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Da impossibilidade de magistrados funcionarem como membros de comissão de processo administrativo disciplinar contra serventuário da Justiça

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A competência para processar processo administrativo disciplinar contra serventuário do Poder Judiciário, no regime da Lei n. 8.112/1990, cabe a comissão trina, formada por servidores efetivos, não a magistrados.

Palavras-chave: Processo administrativo disciplinar. Instauração contra servidor público do Poder Judiciário da União. Regime da Lei federal n. 8.112/1990. Comissão processante. Composição por magistrados. Ilegalidade. Violação ao princípio do juiz natural.

Resumo: O artigo procura demonstrar que a competência para processar processo administrativo disciplinar instaurado contra serventuário do quadro do Poder Judiciário, no regime da Lei federal n. 8.112/1990, cabe a comissão trina, formada por servidores ocupantes de cargos de provimento efetivo, não a magistrados.


1. Introdução

Problema de relevo, no que tange à validade de processo administrativo disciplinar instaurado pela Administração Pública do Poder Judiciário, concerne à possibilidade, ou não, de juízes de direito, desembargadores ou ministros de tribunais comporem comissão processante incumbida de conduzir feito punitivo contra servidor público ocupante de cargo efetivo ou em comissão do Quadro do Poder Judiciário.


2. A incidência do princípio constitucional do juiz natural na esfera administrativa

A indagação objeto deste artigo envolve a aplicabilidade do princípio constitucional juiz natural na esfera administrativa (princípio do administrador competente).

O princípio do juiz natural é previsto no preceptivo do art. 5º, LIII, da Constituição Federal de 1988:

LIII - Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

Romeu Felipe Bacellar Filho [01] sublinha a aplicabilidade do princípio do juiz natural no processo administrativo (no feito disciplinar e na sindicância apenadora) por entender que, quando a Constituição Federal consagra (art. 5o., incisos XXXVII e LIII) as garantias de que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" e de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente", o texto da Carta se harmoniza tanto com a idéia de juízo administrativo, presente e instaurado no julgamento do processo administrativo disciplinar, como com o termo tribunal, que pode ser estendido a colegiados administrativos e outros órgãos não judiciais, como o Tribunal de Contas.

Eis, pois, o erro de se supor que o princípio do juiz natural não incidiria sobre os órgãos de instrução de sindicância punitiva ou processo administrativo disciplinar.

Romeu Felipe Bacellar Filho agrega que a oração "ninguém será processado" engloba o processo administrativo disciplinar, por força da expressa previsão constitucional de contraditório e ampla defesa na sede administrativa (art. 5o., LV, CF 1988), além de que a expressão "senão pela autoridade competente" desborda da instância judicial e alcança a esfera do processo administrativo e a competência para seu processamento e julgamento. O doutrinador enfatiza que, como a hermenêutica do direito proclama o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, adotando-se o sentido exegético que maior eficácia lhes dê, sobretudo em se cuidando de garantias individuais, tem perfeito cabimento a extensão da garantia do juiz natural não só no campo dos processos judiciais, mas ainda dos feitos disciplinares desenvolvidos pela Administração Pública.

Note-se que a Constituição Federal não se limitou a garantir que ninguém seria sentenciado senão pela autoridade competente, mas também que ninguém seria processado nem sentenciado exceto pela autoridade competente, preceptivo constitucional que abrange, por cristalino, os órgãos de instrução do processo administrativo disciplinar, haja vista que o dispositivo constitucional mencionou a figura da autoridade competente, não do juiz competente, o que faz estender o comando da Carta Política igualmente na esfera administrativa, não apenas no campo judicial.

O princípio do administrador competente, portanto, compreende, sim, os agentes públicos que atuem na fase de instrução em feitos desenvolvidos pela Administração Pública, vale dizer, mais especificamente, somente podem colher provas no processo administrativo disciplinar os servidores competentes para o mister, ou seja, a comissão trina, no modelo previsto no art. 149, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990.

O que é, enfim, o princípio do juiz natural na esfera administrativa, também nominado de princípio do administrador competente?

