5. Estupro de vulnerável
O crime de estupro de vulnerável está inserido no Capítulo II (denominado "DOS CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEL") do Título inerente aos crimes contra a dignidade sexual (Título VI da Parte Especial). Referido Capítulo traz a tipificação dos seguintes crimes:
- estupro de vulnerável (art. 217-A);
- corrupção de menores (art. 218);
- mediação de menor vulnerável para satisfazer a lascívia de outrem [20] (art. 218);
- satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);
- favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B).
Encontra-se revogado o art. 217 (sedução), antes inserto no Capítulo II em destaque.
Os artigos previstos no Capítulo III do mesmo Título estão todos revogados, quais sejam: art. 219 (rapto violento ou mediante fraude); art. 220 (rapto consensual); art. 221 (diminuição de pena); e art. 222 (concurso de rapto e outro crime).
Para iniciar o estudo dos crimes sexuais contra vulnerável, vejamos a íntegra da tipificação do estupro de vulnerável:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º (VETADO)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
5.1 Comentário introdutório
O caputdo artigo 217-A mantém a opção legislativa de considerar crime o ato libidinoso praticado com pessoa menor de 14 (catorze) anos de idade, independentemente do consentimento da vítima. Agora se tem um crime específico ("estupro de vulnerável"), para os casos de ato libidinoso, forçado ou não, praticado com menor de 14 (catorze) anos.
Antes havia o artigo 224, hoje revogado, que era utilizado como regra de extensão para aplicação dos artigos 213 ou 214, conforme o caso, quando o ato libidinoso era praticado com o consentimento da vítima, falando-se então em estupro ou atentado violento ao pudor com presunção de violência.
Portanto, atualmente, quem pratica sexo com menor de 14 (catorze) anos responde pelo delito previsto no art. 217-A (observe-se que a pena deste crime é bem maior do que aquela atribuída ao estupro comum em sua forma simples), ficando afastada a incidência do art. 213 à situação.
O estupro de vulnerável, em qualquer de suas modalidades constitui-se crime hediondo (art. 1º, VI, da Lei nº 8.072/90).
5.2 Objetos jurídico e material
A infração penal ora estudada tem como objeto jurídico (bem jurídico protegido) a liberdade, dignidade e desenvolvimento sexuais [21].
O objeto material é a pessoa (do sexo masculino ou feminino) vulnerável com quem é praticado o ato libidinoso. Quando formos tratar do sujeito passivo delinearemos melhor o conceito de vulnerável para efeitos do art. 217-A.
5.3 Sujeitos ativo e passivo
Em regra, trata-se de crime comum no tocante ao sujeito ativo, posto que qualquer um (homem ou mulher) pode incorrer na conduta criminosa. Quando se tratar de execução através de conjunção carnal, contudo, exige-se que a relação seja heterossexual (ou seja, se a vítima for do sexo feminino, o sujeito ativo deve ser homem; se a vítima for do sexo masculino, o sujeito ativo deve ser mulher).
Quanto ao sujeito passivo, este deve ser menor de catorze anos ou pessoa (mesmo que maior de catorze anos) que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. São estas a pessoas consideradas vulneráveis pelo art. 217-A, conforme melhor se especifica em seguimento.
a)Menor de catorze anos (art. 217-A, caput)
Trata-se de um critério objetivo estabelecido pela Lei. Entende-se que a pessoa que ainda não completou catorze anos não tem maturidade suficiente para decidir se relacionar sexualmente. Desse modo, o ato libidinoso, mesmo que consentido, praticado com menor de catorze anos é tido como configurador do tipo penal em evidência.
Vale lembrar que parte da jurisprudência e da doutrina já aceitava certa relativização no tocante à presunção de violência no sexo consentido praticado com menor de 14 (catorze) anos. O art. 217-A, entretanto, não fala mais em qualquer presunção, mas sim diretamente tipifica a prática desse ato.
Desse modo, parece-nos que agora ficará mais difícil uma relativização. Deve-se lembrar, contudo, que o tipo, segundo entendimento contemporâneo, não possui apenas um aspecto formal, mas também uma faceta material. Logo, como o objetivo é proteger com o dispositivo em evidência a dignidade sexual da vítima (presumindo como imatura para a vida sexual a pessoa menor de catorze anos); se essa dignidade não é efetivamente afetada, pode-se construir um raciocínio de falta de tipicidade material.
