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Novo tipo de estupro e retroatividade benéfica

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1- INTRODUÇÃO

Fui publicada no dia 10 de agosto de 2009 a Lei ordinária de número 12.015/09, trazendo sem seu bojo uma séria de alterações no Código Penal, na Lei de Crimes Hediondos (lei 8.072/90) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90).

No que tange às alterações no Código Penal, temos a afetação de tipos penais relativos ao título VI, antigo capítulo que se denominava "Dos crimes contra os costumes", agora adequadamente denominado de "Dos crimes contra a dignidade sexual".

Enfim, da série de análises que podem ser feitas sobre a novel legislação, opta-se por fazer um corte no ponto que certamente trará mudanças relevantes, inclusive com a necessária revisão de um grande número de julgamentos. Trata-se da unificação dos crimes de estupro (art. 213) e de atentado violento ao pudor (art. 214).

A bem de se ver, até o advento da nova lei, tinha-se o tipo penal de estupro dispondo sobre conjunção carnal (cópula vagínica) forçada e o tipo penal de atentado violento ao pudor dispondo sobre os demais atos libidinosos forçados. Agora, tem-se a unificação dos dois tipos no artigo 213, é de se ler:

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: 

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. 

Ocorre que, na vigência dos dispositivos penais anteriores, quase sempre o poder judiciário se viu diante de casos em que o criminoso praticava o ato sexual de maneira forçada (violência ou grave ameaça) obrigando a mulher à prática da conjunção carnal conjuntamente com outros atos libidinosos. Enfim, o estupro na maioria das vezes envolvia também outra prática sexual.

Diante disto, surgiram na jurisprudência duas possíveis aplicações: a absorção do crime menos relevante ou a regra do concurso material de crimes.

Consolidou-se nos tribunais o entendimento de que os atos libidinosos considerados mais leves praticados antes da efetivação da conjunção carnal deveriam ser entendidos como espécie de antefato impunível, de forma que restavam absorvidos pelo crime principal. Assim, atos como passar as mãos no seio da mulher estuprada acabavam não sendo punidos de forma independente, já que considerados apenas "preliminares" (praeludia coiti).

Por outro lado, nos casos em que se tinha ato libidinoso não entendido como prelúdio do estupro, ou nos casos de penetração anal, em função da gravidade do deste ato, os tribunais superiores fixaram que era caso de concurso material (art. 69 do CP) entre os crimes do art. 213 e 214, aplicando-se a regra da somatória das penas. [01]

Por muitas vezes os advogados cogitaram da aplicação da continuidade delitiva, que por força do art. 71 do Código Penal remeteria a uma pena final menor, eis que vige a regra da exasperação das penas para estes casos. Melhor explicando, a norma do crime continuado indica que se deve pegar a maior pena aplicada e aumentá-la de 1/6 a 2/3, o que representa um benefício diante da regra básica de cumulação de penas.

Contudo, tal hipótese sempre foi veementemente rechaçada pelos tribunais, sob o entendimento de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor não constituíam crimes de mesma espécie, exigência do próprio art. 71 do CP. Obedece-se, portanto, ao chamado "critério da rubrica", a se interpretar que crimes de mesma espécie são os que estão sob o mesmo título.

Neste passo, o que se vê na jurisprudência brasileira há muitos anos é uma enxurrada de julgados condenando os réus no concurso material entre os crimes do art. 213 e 214, justamente porque eram tipos penas independentes.

Agora, definitivamente, tais julgados deverão ser modificados. A nova lei insere o crime de atentado violento ao pudor no tipo penal do artigo 213 do CP, unificando as condutas em uma só descrição penal.


2- O NOVO ARTIGO 213

Com a nova lei, o legislador muda a configuração descrita. Doravante, havendo condutas forçadas de conjunção carnal e outras práticas libidinosas, estar-se-á diante de condutas descritas num mesmo tipo.

A realidade mostra que a imensa maioria dos casos de crimes sexuais envolve penetração vaginal e outras condutas libidinosas contra uma mesma vítima, numa relação de tempo relativamente curta. Como já dito antes, o entendimento até hoje vigente foi de que, fora os casos de atos libidinosos leves, a punição para essas condutas era a aplicação conjunta do art. 213 e 214, somando-se as penas integralmente.

Daqui pra frente, considerando a unificação das condutas no crime de estupro, será absurdo se cogitar a aplicação de pena cumulativa nesses casos, já que se tratam de ações descritas no mesmo tipo, contra uma mesma vítima. Restam apenas duas opções: a regra do crime continuado ou do crime único.

A regra do crime continuado deve ser aplicada quando se tem a prática de mais de uma conduta de mesma espécie, em condições semelhantes de tempo, lugar e modo de execução. Enfim, quando estivermos diante de atos libidinosos forçados, numa cadeia sucessiva de condutas ao longo do tempo, será forçosa a aplicação da regra de exasperação (aumento da maior pena).

