RESUMO
O objetivo principal é a análise da argumentação jurídica segundo as lições de Chaim Perelman, começando pelas regras de discurso e argumentação, seus limites e consequências. O primeiro capítulo discorre sobre as noções do raciocínio argumentativo, passando pelo chamado gênero epidíctico. Em seguida foram analisados os esquemas e as técnicas argumentativas de Perelman. Dentre elas, por haver maior pertinência temática com a proposta empírica do estudo, qual seja, o confronto entre a teoria da argumentação e os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, elegeu-se a argumentação quase-lógica e a argumentação baseada na estrutura do real. Neste ínterim, realizou-se a análise dos votos dos Ministros no julgamento do leading case que tratou da concretização do direito fundamental à segurança pública. Por fim, esquadrinhou-se uma conclusão que questiona a utilidade e a necessidade do discurso argumentativo com a finalidade de validar e legitimar os julgamentos.
ABSTRACT
The following article analyzes the argumentative speech according to Chaim Perelman’s lessons. The study starts defining rules of argumentative speech, it’s boundaries and effects. The first chapter brings the definition of argumentative speech and also the concept of "epidíctico" gender. Following this chapter, Perelman’s argumentative systems were assayed as well as his argumentative techniques. Due to it’s relation to the empirical study, which is the confrontation of his law speech thesis and votes from judges of Supreme Federal Court, two techniques were elected: almost-logic argumentation and based on structure of the real argumentation. Thus, every vote of Supreme Federal Court judges were put in confrontation against Perelman’s thesis in leading case that manages the discussion of public safety’s materialization. The conclusion tries to inquire the value and necessity of argumentative speech in order to validate and legitimate trials.
Palavras-chave: discurso argumentativo; técnicas argumentativas; estrutura dos argumentos individualizados; direitos fundamentais; validade.
Key-Words: argumentative speech; argumentative techniques; individual argumentative systems; fundamental rights; validation.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO . 2 NOÇÕES DO RACIOCÍNIO ARGUMENTATIVO . 2.1 GÊNERO EPIDÍCTICO. 3 ESQUEMAS ARGUMENTATIVOS DE PERELMAN. 3.1 TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS. 3.1.1 Argumentação quase-lógica . 3.1.2 Argumentação baseada na estrutura do real. ANÁLISE DOS VOTOS DOS MINISTROS DO STF NA STA nº. 223/PE. 4.1.ELLEN GRACIE. 4.2.CELSO DE MELLO. 4.3.GILMAR MENDES. 5. DISCURSO ARGUMENTATIVO: VALIDADE e JUSTIÇA. 6. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
A presente monografia busca perquirir, resumidamente, se, quando e de que forma o raciocínio dialético é utilizado nos julgamentos dos Ministros que compõe o Supremo Tribunal Federal.
Para isso, tem-se em consideração além dos votos proferidos em leading case, as regras de argumentação que compõe as técnicas desenvolvidas por Chaim Perelman.
O objetivo do exame destas técnicas é fomentar o debate sobre como a persuasão racional pode direcionar as decisões judiciais, delineando a forma com que os Ministros convencem uns aos outros.
Em outras palavras, o estudo gira em torno da análise da persuasão racional, elemento necessário para julgar os casos concretos e imprescindível para que tais decisões alcancem um teor de Justiça e validade.
Iniciou-se com a análise do raciocínio dialético contraposto ao raciocínio analítico como forma argumentativa. Pode-se dizer que o primeiro, a priori relegado ao mundo dos sofistas, já não é mais enxergado como na antiguidade, enquanto mero expediente retórico para vencer debates políticos e jurídicos. Na modernidade, tal raciocínio é tido como um pressuposto de legitimidade das decisões judiciais.
Ocorre que, com o surgimento de valores e princípios enquanto fonte do Direito, a aplicação da ciência jurídica sofreu uma brusca transformação. Se antes, o raciocínio analítico dos juízes limitava-se à subsunção dos fatos às normas (nos termos da teoria positivista clássica), hoje, tal pensamento revela-se insuficiente para acomodar uma escorreita e legítima aplicação do Direito.