Traçamos tais comentários por nos preocuparmos com situações corriqueiras como, por exemplo, do homem de dezoito anos que faz sexo com a sua namorada de treze com o pleno consentimento desta, tendo a mesma razoável instrução sobre a vida sexual. Seria justo ele ser condenado a uma pena de oito a quinze anos de reclusão? Pena esta que se aproxima da sanção referente ao homicídio simples (que é de seis a vinte anos de reclusão – art.121 do CP)?
Registra-se que Rogério Greco (2010, v. III, pp. 512-513) e Cleber Masson (2011, v. 3, p. 54) entendem não ser mais possível excluir qualquer pessoa menor de catorze anos da proteção estabelecida no artigo em tela, considerando haver uma escolha objetiva do legislador baseada no critério etário. Em sentido contrário, a posição de Nucci (2009, v. 37), dizendo que atualmente pode-se relativizar a vulnerabilidade em alguns casos especiais em se tratando de vítima maior de doze anos (considerada adolescente nos termos do ECA – Lei nº 8.069/1990). Rogério Sanches Cunha (2010, v. 3, pp. 256-257) adere ao entendimento de Nucci.
De outro modo, não há discussão quanto à possibilidade da ocorrência de erro tipo no caso, em situações que o agente, justificadamente, crê estar se relacionando com pessoa maior de catorze anos, porém depois descobre ter esta idade inferior. Veja-se, neste aspecto, o exemplo dado por Rogério Greco (2010, v. III, pp. 514-515):
Assim, imagine-se a hipótese onde o agente, durante uma festa, conheça uma menina que aparentava ter mais de 18 anos, devido à sua compleição física, bem como pelo modo como se vestia e se portava, fazendo uso de bebidas alcoólicas etc., quando, na verdade, ainda não havia completado os 14 (catorze) anos. O agente, envolvido pela própria vítima, resolve, com o seu consentimento, levá-la para um Motel, onde com ela mantém conjunção carnal. Nesse caso, se as provas existentes nos autos conduzirem para o erro, o fato praticado pelo agente poderá ser considerado atípico, tendo em vista a ausência de violência física ou grave ameaça.
Em derradeiro, registra-se que acaso o ato sexual ocorra, sem violência ou grave ameaça, no dia em que a vítima completa seus catorze anos, o fato será atípico [22], pois exige a Lei que o sujeito passivo, no caso, seja menor de catorze anos.
b) Pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato sexual (art. 217-A, § 1º, primeira parte)
No presente caso, além da vítima possuir enfermidade ou deficiência mental, deve também restar demonstrado que não tem o necessário discernimento para a prática do ato. Quer dizer, o fato de estar acometida de uma patologia mental não é suficiente; devendo-se também demonstrar sua incapacidade de discernimento. Daí se dizer que o legislador adotou, no caso, um critério biopsicológico, segundo bem explica Cleber Masson (2011, v. 3, p. 55): "Consagrou-se, portanto, o sistema biopsicológico: para aferição da vulnerabilidade não basta a causa biológica (enfermidade ou deficiência mental), pois também se exige a afetação psicológica do ofendido (ausência de discernimento para o ato sexual)".
Nesse passo, não estão totalmente proibidas relações sexuais com pessoas portadoras de patologias mentais, se estas tiverem discernimento suficiente para consentir com tal prática. Por isso é imprescindível a perícia para definir a vulnerabilidade no presente caso, tanto para avaliar a enfermidade ou deficiência mental quanto a capacidade de discernimento.
c) Pessoa que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (art. 217-A, § 1º, parte final)
É considerada vulnerável a pessoa que, mesmo maior de catorze anos e sem qualquer enfermidade ou deficiência mental, não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
A incapacidade de resistência mencionada pode ser, segundo Nucci (2009, p. 40), relativa ou absoluta. Somente no caso de incapacidade absoluta é que deverá ser considerada vulnerável a vítima. Acaso haja incapacidade relativa, o fato poderá ser enquadrado nos termos do art. 215 do CP (violação sexual mediante fraude).
