Redonda (RJ) constatou-se a ineficácia da instalação de paquímetros com forma de inibir a ação dos flanelinhas [32]. Isto porque os agentes municipais limitavam-se a verificar se o motorista tinha em seu carro um tíquete referente ao paquímetro mas, alegando ser uma questão de segurança pública, declaravam-se incompetentes para reprimir a ação dos guardadores que continuavam a coagir os condutores apesar da instalação do mecanismo. Os motoristas muitas vezes acabavam sofrendo uma dupla cobrança pela utilização da mesma vaga: pagavam ao paquímetro (para evitar a multa) e ao flanelinha(para evitar danos no veículo).

A Prefeitura da cidade de São Paulo tentou camuflar o problema dos flanelinhas, ou melhor, dar a ele uma aparência de legalidade regulando a implantação de um sistema de vallets, copiando o modelo americano de guarda de veículos. Esqueceu, entretanto, que este sistema foi projetado para uma realidade diversa, já que os EUA não têm os mesmos problemas verificados no Brasil. [33]

Na verdade, não se pretendeu solucionar a questão dos flanelinhas, cuja área de atuação se dá em locais públicos, mas apenas legitimar a sua atuação em determinados locais privados, tais como bares e restaurantes (o município ainda se mantém apático diante dos abusos praticados nos demais lugares). Contudo, nem mesmo aquele restrito objetivo foi atingido. Segundo Renato Balbin, doutor em mobilidade urbana, esses manobristas paulistas não passam de "flanelinhas de terno e gravata" [34]. Teoricamente os vallets são proibido de estacionar os veículos nas vias públicas, devem ter seguro para os carros e usar as vagas de alguma garagem legalizada. Todavia, conforme observou o advogado Ciro Vidal, não passam de "flanelinhas de luxo", já que muitos também estacionam os carros em vias públicas. [35] O próprio diretor jurídico da associação das empresas de vallets, Syrius Lotti Jr, adimitiu o insucesso do sistema em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo: "nada mudou e a bagunça continua... Você sabe, eu sei, todo mundo sabe que há uma penca de vallets que deixam os carros nas ruas" [36].

A Prefeitura de São Paulo regulamentou o serviço com a justificativa de facilitar a fiscalização do setor. Porém, um levantamento feito no final de 2008 constatou que apenas 11 das mais de 600 empresas que prestam esse serviço estavam regularizadas [37]. Em suma, a capital paulista agora tem dois problemas com que se preocupar: os flanelinhas e vallets ilegais.

O caso mais recente de um equivocado tratamento municipal para a conduta está sendo experimentado em Brasília. A edição do Decreto nº 30.522 em 3 julho de 2009, que prevê o cadastramento dos flanelinhas, foi manchete em vários jornais do país e foi anunciada com otimismo pelos seus idealizadores. Entretanto o neonato regulamento está fadado ao fracasso, já que ele exige dos candidatos a guardadores oficiais a ausência de antecedes criminais. [38]

Ora, um levantamento feito pela polícia civil no ano passado constatou que 80% dos guardadores que atuam no Distrito Federal possuem passagem pela polícia por algum tipo de delito. [39] Assim, ainda que alguns flanelinhas venham a ter sua situação regularizada, a maioria permanecerá na ilegalidade por possuir máculas pretéritas em sua ficha criminal e continuarão a cometer toda sorte de abusos. [40]

A mesma crítica vale para o sistema implantado em Porto Alegre no mesmo mês. A cidade que também insiste em repetir o famigerado cadastramento de guardadores pela prefeitura, mas neste caso o poder municipal optou por um eufemismo para se referir aos flanelinhas, os quais preferiu chamar de "protetores de patrimônio". A instituição desta denominação diversa revela uma verdadeira hipocrisia: é um absurdo tentar colocar fita colorida num embrulho de marginalidade e violência!

Segundo o jornal O Globo, o objetivo da implantação do sistema "é acabar com a guerra entre guardadores a extorsão principalmente em eventos artísticos e esportivos na capital gaúcha" [41]. Nota-se claramente que o município busca solucionar problemas com violência e extorsão com medidas administrativas, quando na verdade é obvio que se tratam de questões que dependem de uma intervenção penal. Isto que ficou claro já no primeiro dia de funcionamento do novo sistema. Sua estréia ocorreu no entorno do estádio Beira-Rio, onde acontecia a final da Copa do Brasil, entre Internacional e Corinthians. Verificou-se que os guardadores clandestinos continuavam a coagir os motoristas independentemente da presença dos "protetores de patrimônio" e de uma suposta fiscalização. [42]

Os municípios citados são apenas alguns dentre os muitos que tentaram, sem êxito, coibir esta tormentosa atuação [43]. Mas o maior exemplo de que outros ramos do direito são incapazes em solucionar o problema dos guardadores clandestinos encontra-se na cidade do Rio de Janeiro.