É neste cenário que surge um discurso dialético (impregnado de uma nova retórica), preocupado em pesquisar as formas e os limites para inserir nos julgamentos tipicamente analíticos, os valores que permeiam a Constituição Federal.
Afinal, quais técnicas de persuasão podem ser usadas e como tal procedimento torna a decisão final mais "correta", ainda que não seja a "verdadeira"?
Daí a importância do estudo no que tange a encontrar o discurso argumentativo mais adequado para auxiliar a construção da decisão mais justa, equitativa, razoável e conforme o Direito.
Uma breve exposição das noções do raciocínio argumentativo demonstra como hoje se deve privilegiar tal pensamento em detrimento do raciocínio analítico, tendo em vista a evolução que o Direito sofreu nos últimos anos.
Buscou-se também conceituar o gênero epidíctico enquanto prática cada vez mais difundida no bojo da fundamentação nas decisões judiciais brasileiras.
Após, segue-se um exame minucioso, com citações de Perelman, acerca dos esquemas argumentativos e as técnicas que o compõem. Tal análise revela-se imprescindível para entendimento do julgado que foi objeto de análise no item 4.
Em seguida, foram transcritas passagens dos votos e dos argumentos utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal ao julgar a suspensão de tutela antecipada nº. 223/PE, leading case que inaugurou novo entendimento da Corte acerca do dever do Estado em prestar segurança e saúde pública para as vitimas da violência urbana.
Finalmente, observou-se o discurso de validez que deve permear toda decisão judicial. A conclusão do trabalho busca tecer reflexões críticas sobre as técnicas mais empregadas naquele julgamento, bem como apontar eventuais incongruências, data máxima vênia.
2. NOÇÕES DO RACIOCÍNIO ARGUMENTATIVO
Antes de abordar os esquemas argumentativos de Perelman e adentrar nas suas técnicas, cumpre tecer algumas considerações sobre o raciocínio argumentativo e seus principais elementos e características.
De início, deve-se saber que a persuasão racional não busca impor certezas e saídas herméticas ao Direito, tampouco busca contrapor-se ao evidente. Não. Como ensina o jusfilósofo polonês:
A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidencia, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidencia. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa as certezas do cálculo. [01]
Assim, argumentar nunca pode implicar em impor algo a alguém, uma vez que a premissa básica do raciocínio argumentativo é que se alguém está disposto a convencer outrem, deve, antes disso, estar propenso a ser convencido por aquele.
Com efeito, a despeito da insegurança que tal pensamento argumentativo possa transmitir, em tempos em que urge uma jurisprudência mais uniforme, não se mostra mais adequado aplicar o pensamento cartesiano em sua concepção clássica.
Ocorre que o método cartesiano-racional exclui uma lista de possíveis decisões judiciais mais coerentes e adequadas aos valores que estão em jogo, e em última análise, reduz o papel da interpretação à quase zero.
Isso porque muitos filósofos acreditam que tal pensamento, por admitir premissas absolutas (e exatas) só deve ser aplicado às ciências naturais, e nunca às ciências humanas, como o Direito.
A indicação de uma única saída, é, diga-se, temerária ao Direito, tal qual a ciência aplicada que é, pois segundo lição de Lenio Streck: "Direito é um saber prático". [02]
Logo, no âmbito jurídico, o pensamento positivista clássico alinha-se ao método cartesiano, na medida em que, partindo da necessidade de subsumir o fato à norma, se limita a apontar uma única certeza. Uma única resposta "verdadeira".
No entanto, é cediço que tal raciocínio analítico se tornou insuficiente para dialogar com o arcabouço legislativo infra e constitucional na maioria dos ordenamentos vigentes, uma vez que estes estão cada vez mais impregnados de postulados axiológicos.
Diante deste cenário, surge a necessidade de se rever a retórica clássica argumentativa, para fins de solucionar o seguinte impasse jurídico: como solucionar da maneira mais racional possível os casos concretos, a fim de se alcançar uma verdade justa e legal, eis que o raciocínio analítico é precário e incompleto?