Colhem-se da doutrina os seguintes exemplos de impossibilidade de oferecer resistência (MASSON, 2011, v. 3, p. 56):
São exemplos de vulneráveis, com fundamento no art. 217-A, § 1º, in fine, do Código penal, as pessoas em coma, em sono profundo, anestesiadas ou sedadas (exemplo: médico que pratica com o paciente atos libidinosos durante o estado de inconsciência resultante da anestesia geral), bem como as pessoas portadoras de deficiências físicas que, embora conscientes, não têm como se defender da agressão sexual (exemplo: sujeito que covardemente esfrega seu órgão genital no corpo de um tetraplégico).
A incapacidade de resistência pode ser provocada ou não pelo agente, sendo tal circunstância indiferente para a imputação do delito em evidência.
Nos casos de embriaguez parcial, tendo a vítima possibilidade de resistência, mesmo que reduzida, não há incidência do art. 217-A [23]. Ademais, defende Nucci (2009, p. 40-41) que, mesmo em casos de embriaguez total, se a vítima voluntariamente se colocou em tal estado para depois ser submetida a práticas sexuais, não haverá a incidência do dispositivo em comento.
5.4 Tipo objetivo
As condutas previstas no caput do art. 217-A são: a) ter conjunção carnal com menor de catorze anos; b) praticar outro ato libidinoso com menor catorze anos.
O verbo ter, no caso, está sendo utilizado no sentido de manter, realizar ou efetuar. Conjunção carnal consiste, segundo é sabido, na introdução (total ou parcial) do pênis na vagina, exclusivamente. Não se pode, portanto, falar em conjunção carnal, por exemplo, em se tratando de introdução de instrumento postiço na vagina ou mesmo na incidência de sexo anal. Tais atos são libidinosos, mas não configuram conjunção carnal, dando-se esta, repita-se, apenas quando há introdução do pênis na vagina, pressupondo uma relação heterossexual.
No tocante à segunda conduta incriminada, o verbo praticar está sendo utilizado no sentido de manter, executar ou desempenhar e, ainda, segundo nosso entendimento, de tomar parte no ato (participar). Com razão Cleber Masson (2011, v. 3, p. 61) quando afirma que: "Na verdade, os verbos ‘ter’ e ‘praticar’ possuem igual sentido".
Atos libidinosos são aqueles voltados à satisfação da lascívia, do desejo sexual. Incluem-se na segunda conduta prevista no artigo em comento todos os atos libidinosos relevantes, exceto a conjunção carnal (que é também um ato libidinoso, porém possui previsão própria na primeira conduta), praticados com menor de catorze anos.
O fato de o tipo prever como crime o comportamento consistente em "praticar outro ato libidinoso com menor de catorze anos" pode suscitar equívocos interpretativos; pois em uma análise superficial parece indicar o dispositivo que apenas o ato libidinoso praticado pelo agente ou por terceiro em detrimento do menor é que seria incriminado, ficando fora da proteção o ato libidinoso praticado pelo menor.
Em verdade, o legislador não foi feliz na construção do texto do art. 217-A. Melhor seria se houvesse optado por detalhamento semelhante àquele constante no art. 213 ("Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso") [24]; onde se estabelece claramente que tanto o ato libidinoso praticado pelo agente na vítima, quanto aquele praticado por esta em si própria, no agente ou em terceiros, leva à incidência do tipo.
Diferentemente, o art. 217-A fala apenas em praticar outro ato libidinoso, no caso do caput, com menor de catorze anos. Desse modo, para harmonizar a interpretação com a vontade da lei (mens legis), necessário entender que o praticar abrange o "participar" (no sentido de "tomar parte em"); de modo que mesmo sendo passivo o comportamento do maior de idade no ato sexual (no caso, por exemplo, do sujeito que pede ao menor de catorze anos para nele fazer sexo oral, sendo tal ato efetivamente executado), entende-se estar ele praticando o ato libidinoso. Quanto ao presente aspecto, assim ensina Rogério Sanches Cunha (2010, v. 3, p. 257):
A conduta de praticar com menor atos libidinosos abrange tanto o ato sexual tendo a vítima um comportamento passivo (permitindo que com ela se pratiquem os atos) ou ativo (praticando os atos de libidinagem no agente).
