No ano de 2008, o Código de Processo Penal Brasileiro sofreu substanciais alterações com o advento das Leis 11.689 e 11.690, leis estas que trouxeram inovações à nossa legislação processual, buscando melhor adequá-la aos ditames da Constituição Federal de 1988.
Todavia, como era de se esperar, muitas das alterações trazidas ao Codex não se apresentam claras, ao contrário, apresentam-se confusas, suscitando dúvidas, podendo o intérprete desprevenido, ao realizar a interpretação de algumas dessas alterações, chegar a conclusões que contrariam todo o objetivo da reforma procedida pelo legislador, que é fazer de nosso direito processual penal um direito norteado por princípios e garantias constitucionais.
Exemplificando, há de se trazer a comento o art. 155 do Código de Processo Penal que, se lido sem maiores precauções, de forma equivocada, permite ao intérprete chegar ao entendimento de que a prova inquisitorial, seja ela qual for, pode ser utilizada pelo julgador para fundamentar sua decisão, o que in casu seria um retrocesso, haja vista ser tal interpretação totalmente incompatível com um processo penal de viés garantista.
O art. 155 do CPP, alterado pela Lei 11.690/08, passou a ter a seguinte redação, senão vejamos:
"[...] Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas [...]".
Analisando o artigo supra, podemos dizer que o legislador, ao empregar na nova redação do artigo 155 do CPP a palavra "exclusivamente", deu brecha para os operadores do direito, dependendo da maneira como vão interpretá-lo, principalmente se a interpretação for a gramatical (literal), entenderem que o magistrado pode utilizar a prova colhida na investigação policial, produzida à margem do contraditório e da ampla defesa, para fundamentar sua decisão.
Como leciona Aury Lopes Jr., em decorrência da inserção da palavra "exclusivamente" no art. 155 do Diploma Processual Penal, "[...] manteve-se assim, a autorização legal para que os juízes e tribunais sigam utilizando a versão dissimulada, que anda muito em voga, de "condenar com base na prova judicial cotejada com a do inquérito". Na verdade, essa fórmula jurídica deve ser lida da seguinte forma: não existe prova no processo para sustentar a condenação, de modo que vou me socorrer do que está no inquérito. Isso é violar a garantia da própria jurisdição e do contraditório [...]". (p.286).
Entender que ao juiz é permitido utilizar toda e qualquer prova inquisitorial para respaldar sua decisão, é ignorar que estamos em um Estado Democrático de Direito, cujo objetivo principal é a valorização do homem frente ao ente Estado, e esta valorização, em um processo penal, se faz com a observância de um processo garantista, em que para uma condenação, deve o julgador, em regra, se ater tão somente à prova judicializada, produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, como ressalta a primeira parte do artigo de lei ora em estudo (o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial).
Como sabemos, a "verdade real", tão cultuada no processo penal, não passa de um mito, pois, ao longo da instrução probatória o que prevalece é a "verdade processual", que deve ser perquirida em observância às regras do devido processo legal, vez que esta será a verdade que servirá de alicerce para que o julgador forme o seu juízo de convencimento. E mais, essa verdade deve ser sempre suscetível de prova e oposição pela defesa.
Desse modo, em se entendendo que a prova válida a fundamentar uma decisão penal condenatória deve ser somente aquela produzida em fase judicial, presentes o contraditório e a ampla defesa, rechaçamos por completo uma exegese gramatical do art. 155 do CPP. Por meio desta forma de interpretação vamos chegar ao entendimento de que toda e qualquer prova confeccionada em fase administrativa, desde que não seja a única prova, pode ser utilizada pelo julgador para fundamentar a prolação de um édito condenatório.
Visando adequar o disposto no art. 155 do CPP ao sistema jurídico vigente, temos que a melhor solução é interpretá-lo de forma sistemática, confrontando-o com o Direito na sua totalidade (sistema jurídico), com outras normas, com princípios e com valores prestigiados pelo Estado, de maneira a dar-lhe um sentido que encontre consonância com os postulados de um Estado Democrático de Direito, e, sobretudo, com um processo penal garantista.