O que se deve ter em mente é que o raciocínio argumentativo está preocupado com o "... estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao assentimento." [03]
Em outras palavras, o método dialético (que se contrapõe ao cartesiano) encontra na argumentação uma forma de convencer os espíritos. O objetivo da argumentação moderna, portanto, não é indicar a saída correta, mas sim agregar argumentos (por meio das técnicas) que viabilizem uma discussão racional para se chegar a tanto. Nesse sentido, os espíritos mencionados acima seriam as pessoas envoltas em todas as nuances sociais que necessitam do Direito para solucionar conflitos e restabelecer a ordem.
Assim, a teoria argumentativa não busca estudar como achar a verdade, mas como usar as técnicas que podem levar à adesão dos espíritos a um determinado pensamento. Ou seja, a teoria da argumentação estuda os meios de provas para que o orador obtenha essa adesão dos ouvintes reunidos.
Mesmo porque a verdade, para muitos, não existe. O que existe é uma solução correta encontrada a partir do consenso de todos ou da maioria.
Neste passo, registre-se que o assentimento ao discurso do orador deve levar em consideração aqueles a quem ele se dirige. O grupo de pessoas interpeladas pelo orador forma o seu auditório.
Veja-se o conceito de auditório, segundo Robert Alexy: "A audiência é o agrupamento daqueles a quem o orador deseja influenciar com sua argumentação" [04]. Diga-se que Perelman compartilha do mesmo conceito para auditório.
De outra monta, ele defende que o orador deve construir seu auditório mentalmente, uma vez que cada ouvinte se comporta distintamente do outro, e de acordo com seu papel na sociedade.
Dito de outro modo: para Perelman, o orador deve se adaptar ao auditório (que em regra é heterogêneo), para concluir que é o auditório quem vai formatar o orador. Confira-se:
O auditório presumido é sempre, para quem argumenta, uma construção mais ou menos sistematizada. Pode-se tentar determina-lhe as origens psicológicas ou sociológicas; o importante, para quem se propõe a persuadir efetivamente indivíduos concretos, é que a construção do auditório não seja inadequada à experiência. [05]
Mais a frente, complementa:
O conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz.
[...]
As considerações sociológicas úteis ao orador podem versar sobre um objeto particularmente preciso, a saber, as funções sociais cumpridas pelos ouvintes. Com efeito, estes costumam adotar atitudes ligadas ao papel que lhes é confiado em certas instituições sociais. [06]
O que se vê, é que o orador convincente deve estudar seu auditório para então decidir sobre quais argumentos lançar a fim de persuadi-lo. É partindo dos ouvintes que o orador desenvolverá sua argumentação, lançando mão daquela mais conveniente à situação concreta.
Como transcrito, Perelman entende que esse conhecimento do auditório é condição prévia para uma argumentação eficaz, pois a construção do mesmo não pode ser inadequada à experiência, pena de se tornar um orador contumaz, desprovido de quaisquer razões. Ilustra tal circunstância com o seguinte exemplo:
O grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito do seu auditório. Esse não é o caso do homem apaixonado que só se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este último possa exercer certa influencia sobre as pessoas sugestionáveis, seu discurso o mais das vezes parecerá desarrazoado aos ouvintes. O discurso do apaixonado, afirma M. Pradines, embora possa tocar, não produz um som "verdadeiro". Sempre a verdadeira figura "rebenta a máscara lógica", pois diz ele, "a paixão é incomensurável para as razões". O que explica esse ponto de vista é que o homem apaixonado, enquanto argumenta, o faz sem levar suficientemente em conta o auditório a que se dirige; empolgado por seu entusiasmo, imagina o auditório sensível aos mesmos argumentos que o persuadiram a ele próprio. O que a paixão provoca é, portanto, por esse esquecimento do auditório, menos uma ausência de razões do que uma má escolha de razões. [07]
Portanto, a adequação do orador ao auditório, além de condição prévia para persuadir os ouvintes, é também essencial para todo o desenvolvimento da argumentação. De fato, o desenvolvimento da argumentação deve ser realizado continuamente ao longo de toda a dialética, renovando-se os argumentos conforme seja modificado o auditório.