Observe-se, ainda, que a tipificação fala em praticar com (ou seja, juntamente com a vítima; e não apenas na vítima); reforçando o entendimento que o núcleo praticar deve ser interpretado no sentido de "tomar parte no ato".
Quando se tratar, não obstante, de ato libidinoso praticado voluntariamente pelo menor em si próprio (automasturbação, por exemplo) não se pode fazer incidir o art. 217-A, mesmo no caso de ato provocado, pois citado dispositivo exige que o agente pratique (participe fisicamente) do ato libidinoso.
Alertamos, não obstante, ser necessário aguardarmos o posicionamento da jurisprudência sobre o alcance do núcleo "praticar" contido no artigo em deslinde, pois desde já antevemos possibilidade concreta de grande polêmica quanto a este assunto.
O § 1º do art. 217-A determina que: "Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no ‘caput’ com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência".
Observa-se, portanto, que as condutas incriminadas previstas no caput (quais sejam: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso) devem também ser consideradas para fins de incidência penal quando se tratar de vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Note-se que o traço marcante do estupro de vulnerável é a não exigência do dissenso da vítima para configuração do delito. Pode até ter consentido, porém entende-se ser tal consentimento viciado por conta dos fatores já estudados.
Apesar de não exigível, é possível, porém, que o crime do art. 217-A seja cometido mediante violência ou grave ameaça, segundo bem pontua Rogério Greco (2010, v. III, p. 523):
No entanto, poderá o delito ser praticado através do emprego de violência física ou mesmo da grave ameaça, como ocorre com o estupro tipificado no art. 213 do Código Penal. Nesse caso, pergunta-se, poderia se falar em concurso de crimes? A resposta só pode ser positiva. Não sendo um elemento constante do tipo do estupro de vulnerável, será possível o reconhecimento do concurso material entre o delito de lesão corporal (leve, grave ou gravíssima), ou a ameaça, com o tipo do art. 217-A do Código Penal.
Assim, não se pode confundir a hipótese de incidência do art. 213 do CP com o campo de aplicação do art. 217-A também do CP. Apesar do art. 213 trazer em sua descrição típica a violência ou grave ameaça; no caso de vítimas vulneráveis, mesmo havendo a violência ou grave ameaça, a incidência deve ser do artigo especial (CP, art. 217-A) e não daquele considerado geral nessa relação (CP, art. 213).
5.5 Tipo subjetivo
O delito de estupro de vulnerável é punido somente em sua forma dolosa, não havendo previsão de modalidade culposa. Entendemos não ser exigível elemento subjetivo do tipo específico (finalidade especial) [25].
5.6 Consumação e tentativa
A consumação se dá com a introdução (parcial ou total) do pênis na vagina, em se tratado de execução através de conjunção carnal.
Em se tratando da prática de outro ato libidinoso, a consumação ocorre no momento do contato físico de natureza sexual com a vítima (sexo oral, anal, masturbação etc.).
A tentativa é perfeitamente possível. O simples convite, contudo, dirigido ao vulnerável para a prática de ato sexual não é suficiente para caracterizar a forma tentada do delito. É necessário o início efetivo da execução da conduta criminosa (qual seja: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso). Isso se dá, por exemplo, quando o agente é surpreendido por policiais em ambiente fechado com a vítima já despida, ficando clara sua intenção de com ela se relacionar sexualmente, mas antes da prática de qualquer ato libidinoso. Nessa circunstância, ingressou-se na fase executória do delito, porém este não se consumou por razões alheias à vontade do agente.
5.7 Formas qualificadas
Estão previstas as seguintes qualificadoras nos §§ 3º e 4º do art. 217-A:
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Os resultados agravadores previstos (lesão corporal de natureza grave e morte) devem sobrevir a título de culpa. Tratam-se de crimes preterdolosos. Havendo dolo quanto ao resultado agravador, a hipótese será de concurso de delitos.
Sobrevindo o resultado agravador, mesmo que não seja consumado o estupro, o agente deve responder pelo crime qualificado em sua forma consumada, considerando a impossibilidade de tentativa em crimes preterdolosos.
A lesão corporal de natureza grave prevista abrange tanto a lesão corporal grave (art. 129, § 1º, do CP) quanto a lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, do CP).