Assim, segundo a primeira parte do art. 155 do CPP, o juiz, em regra, deve proferir sua decisão baseando-se na prova produzida em fase judicial. Porém, diante da segunda parte do aludido dispositivo, podemos concluir que, excepcionalmente, os elementos informativos colhidos na investigação policial poderão ser utilizados pelo julgador para fundamentar sua decisão, desde que não sejam os únicos, mas, para tanto, referidos elementos devem ser colhidos e/ou produzidos sob o pálio do contraditório e da ampla defesa, do contrário, não poderão em absoluto ser utilizados para respaldar sua decisão.
Porém, exsurge uma indagação: Como falar em prova produzida em investigação policial com observância do contraditório e da ampla defesa, se a fase pré-processual é eminentemente inquisitória?
Encontramos a resposta para a pergunta acima no próprio Código de Processo Penal. É que, com as reformas pontuais ocorridas no ano de 2008, em determinados momentos, o legislador deixou claro e evidente que a inquisitoriedade do inquérito restou temperada, como se afere dos §§ 3º e 4º, do art.159 do CPP, os quais permitem ao Ministério Público, assistente de acusação, ofendido, querelante e ao imputado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico para acompanhar o exame de corpo de delito a ser realizado em fase policial.
Não há dúvida de que os enunciados dos §§ 3º e 4º, do art.159 do CPP se aplicam incondicionalmente à investigação policial, haja vista que as perícias, via de regra, são realizadas nesta fase, e, portanto, em se tratando de provas não repetíveis, não há sentido entender que se aplicam somente em fase judicializada, momento em que o laudo já se encontrará pronto e finalizado.
Portanto, vislumbra-se que com a nova redação dada ao art.159 do CPP, a inquisitoriedade do inquérito restou temperada (mitigada), devendo a autoridade policial, em determinados momentos da investigação (apuração dos fatos), observar segundo mandamentos legais o contraditório e a ampla defesa, mesmo em se tratando de fase pré-processual. É o contraditório permeando ainda que de forma sutil a fase investigativa.
Desta forma, não nos resta dúvida de que a ressalva contida no "caput", do art.155 do CPP, decorrente da palavra "exclusivamente", refere-se tão somente aos elementos de informação colhidos em fase policial com observância do contraditório e da ampla defesa.
Assim, não é de toda e qualquer prova produzida no inquérito que poderá o julgador se valer para fundamentar sua decisão. Este é o pensamento do processualista Eugênio Pacelli de Oliveira, in verbis:
"[...] O texto, entretanto, deixa uma janela perigosamente aberta: a expressão "exclusivamente" parece permitir que tais elementos (da investigação) possam subsidiar a condenação, desde que não sejam os únicos. Não aderimos a essa tese, embora aceitemos a interpretação, do ponto de vista gramatical. É certo que, às vezes, a mudança de versão apresentada na polícia, sem qualquer coação, de qualquer ordem, bem poderia ser questionada em juízo, por ocasião do interrogatório, a fim de saber de sua (in)consistência. No entanto, permitir-se, assim, sem maiores esclarecimentos, eventual aproveitamento de quaisquer elementos da investigação para a condenação nos parece medida inteiramente desarrazoada [...]". (Oliveira, p.292)
Logo, numa interpretação constitucional do art. 155 do Código de Processo Penal, não se apresenta razoável entender que toda e qualquer prova produzida em inquérito, desde que não seja a única, pode ser utilizada como fundamento para respaldar uma decisão condenatória.
Ao revés, pontofinalizando, diante da palavra "exclusivamente" empregada na nova redação do art.155 do Codex Processual, pensamos que, excepcionando de forma excepcionalíssima a primeira parte do citado artigo de lei, os elementos de prova colhidos em fase administrativa somente poderão ser utilizados pelo julgador na formação de seu livre convencimento, se produzidos em respeito ao contraditório e a ampla defesa, e tão somente nesta hipótese, sob pena de se restabelecer uma valorização injustificável da prova produzida em inquérito policial, quando na verdade, em juízo é que os direitos e garantias processuais do acusado são absolutamente observados e assegurados.
Bibliografia
BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova. Os novos arts. 155 e 156 do Código reformado (Lei nº 11.690/08). Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1880, 24 ago. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11593>. Acesso em: 20 maio 2009.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol.I. 3ª Edição. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10ª Edição. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2008.