Uma questão intrigante que permeia o raciocínio argumentativo é saber o que vem a ser persuadir e se, em algum aspecto, se distingue de convencer um auditório.
Para Perelman, a distinção pode ser caracterizada da seguinte maneira:
Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação.
[...]
Em contrapartida, para quem está preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais do que persuadir.
[...]
Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional. [08]
Observe-se que Perelman distingue as categorias de formação do juízo em dois aspectos: nos fins da argumentação e na qualidade do auditório ao qual se dirige o orador.
Face o segundo critério, ele sugere a existência de uma argumentação capaz de atingir "todo ser racional".
Trata-se do denominado auditório universal. O termo foi cunhado pelo jusfilósofo polonês para definir o ideal de ouvintes daquele orador preocupado com a adesão dos espíritos aos seus argumentos, de maneira racional e em escala máxima.
A justificativa com a preocupação em dialogar com o auditório universal advém da insuficiência e da precariedade de se convencer um auditório particular e restrito:
Toda argumentação que visa somente a um auditório particular oferece um inconveniente, o de que o orador, precisamente na medida em que se adapta ao modo de ver de seus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em teses que são estranhas, ou mesmo francamente opostas, ao que admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele momento, ele se dirige. [09]
Diz ainda Perelman:
O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo, tem sua própria concepção do auditório universal, e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história, real, verdadeiro e objetivamente válido. [10]
Por conseguinte, argumentar perante um auditório particular não é o ideal perelmaniano, vez que oportuniza o surgimento de contradições e incompatibilidades entre os argumentos não destinados a quem estava fora do grupo, desnudando a fraqueza das teses não acolhidas à unanimidade.
Ademais, ainda segundo o autor, cada orador deve ter seu próprio auditório universal, sempre levando-se em consideração a cultura de cada grupo de ouvintes.
Estes são, em linhas breves e gerais, os principais elementos e características do raciocínio argumentativo, segundo a lição perelmaniana, indispensáveis ao desenvolvimento dos tópicos a seguir.
2.1 GÊNERO EPIDÍCTICO
Dentre os tipos de gênero oratório, além do deliberativo e judiciário, pode-se citar o gênero epidíctico, definido da seguinte forma por Perelman:
Contrariamente aos debates políticos e judiciários, verdadeiros combates em que os dois adversários procuravam, acerca de matérias controvertidas, ganhar a adesão de um auditório que decidia o desfecho de um processo ou de uma ação por empreender, os discursos epidícticos não eram nada disso. Um orador solitário que, com frequência, nem sequer aparecia perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava um discurso ao qual ninguém se opunha, sobre matérias que não pareciam duvidosas e das quais não se via nenhuma consequência prática. [11]
A despeito de não relevar, segundo a transcrição acima, qualquer interesse para a argumentação, ainda mais aquela travada no âmbito jurídico, o gênero epidíctico revela-se como técnica argumentativa muito utilizada nos julgados brasileiros.
É que, ainda na lição perelmaniana,
[...] a argumentação do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade da adesão a certos valores, sobre os quais não pairam dúvidas quando considerados isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles. O orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório, valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe para amplificar e valorizar. [12]
Por tais razões, o discurso epidíctico, como se busca demonstrar, é largamente utilizado nas fundamentações judiciais nos nossos Tribunais.
Observe-se que, ao se valer dos valores comuns para aumentar a intensidade da adesão dos espíritos aos discursos, o orador epidíctico atua de forma semelhante aos juízes nas suas decisões, na medida em que muitas delas são pautadas nestes valores comuns. Citem-se os valores comuns a qualquer sociedade, como a solidariedade, a compaixão, o nacionalismo etc.
É exatamente esta a conclusão do mestre de Bruxelas:
Os discursos epidícticos têm por objetivo aumentar a intensidade de adesão aos valores comuns do auditório e do orador; seu papel é importante, pois, sem esses valores comuns, em que poderiam apoiar-se os discursos deliberativos e judiciários? [13]
Foi o que ocorreu, em certa medida, na decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da STA nº. 223/PE examinada no item 4 abaixo, como se demonstrará.