Na capital fluminense, vários sistemas já foram testados ("vaga certa", "período único", "rio rotativo", etc.) sem que nenhum resolvesse ou ao menos amenizasse a questão, que atualmente é umas das principais reclamações dos cariocas. Já se tentou colocar a venda de talões a cargo de um sindicato de guardadores, sem êxito. Implanto-se um modelo em que os motoristas podiam comprar tíquetes em bancas de jornais, igualmente sem sucesso. Em 2001 a prefeitura iniciou o sistema "auto-operativo", no qual o negócio de compra e venda de talões de estacionamento foi colocado a cargo de pessoas físicas e de um sindicato (Singaerj), cooperativas e associações, o que acirrou ainda mais disputa pelas vagas [44]. Neste caso, o fracasso do sistema "auto operativo" teve repercussão nacional após reportagem do programa Fantástico, da T.V. Globo.

O programa, exibido no dia 6 de abril de 2008, denunciou o "mercado negro da vaga certa", uma verdadeira máfia dos flanelinhas, e revelou, através de câmeras escondidas, o esquema de aluguel e venda de pontos de vias públicas para se trabalhar como guardador, o envolvimento de policiais no comércio e monopólio de vagas, dentre outras irregularidades. [45]

Essas e outras denúncias levaram a prefeitura a realizar uma concorrência para que uma empresa privada assumisse o gerenciamento dos estacionamentos públicos. A licitação foi vencida pela Empresa Brasileira de Estacionamentos Ltda. (Embrapark), mas após três dias de confusão nas ruas pela violenta resistência dos flanelinhas [46], o Tribunal de Contas do município decidiu suspender o contrato por suspeitas irregularidades no processo licitatório (quando na verdade apenas se queria amenizar o caos instaurado pela resistência dos guardadores clandestinos).

Recém empossado como prefeito, Eduardo Paes mostrou-se preocupado com a questão. Tanto que, após poucos dias do início de seu mandato, foi publicado um decreto no qual a prefeitura ditava regras para atuação dos flanelinhas, determinando seu cadastramento e estabelecendo critérios para sua atuação. [47]

Entretanto, como persistiram as denúncias de abusos e loteamento de ruas, Eduardo Paes revoltou-se contra os guardadores. Em entrevista ao jornal O Globo, declarou: "Não dá pra ficar com o modelo que temos hoje, que é de agiotas de vagas públicas, institucionalizado pela prefeitura. Queremos acabar com isso." [48]

O governo municipal então determinou a empresa Embrapark reassumisse a exploração das vagas. Contudo, esta solução (licitação para empresas privadas explorarem as vagas) também não se mostrou eficaz em conter a atuação dos flanelinhas, que continuaram a agir deliberadamente, agora hostilizado os empregados da empresa contratada. Um levantamento feito após dois meses de atuação da concessionária mostrou que "enquanto a Embrapark tem um prejuízo mensal de R$ 900.000,00 e seus funcionários abandonam, muitas vezes seus postos... quem dirige continua à mercê de flanelinhas que extorquem os motoristas." [49]

A experiência carioca deixa bem claro que o Estado deve procurar maneiras efetivas de solucionar o problema e não unir-se a ele. Vimos aqui que muitas cidades repetem as experiências que fracassaram em conter a atividade. Buscam variadas maneiras de coibir ou regulamentar a cobrança pelas vagas em locais públicos, mas de forma alguma inibem a atuação dos guardadores irregulares, que permanecem achacando os motoristas e cometendo os mais variados abusos. Indubitavelmente trata-se de uma questão de segurança pública, que não se pode vencer através da utilização de intervenções extrapenais.

Com base no exposto, percebe-se que é legitima a ação do direito penal na repressão dos flanelinhas, pois nenhum mecanismo administrativo mostrou-se capaz de solucionar o conflito. Dessa forma, pode-se concluir que a tipificação da conduta atende também ao princípio da subsidiariedade, já que "fracassam as demais formas protetoras do bem jurídico previstas em outros ramos do direito" [50].

Em suma, ainda que a atuação legislativa em matéria penal encontre variados limites, a atividade em tela é merecedora da tutela penal em virtude da existência de lesão efetiva a bens jurídicos relevantes e do fracasso das outras formas de intervenção menos gravosas.

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Sobre o autor
Oneir Vitor Oliveira Guedes

Advogado inscrito na OAB/RJ, formado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Oneir Vitor Oliveira. A necessária criminalização da conduta dos guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13272. Acesso em: 2 nov. 2024.

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