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Portaria de instauração de processo administrativo disciplinar:

a descrição das acusações implica, de per si, impedimento da autoridade administrativa subscritora do ato para o julgamento do feito?

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5. Sistema disciplinar no direito federal brasileiro

No direito positivo federal pátrio, modelo reproduzido em quase todas as unidades federadas brasileiras, o processo administrativo disciplinar e a sindicância contra servidores públicos são regrados na Lei n. 8.112/1990, suplementada pelas disposições da Lei Geral de Processo Administrativo da União (Lei federal 9.784/99), vigorando o sistema semi-jurisdicionalizado, em que comissão processante, composta de três servidores estáveis, colhe as provas e formula acusação, se o caso, para julgamento pela autoridade administrativa competente, a qual pode, ou não, ser a mesma que instaurou o feito.

É assegurada ampla possibilidade de defesa ao acusado, o qual tem o direito de conhecer as acusações provisórias iniciais e os fatos contra ele articulados, sendo citado para acompanhar o processo punitivo, propor provas e contraprovas, participar da instrução ativa e passivamente, ser interrogado ao final da atividade instrutória e, sendo alvo de um juízo condenatório pelo colegiado disciplinar, deverá ser indiciado mediante peça (indiciação: art. 161, Lei federal n. 8.112/1990) em que serão deduzidos, em artigos, os pontos acusatórios, com a indicação das provas e fatos fundamentadores.

Segue-se a abertura de prazo para apresentação de peça escrita de defesa, a qual é apreciada, juntamente com todo o conjunto fático-probatório dos autos, pelo conselho trino, que oferecerá um relatório conclusivo com a proposta de julgamento à autoridade competente, a qual tem liberdade para formar seu convencimento, desde que com base nos elementos constantes do autuado, ainda que contrarie e deixe de acolher o juízo da trinca de disciplina.

Sucede ao ato decisório a absolvição ou a imposição da penalidade cabível, deferindo-se prazo para o oferecimento de pedido de reconsideração e/ou recurso administrativo, admitida, outrossim, a revisão do processo originário mediante processo revisional específico, autuado em apenso ao original, se surgirem novas provas ou circunstâncias que apontem para o erro no julgado administrativo sancionador, observadas as demais regras legais pertinentes.

Sendo assim, nota-se, salvo melhor juízo, que a autoridade administrativa, no modelo brasileiro de rito disciplinar, ao formular a descrição dos fatos objeto de apuração contra o servidor, não incorre em parcialidade, mas cumpre seu dever de dar a conhecer ao acusado o teor dos pretensos ilícitos cometidos, a bem do desforço defensório lastreado no conhecimento das teses de acusação.

Se o ato de instauração do processo administrativo disciplinar não distoa desse postulado, cingindo-se a autoridade administrativa, sem exaurir seu convencimento irreversível e peremptoriamente pela culpabilidade do servidor, atendo-se a fazer referência a fatos em tese, pretensa, suposta e possivelmente cometidos, não se antolha procedente o juízo de que a exposição inicial dos fatos teria logrado o condão de suprimir a imparcialidade do hierarca administrativo que deflagrou o feito sancionador, o qual, na verdade, se limitou a cumprir estritamente seu dever de mandar apurar as ocorrências.

Sendo assim, a hipótese se subsume ao entendimento jurisprudencial, no sentido de que o estrito cumprimento do dever legal do hierarca administrativo quanto à apuração dos fatos não determina a perda de imparcialidade da autoridade subscritora do ato deflagrador de processo disciplinar. Estabeleceu o Superior Tribunal de Justiça [29]:

Não configura o impedimento previsto no artigo 18 da Lei nº 9.784⁄1999 quando a atuação de quem se tem por impedido decorre do estrito cumprimento de um dever legal e não evidencia qualquer interesse direto ou indireto no deslinde da matéria.

Decidiu o Supremo Tribunal Federal [30]:

A simples circunstância de a comissão sugerir a remessa de pecas ao Ministério Público para exame do cabimento de ação penal não revela, por si só, parcialidade. No âmbito da Policia Federal, trata-se de providência imposta pela norma do artigo 427 do Decreto n. 59.310/66.

É mister que eventual alegação em contrário, no sentido de que a autoridade administrativa incorreria realmente em suspeição ou impedimento, seja cabalmente demonstrada, na esteira do entendimento jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça, o qual enuncia que a alegação de falta de imparcialidade da autoridade instauradora ou da comissão do processo administrativo disciplinar

deve estar comprovada de plano, não bastando sugestivas afirmações desprovidas de qualquer suporte fático. O simples indeferimento de produção de prova testemunhal e documental não é suficiente para caracterizar a perda da imparcialidade dos julgadores. [31]

110. Decidiu também o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região [32]:

15. Se desprovida de comprovação, não prospera a argüição de suspeição de membros de comissão sindicante ou processante, apenas porque não investigaram ou indiciaram servidores hipoteticamente envolvidos no ilícito administrativo.