A situação de crime único, por sua vez, parece ser a mais aplicável para a maioria dos casos que se apresenta nos fóruns. Esta pressupõe que haja apenas uma conduta e, para tanto, é preciso entender qual o conceito que se tem de conduta dentro do direito penal.

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Colhendo nas sempre sábias palavras de Eugênio Raúl Zaffaroni [02], para termos uma única conduta é preciso que haja: (1) um plano comum e (2) uma unidade de sentido para a proibição, chamado de "fator normativo".

O conceito jurídico parte, portanto, de que mesmo um conjunto de movimentos pode ser considerado uma única conduta, desde que seja um resultado previamente planejado e que seja natural de um tipo penal que admite pluralidade de movimentos.

Caso contrário, se estivéssemos forçados a considerar cada movimento singular com uma conduta criminosa, cada penetração do pênis na vagina deveria ser considerado um crime, o que até instintivamente é inadmissível.

Nas palavras do professor argentino: "Com muito mais razão haverá uma unidade de conduta quando o tipo requer expressamente a pluralidade de movimentos, como acontece no estupro, em que se faz necessário a violência e conjunção carnal (art. 213 do CP). Haverá, pois, uma unidade de conduta quando se trate de tipos com pluralidade necessária de movimentos." [03]

Isto posto, estando agora incluídos todos os atos libidinosos forçados no mesmo tipo penal, sob a égide da lei 12.015/09, as condutas de conjunção carnal forçada e demais condutas de satisfação sexual podem ser consideradas uma única conduta.

Para tanto, é necessário se averiguar se há no criminoso uma intenção prévia de cometer as condutas, melhor dizendo, se há um único dolo, bem como se a ação vai se realizar em curto espaço de tempo.

O resultado disto é que, sob o prisma da nova lei, praticar penetração vaginal e penetração oral ou anal, desde que realizadas num espaço de tempo reduzido, é considerada a prática de uma única conduta criminosa, restando assim a aplicação de uma única pena, sem a exasperação do crime continuado.


3- LEI PENAL NO TEMPO E RETROATIVIDADE

A modificação do artigo 213 traz implicações importantes na seara do que se chama "direito penal no tempo". Numa investigação preliminar, obviamente se está diante de caso de novatio legis in mellius, ou seja, lei que insere no ordenamento novos dispositivos que vem a beneficiar o réu.

Nosso ordenamento jurídico albergou a regra da retroatividade das leis penais benéficas, o que pode ser conferido no art. 5º, XL, da Constituição Federal, bem como no art. 2º, parágrafo único, do CP.

Dita a regra que as novas leis penais, desde que tragam dispositivo mais favorável ao réu, devem retroagir no tempo para alcançar condutas praticadas sob a vigência da lei anterior. Nem mesmo a coisa julgada está a salvo dessa aplicação, podendo-se assim alterar condenações definitivas, a fim de se trazer situação jurídica mais branda.

Desta forma, como já demonstrado que a lei 12.015/09 tornou inviável a condenação em concurso material para as ações de conjunção carnal e outros atos libidinosos forçados, desde que perpetrados contra mesma vítima, pode-se dizer com tranqüilidade que se está diante de novo posicionamento jurídico que trará penas inferiores.

Como já exposto, ou se estará perante o crime continuado, quando o tempo de uma ação para a outra remeter à existência de condutas diversas, ou bem se estará diante de crime único, quando o lapso temporal entre as ações for reduzido e permitir a interpretação da existência de uma única conduta.

Em todo caso, diante do parâmetro de conduta anteriormente indicado, não mais se tem a somatória de duas penas dentro do limite de 06 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão, mas apenas a aplicação de uma delas com o aumento do art. 71, ou enfim a aplicação de uma única pena sem qualquer aumento.

Nada mais claro concluir que, para todos os casos em que ações humanas dentro dos moldes descritos culminaram numa condenação em concurso material dos crimes do art. 213 e 214, é de se aplicar a regra da retroatividade da lei mais benigna.

Em outros termos, a realidade nos mostra que se está diante de inúmeros casos de necessária redução das penas aplicadas para os condenados naqueles termos, por força da retroatividade da lei penal.

Sendo certo que a aplicação da nova lei deve ser imediata, os juízes da execução penal deverão ter o cuidado de reavaliar as penas da maioria dos condenados naqueles termos. Mãos à obra.


Notas

  1. Ver no STJ: REsp 1017584/SP e REsp 297581/SP. No STF: HC 95629/SP e HC 88466/SP.
  2. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 721.
  3. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 722.
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Sobre o autor
Clécio José Morandi de Assis Lemos

Professor de direito penal e advogado penalista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS, Clécio José Morandi Assis. Novo tipo de estupro e retroatividade benéfica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2234, 13 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13319. Acesso em: 18 abr. 2024.

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