Lúcia Valle Figueiredo, ponderando pela incidência do postulado do juiz natural na esfera administrativa em razão do próprio princípio do devido processo legal, refere que administrador competente é "aquele dotado de competência para processar e julgar o processo administrativo" [02], igual juízo de Elizabeth Maria de Moura [03].

Por sinal, a própria Lei Federal 9.784/99 (regula o processo administrativo da União) capitula que "a competência se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria" (art. 11).

Marcelo Caetano [04] corrobora: "Cada órgão só tem os poderes que a lei lhe confira, expressa ou implicitamente. A competência vem sempre da lei".

José dos Santos Carvalho Filho [05] assinala: "Os atos só podem considerar-se legais se emanarem do órgão ou agente competente".


3. Conteúdo jurídico do princípio do administrador competente ou do juiz natural no processo administrativo disciplinar, inclusive sua repercussão sobre a competência para a prática de atos instrutórios

Por força do princípio do administrador competente, reflexo da incidência do princípio constitucional do juiz natural na esfera do processo administrativo (art. 5º, LIII, Constituição Federal de 1988), nenhum servidor público, acusado da prática de transgressão funcional, poderá ser investigado, processado, julgado – nem terá contra si instaurado procedimento punitivo ou investigativo – senão por iniciativa da autoridade administrativa ou agente público competente, sob pena de nulidade total do processo disciplinar ou sindicância, em caráter inarredável, absoluto, ainda que ausente prejuízo para a defesa, mesmo que franqueadas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa ao funcionário processado.

Sebastião José Lessa encarece: "O cidadão tem o direito de se ver processar pela autoridade competente e de acordo com a lei de regência." [06]

Léo da Silva Alves enfatiza que os atos de instrução do processo disciplinar só podem ser praticados pelos agentes com competência: "Se a lei deu competência a uma comissão, os atos não podem ser praticados por um único dos seus membros ou por dois deles. A comissão precisa oficiar completa." [07]

José Cretella Júnior assevera que a competência é a quantidade de poderes pertencentes ao Estado que são deferidos a um agente público titular de cargo, emprego ou função para exercitar certos direitos estatais; refere-se ao conjunto de faculdades que compõem a competência do órgão em particular e "não pode ser exercida pelo Estado a não ser mediante o referido órgão." [08]

A competência no processo administrativo impõe-se para todo agente público que instala, conduz, instruiu e profere decisão no feito.

Romeu Felipe Bacellar Filho confirma a incidência do princípio do juiz natural sobre a autoridade ou órgão com competência para instruir e acusar no processo administrativo disciplinar, no caso a comissão processante (negrito não original):

A linguagem jurídica tem considerado imparcialidade conectada à independência [...] O plano da abrangência funcional importa na consideração de que as diversas matizes do princípio do juiz natural alcançam os agentes responsáveis pelo processamento e decisão do processo administrativo disciplinar (em sentido constitucional). Embora os diversos Estatutos dos Servidores Públicos disponham diferentemente quanto ao exercício da competência disciplinar, a regra tem aplicação geral. O princípio estende-se obrigatoriamente à autoridade que desempenha o ofício da acusação; à autoridade que conduz o processo ou, na acepção técnica, detém competência instrutória; à autoridade com competência decisória, a quem compete definir e aplicar a sanção. [09]

Ajunte-se que, como a competência é improrrogável em direito administrativo, nem mesmo a designação ilegal de agentes incompetentes pela autoridade administrativa revestida de competência para instaurar o feito tem o condão de prorrogar a competência instrutória e acusatória, ainda que o agente nomeado venha a principiar ou mesmo encerrar atos instrutórios, elaborar indiciação e até relatório, visto que a competência não pode ser alterada ou modificada ao alvedrio de quem quer que seja, senão por força de lei. Vale dizer que o exercício da competência pelo agente incompetente não tem o condão de lhe propiciar a aquisição do poder para praticar atos que a lei diz competir a terceiros.

Nesse sentido, anui Maria Sylvia Zanella Di Pietro [10], aduzindo que a competência é inderrogável, mesmo pela vontade da Administração, o que vale dizer que a atuação de agentes públicos sem competência para colher provas no processo administrativo disciplinar não pode ter o efeito de afastar a competência privativa da devida comissão prevista em lei para o mister.