Conclusão

De todo o exposto, conclui-se que, no modelo disciplinar do direito federal pátrio, o mero cumprimento do dever da autoridade administrativa, instauradora do processo administrativo disciplinar, de expor os fatos objeto de apuração no feito sancionador, para fins de exercício do direito de contraditório e ampla defesa por parte do acusado, não implica, de per si, perda da imparcialidade do hierarca subscritor do ato vestibular.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. Vieira, Antônio. Sermões escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 60.
  2. COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 2ª.ed., Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p.133, 190-191.
  3. Lei 8.112/90: "Art. 172. O servidor que responder a processo disciplinar só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente, após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada." A jurisprudência dos Tribunais pátrios, todavia, tem limitado a impossibilidade da concessão de aposentadoria a pedido somente até o prazo máximo para conclusão do processo administrativo disciplinar: cento e quarenta dias, contados da publicação do ato de instauração, como se tratará em item deste capítulo infra.
  4. Curso de direito administrativo, p. 233.
  5. Op. cit., p. 234-235.
  6. CRUZ, José Raimundo Gomes da. O controle jurisdicional do processo disciplinar. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 300.
  7. KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. 6ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 82.
  8. SIMÕES, Luso Arnaldo Pedreira. Anotações sobre o processo administrativo disciplinar. In: Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 16, junho-1980, , p. 263.
  9. Obra citada, p. 127.
  10. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 72.
  11. CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10ª.ed., Coimbra: Almedina, vol. I e II, p. 854.
  12. FILHO, Romeu Felipe Bacellar. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 205, 208, 222, 233-234.
  13. CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da administração pública. Brasília: Fortium, 2008, p. 292 ss.
  14. BIELSA, Rafael. Derecho administrativo. Sexta edición, Buenos Aires: La Ley, 1964, tomos I a IV, p. 361-362.
  15. CARVALHO, A. A. Contreiras de. Estatuto dos funcionários públicos interpretado. 2a. ed., São Paulo e Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, vol. II, 1961, p. 220.
  16. ZAGO, Livia Maria Armentano K. Processo administrativo disciplinar. In: MEDAUAR, Odete (coordenadora). Processo administrativo: aspectos atuais. São Paulo: Cultural Paulista, 1998, p. 379-401, p. 390-391.
  17. Op. cit., p. 363
  18. CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10ª.ed., Coimbra: Almedina, vol. I e II, p. 824.
  19. Obra citada, p. 824.
  20. COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 5ª.ed. rev. atual. e ampl., Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 367.
  21. WALINE, M. Droit administratif. 8ª ed., Paris: Éditions Sirey, p. 807-808.
  22. HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1933 et de droit public, p. 762-764.
  23. LAUBADÈRE, André. Traité Élémentaire de droit administratif. Paris: Librairie Générale de droit e de jurisprudence, 1953, p. 709.
  24. Obra citada, p. 715-716.
  25. WALINE, M. Droit administratif. 8ª ed., Paris: Éditions Sirey, p. 808-809.
  26. CARVALHO, A. A. Contreiras de. Estatuto dos funcionários públicos interpretado. 2a. ed., São Paulo e Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, vol. II, 1961, p. 215-216.
  27. STASSINOPOULOS, Michel. Le droit de la dèfense devant les autorités administratives. Paris: Librairie Générale de droit e de jurisprudence, 1976, p. 185.
  28. JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 163-165.
  29. RECURSO ESPECIAL Nº 585.156 - RN (2003⁄0158109-3), RELATOR: MINISTRO PAULO GALLOTTI, RECORRENTE : JOÃO MARIA DE ANDRADE LIMA, ADVOGADO : RIVANDI FREITAS DE MELO E OUTRO, RECORRIDO: UNIÃO, Sexta Turma, por unanimidade, Brasília (DF), 02 de outubro de 2008 (data do julgamento), DJe: 24/11/2008
  30. MS 21297/DF - DISTRITO FEDERAL, MANDADO DE SEGURANÇA, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 27/11/1991, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 28-02-1992 PP-02170, EMENT VOL-01651-02 PP-00233, RTJ VOL-00138-02 PP-00488..
  31. MS 8877/DF, 2003/0008702-2, relator o Ministro felix fischer, 3ª Seção, julgamento de 11.06.2003, DJ de 15.09.2003, p. 232.
  32. AC - APELAÇÃO CIVEL – 200434000194737, Processo: 200434000194737 UF: DF, Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA, Data da decisão: 03/09/2008, DJ de 16/09/2008, PAGINA: 66, Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ AMILCAR MACHADO, por unanimidade.
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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Portaria de instauração de processo administrativo disciplinar:: a descrição das acusações implica, de per si, impedimento da autoridade administrativa subscritora do ato para o julgamento do feito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2239, 18 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13348. Acesso em: 18 abr. 2024.

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Título original: "A descrição das acusações, na portaria de instauração de processo administrativo disciplinar, implica, de per si, impedimento da autoridade administrativa subscritora do ato para o julgamento do feito?"

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