Nem se poderia admitir que, pela via indireta da usurpação de competência, fosse aceita a direta violação da garantia legal dos acusados quanto ao órgão competente para processá-los. Como destaca Teixeira de Freitas [11]:"Negado o que é por um meio, não se pode obter por outro meio".

A competência é tema cardeal no direito administrativo, porquanto condiciona a validez dos atos administrativos editados, na medida em que nenhum servidor pode agir em nome da Administração Pública sem ser competente, o que se irradia na questão da atividade de processar processo administrativo disciplinar.

Léo da Silva Alves [12] alinha que a validade dos atos administrativos pressupõe a competência de quem os pratica em sede de processo administrativo disciplinar, especialmente de quem colhe a prova, menção do doutrinador à qualidade de juiz da instrução, exercida pelo colegiado no processo administrativo disciplinar.

Romeu Felipe Bacellar Filho [13] asserta sobre o princípio do juiz natural quanto aos órgãos de instrução, não apenas sobre os julgadores:

O princípio estende-se obrigatoriamente à autoridade que desempenha o ofício da acusação; à autoridade que conduz o processo ou, na acepção técnica, detém competência instrutória.

Nisso reside o grande valor de que o princípio do administrador competente se aplique não apenas à autoridade que julga e instaura o processo, mas ainda sobre os órgãos coletores da prova e do processamento do processo administrativo disciplinar, dado o caráter decisivo da atividade probatória para o desfecho do procedimento punitivo, porquanto nela deverá basear-se o julgamento.


4. Consequências da violação do princípio constitucional do juiz natural no processo administrativo disciplinar

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou processo administrativo disciplinar porque processado por apenas dois servidores, contrariando o disposto no art. 149 da Lei federal n. 8.112/1990 [14], repetindo a decisão em outro caso idêntico:

No caso concreto, restou caracterizada a ofensa ao art. 149 da Lei n. 8.112/1990, uma vez que a Comissão de Processo Disciplinar teve início com apenas dois servidores, quando a Lei determina o número de três integrantes, além de que teve trâmite como se sindicância fora. [15]

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O Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou penalidade disciplinar imposta por autoridade administrativa incompetente:

Não sendo a autoridade coatora competente para punir o impetrante, cabível é o MS para a anulação da penalidade. A Constituição Federal de 1934 já consagrava em seu art. 113: 26) Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente. [16]

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou outro feito administrativo disciplinar em face da tríplice incompetência: da comissão processante; da autoridade que designou o colegiado disciplinar e da autoridade julgadora que ainda aplicou a penalidade disciplinar. [17]

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região decretou a nulidade do ato de demissão de servidor público, cuja motivação se fundamentou no teor de parecer elaborado por agente público desprovido de competência para exercer funções em processo administrativo disciplinar. [18]

A Administração Pública está jungida ao princípio da legalidade (art. 37, caput, Constituição Federal de 1988; art. 2º, caput, Lei Federal n. 9.784/99), inclusive no que concerne à outorga de poderes para processamento de processo administrativo disciplinar a quem de direito, mesmo porque a lei estatui que o feito sancionar será informado pelo critério de atuação conforme a lei e ao direito, além da observância das formalidades de garantia dos direitos dos administrados (art. 2º., par. único, I e VIII, Lei Federal n. 9.784/99).

A não-observância da garantia constitucional do administrador competente para processar o servidor público determina a nulidade dos atos praticados pelo agente público incompetente solitário, que atuou no lugar de um colegiado, por exemplo.

Pois bem.


5. Regramento legal da composição de comissão de processo administrativo disciplina no sistema da Lei federal n. 8.112/1990

Cumpre, agora, verificar quais devem ser, por força de lei, os componentes da comissão de processo administrativo disciplinar instaurado contra servidor público do Poder Judiciário no modelo do Estatuto Federal do Funcionalismo Público.

Dita a Lei federal n. 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos da União):

Art. 149. O processo disciplinar será conduzido por comissão composta de três servidores estáveis designados pela autoridade competente, observado o disposto no § 3º do art. 143, que indicará, dentre eles, o seu presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado. (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

A regra do art. 149, caput, da Lei federal n. 8.112/1990, é taxativa no sentido de que a comissão processante será composta por três servidores públicos efetivos e estáveis.

Ressumbra que os integrantes do colegiado disciplinar, incumbido de instruir e acusar processo administrativo sancionador contra servidor público federal dos três Poderes, inclusive do Poder Judiciário, devem ser servidores públicos ocupantes de cargo de provimento efetivo e com estabilidade no serviço público.

Marque-se que nem mesmo Provimentos Internos ou Regimento Interno do Poder Judiciário poderia contrariar o Estatuto Federal dos Servidores Públicos e deferir a competência instrutória e acusatória (no que respeita a quem deverá processar serventuários da Justiça da União, legalmente capitulada em favor de comissão) para outras autoridades ou órgãos, visto que o regime disciplinar se aplica, sim, aos servidores dos Três Poderes, haja vista que a iniciativa da matéria é do Chefe do Poder Executivo.

Mais, a matéria da competência para processar servidores públicos, por não se tratar de procedimento mas de processo, não pode ser objeto de disposição divergente de norma interna do Judiciário ou regimental, devendo preponderar o disposto no Estatuto dos Servidores Públicos Federais, sob pena de invasão de competência do Chefe do Poder Executivo na matéria.

Compete ao Chefe do Poder Executivo, com efeito, no direito brasileiro, a iniciativa dos projetos de lei que tratem do estatuto disciplinar dos servidores públicos dos três Poderes da entidade federada, pois que se cuida de matéria própria do regime jurídico do funcionalismo, comum aos funcionários do Judiciário, Executivo e Legislativo (art. 61, § 1º, II, c, Constituição Federal).

Egberto Maia Luz, por sinal, sublinha que o direito administrativo disciplinar regula os atos dos servidores públicos dos três Poderes. [19]

Confirmando esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Senado Federal não tem competência para dispor, por meio de resolução, sobre o regime disciplinar do funcionalismo do Poder Legislativo, porque a matéria foi considerada da iniciativa legiferante privativa do Presidente da República. [20]

A categoria servidor público é disciplinada na Constituição Federal de 1988 na Seção II, intitulada "Dos Servidores Públicos", do Capítulo VII (Da Administração Pública) do Título III ("Da Organização do Estado"), com disposições nos artigos 37, 38 e 39, em relação aos quais se destacam três figuras fundamentais: os ocupantes de cargos públicos de provimento efetivo, os titulares de cargos em comissão e os contratados em regime de contratação temporária, remanescendo ainda os celetistas, aludidos na redação original da Emenda Constitucional 19, na novel redação conferida ao caput do art. 39 da Carta, presentemente suspensa por força de decisão adotada em ação direta de inconstitucionalidade em tramitação no Supremo Tribunal Federal [21].

Os servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo, admitidos após aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, são favorecidos com a aquisição de estabilidade no serviço público após o decurso trienal de estágio probatório, após o que somente poderão perder o posto administrativo em virtude de: sentença judicial transitada em julgado; processo administrativo em que lhes seja assegurada ampla defesa; procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa (artigo 41, § 1º, I a III, da Constituição Federal de 1988, com a redação determinada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Na condição de servidores públicos efetivos se incluem os agentes administrativos aprovados em concurso público para preenchimento de cargos de provimento efetivo do Poder Judiciário.


6. A categoria dos agentes públicos ocupantes de cargos vitalícios de membros do Poder Judiciário e sua situação jurídica diferenciada dos serventuários da Justiça da União

Distinta categoria de agentes públicos é a dos magistrados, os quais são retratados na Constituição Federal no Capítulo III ("Do Poder Judiciário"), Seção I - Disposições Gerais, no Título IV ("Da Organização dos Poderes"), na qualidade não de servidores mas de membros do Poder Judiciário, gozando das seguintes garantias: vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I (art. 95, I a III, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Atente-se para a extensão das garantias dos membros do Poder Judiciário: a vitaliciedade, que se destaca, é a prerrogativa de não perder o cargo, depois de dois anos de exercício, senão por sentença judicial transitada em julgado, nunca por decisão administrativa, somada à inamovibilidade como regra geral, não podendo ser removido de suas funções ordinariamente.

Diferentemente dos servidores públicos, com prazo trienal de estágio probatório (art. 41, caput, Constituição Federal de 1988), os juízes de primeiro grau se sujeitam a somente dois anos para aquisição - não de estabilidade no serviço público, mas de vitaliciedade no cargo (art. 95, I, Carta Republicana).

O cargo público ocupado pelos membros do Poder Judiciário não é de provimento efetivo, como dos servidores públicos, mas de provimento vitalício, adquirido após dois anos de exercício, com prévia aprovação em concurso público de provas e títulos para ingresso inicial na carreira, ressalvado os casos de investidura originária em tribunais pelo quinto constitucional, nas vagas reservadas a membros do Ministério Público e advogados, em que a vitaliciedade é adquirida de imediato com a posse no cargo de magistratura, ressalvada também, por evidente, a promoção de juízes de carreira, já titulares de vitaliciedade obviamente.

O saudoso Hely Lopes Meirelles chega a classificar os magistrados de agentes políticos com regime estatutário de natureza peculiar [22], acompanhado de José Cretella Júnior [23], Diogo de Figueiredo Moreira Neto [24] e Henrique de Carvalho Simas [25], em vista da alta envergadura das funções desempanhadas pelos integrantes da magistratura e da sua peculiar condição de expressar a vontade do Estado e de contrastar os atos praticados pelos outros Poderes Públicos.

Confirma esse entendimento o constitucionalista e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Kildare Gonçalves Carvalho, sentenciando o destaque da prerrogativa de foro dos magistrados por força da qualidade de agentes políticos desses agentes públicos [26]:

A prerrogativa de foro atende à condição de agente político do juiz

, protegendo o cargo e não seu titular, daí a sua indisponibilidade. De acordo com a Constituição brasileira, os ministros do Supremo Tribunal Federal respondem por crime de responsabilidade perante o Senado Federal. O Supremo é foro para seus ministros no caso de crime comum, bem como, neste e nos de responsabilidade, para os membros dos tribunais superiores. O Superior Tribunal de Justiça julga, nas duas modalidades de delitos, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho. Já os juízes federais, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, respondem perante o Tribunal Regional Federal da respectiva área de sua jurisdição nos crimes comuns e de responsabilidade. O Tribunal de Justiça é o foro competente para as ações penais ajuizadas contra os magistrados do Estado.

Uadi Lammêgo Bullos comenta sobre as garantias dos magistrados [27]:

Pela relevantíssima responsabilidade que ostentam, os juízes gozam de garantias institucionais-funcionais. Sem elas, o Poder Judiciário cederia a pressões de todo tipo. [...] Garantias institucionais da magistratura são as que propiciam a independência do Poder Judiciário perante os Poderes Legislativo e Executivo. São amplas porque se projetam em todos os órgãos do Judiciário, abrangendo do Ministro do Supremo Tribunal Federal ao juiz de primeiro grau de jurisdição. Possuem tanta importância que constitui crime de responsabilidade atentar contra o seu livre exercício (CF, art. 85, II).

Basta considerar, demais, recente e notável julgado do excelso Supremo Tribunal Federal para se verificar que os membros do Poder Judiciário se distinguem em muito, em sua situação jurídica, no caso referentemente a limite remuneratório, dos servidores públicos em geral.

Segundo os votos proferidos no julgamento pela Suprema Corte na ADI 3854, assentando o entendimento de que a magistratura é instituição nacional e una, na disciplina da Carta Magna Brasileira, todos os seus membros, sejam federais ou estaduais, têm o mesmo teto vencimental, de 100% do subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando aos membros do Poder Judiciário estadual, a despeito da redação literal em contrário conferida ao inciso XI do art. 37 da Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional n. 41/2003, o reduzido limite de subsídio de desembargador do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a 90,25% do subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal, diferentemente dos servidores do Poder Judiciário dos Estados, os quais estão, sim, subordinados a esse limite máximo de remuneração menor, portanto em condição remuneratória inferior aos integrantes do Judiciário.

Embora no âmbito federal o teto remuneratório seja comum aos agentes públicos em geral dos três Poderes: 100% do subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal, a ilustração demonstra a diferença de situação jurídica dos magistrados ante os serventuários da Justiça.

Não bastasse, é consabido o expressivo desnível hierárquico e funcional vigente entre funcionários da Justiça e magistrados, havendo forte relação de reverência e subordinação, de substantiva expressão, da parte de serventuários judiciários diante de componentes da magistratura, inclusive em face do elevado nível de autoridade detido por aqueles que compõem a Administração da Justiça como membros, não como simples pessoal de apoio, como é o caso dos funcionários públicos. Não se cuida de iguais, em nenhuma forma de comparação, no âmbito da estrutura do Poder Judiciário, logo.

Os servidores são meros auxiliares dos magistrados, no exercício da função jurisdicional. Nesse sentido, vale a cátedra de Júlio Fabbrini Mirabete [28]:

Os funcionários da Justiça. Conceito de funcionário

. Para exercer com eficiência a função jurisdicional, o juiz deve ser auxiliado por outras pessoas nos serviços de documentação e de execução de atos processuais, que não pode executar ou que não convém sejam cumpridos pessoalmente por razões de necessidade, da falta de conhecimentos especializados, de decoro e da maior eficácia proveniente de divisão do trabalho. Daí existirem funcionários da administração da justiça que, por lei, são incumbidos da realização de diversas atividades destinadas a integrar o movimento processual, não só para que este tenha maior celeridade, como ainda para a documentação dos atos que se praticam em juízo, visando à efetivação da tutela jurisdicional do Estado.

Servidores, de um lado, e juízes, desembargadores, ministros de Tribunais, de outro, não estão no mesmo nível funcional, de forma alguma. Até pelo tratamento protocolar devido aos magistrados, de "Excelência", pelo uso de vestimentas talares pelos membros do Judiciário durante os atos processuais e julgamentos, pela praxe de todos, inclusive advogados, se levantarem, reverentemente, quando do ingresso de integrantes da magistratura nas salas de audiência ou de sessões de julgamento em tribunais, a remuneração diametralmente superior auferida pelos órgãos da Justiça, as garantias funcionais de incomparável destaque destes, conferidas diretamente pela Constituição ante a magnitude de suas funções no Estado de Direito, as instalações de trabalho, tudo distancia-os dos demais agentes públicos que trabalham para a Justiça em caráter profissional de feição auxiliar.

Em face dessa realidade, o Estatuto Federal dos Servidores Públicos assegura aos funcionários auxiliares da Justiça, acusados em processo administrativo disciplinar, que serão processados por outros servidores titulares de cargo de provimento efetivo, não por magistrados, dada a enorme desequiparação funcional entre serventuários da Justiça e membros do Poder Judiciário.

Calha relembrar que a garantia do devido processo legal, em suas raízes do direito inglês no século XIII, foi instituída para que os cidadãos pudessem ser julgados por seus pares, segundo a lei da terra. Dessa idéia original da cláusula fundamental deriva, no caso do processo administrativo disciplinar, que a instrução e a acusação contra os servidores públicos por iguais servidores, sem que o acusado tenha que se curvar ao extremamente mais elevado grau hierárquico dos acusadores membros da comissão processante, tratando os componentes do conselho instrutor de "Vossa Excelência" durante os atos processuais, intimidado.

Há notícia, em nível estadual, de processos administrativos disciplinares, instaurados contra serventuários da Justiça, processados por três magistrados, reforçados em seus afazeres processuais, não bastasse a já distinta composição do colegiado processante, por dois membros do Ministério Público, situação intimidatória para qualquer acusado na esfera administrativa.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Da impossibilidade de magistrados funcionarem como membros de comissão de processo administrativo disciplinar contra serventuário da Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2244, 23 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13372. Acesso em: 28 mar. 2024.

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Título original: "Da impossibilidade de magistrados funcionarem como membros de comissão de processo administrativo disciplinar contra serventuário da Justiça no regime da Lei federal n. 8.112/1990".

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