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Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal

01/02/2001 às 00:00
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A lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, elaborada e promulgada, às pressas, no decorrer do clamor da opinião pública que tomou conta das mídias, revoltada com os atos de improbidade reinante no País, além do seu excessivo tecnicismo e complexidade para ser aplicada no âmbito da União, dos 27 Estados e dos 5.559 Municípios, contém falhas e impropriedades. Segundo alguns estudiosos da matéria conteria, também, vários dispositivos inconstitucionais. Muitos Municípios, sem assistência jurídica gratuita por parte dos Estados ou da União, através de órgãos competentes, teriam que contratar técnicos especializados, implicando superação do limite de despesas com pessoal. Outrossim, a criminalização de infrações político-administrativas que se seguiu com a promulgação da lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, impondo penas exacerbadas poderá criar impasses políticos-institucionais ou então conduzir à desmoralização do Poder Judiciário, incumbido de aplicar a lei a cada caso concreto. A correta utilização de recursos financeiros depende, fundamentalmente, da honestidade do administrador e de seus agentes públicos. Não há lei que possa transformar o desonesto em honesto, o ímprobo em probo; pode, quando muito, intimidá-lo com ameaças representadas por sanções penais. Como não há lei perfeita, a possibilidade, bem como, a probabilidade de os atos de improbidade nas três esferas de Poder e no âmbito das três entidades políticas, continuará em aberto, ainda que, em proporção menor.

Acreditamos, contudo, que se não faltar vontade política dos agentes públicos em geral e se for bem aplicada ela contribuirá para a efetiva implementação de planos de governo, através da lei orçamentária anual que, embasada na lei do plano plurianual e na lei de diretrizes orçamentárias, passará da teoria para à prática, constituindo-se em um valioso instrumento do exercício de cidadania, à medida em que a fiel execução orçamentária representará respeito ao direcionamento das despesas públicas, aprovadas pelo órgão de representação popular.

Neste modesto trabalho analisaremos os polêmicos dispositivos dos artigos 19 e 20, que cuidam respectivamente da fixação de limites de despesas de pessoal por entidades políticas e por Poderes e órgão ministerial.

Prescreve o art. 19:

Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados:

I - União: 50% (cinqüenta por cento);

II - Estados: 60% (sessenta por cento);

III - Municípios: 60% (sessenta por cento)(1).

§ 1º Na verificação do atendimento dos limites definidos neste artigo, não serão computadas as despesas:

I - de indenização por demissão de servidores ou empregados;

II - relativas a incentivos à demissão voluntária;

III - derivadas da aplicação do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição(2);

IV - decorrentes de decisão judicial e da competência de período anterior ou da apuração a que se refere o § 2º do art. 18(3);

V - com pessoal, do Distrito Federal e do Estados do Amapá e Roraima, custeadas com recursos transferidos pela União na forma dos incisos XIII e XIV do art. 21 da Constituição e do art. 31 da Emenda Constitucional nº 19;

VI - com inativos, ainda que por intermédio de fundo específico, custeadas por recursos provenientes:

a) da arrecadação de contribuições dos segurados;

b) da compensação financeira de que trata o § 9º do art. 201 da Constituição;

c) das demais receitas diretamente arrecadadas por fundo vinculado a tal finalidade, inclusive o produto da alienação de bens, direitos e ativos, bem como seu superávit financeiro.

§ 2º Observado o disposto no inciso IV do § 1º, as despesas com pessoal decorrentes de sentenças judiciais serão incluídas no limite do respectivo Poder ou órgão referido no art. 20.

Esse dispositivo, fundado no art. 169(4) da CF, mantém os mesmos percentuais fixados pela Lei Complementar nº 96/99 que restou revogada, porém, flexibilizou esses percentuais como se depreende das exclusões do § 1º.

A expressão em cada período de apuração deve ser entendida em consonância com o regime de competência referido no § 2º do art. 18. Regime de competência significa aquele em que receitas e despesas são atribuídas aos exercícios de conformidade com a data da ocorrência do fato gerador, independentemente da data do efetivo recebimento ou do pagamento. Daí os resíduos ativo (receita lançada, mas não arrecadada) e passivo (despesa empenhada, mas não paga) que constituem receitas a arrecadar e restos a pagar, respectivamente.

Receita corrente líquida quer dizer aquela disponível. Receita corrente, segundo o § 1º, do art. 11 da Lei nº 4.320/64 é aquela constituída da receita tributária, da receita originária e de transferências correntes (as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado para atender despesas classificáveis em despesas correntes).

Finalmente, não concordamos com o posicionamento doutrinário no sentido de sua inconstitucionalidade em relação aos limites fixados para os Estados e Municípios. Ante a clareza do texto do art. 169 da CF, este só pode ser entendido como uma exceção à regra do § 1º do art. 24 da CF, que limita à edição de normas gerais por parte da União, no exercício de competência legislativa concorrente. Afinal, não pode existir dois dispositivos constitucionais antagônicos entre si. Outrossim, a lei sob exame não é meramente federal, mas, nacional. Submete todas as entidades componentes da Federação a um tratamento mais ou menos uniforme no que tange às despesas com pessoal, fixando o limite de 50% para a União e limites maiores para as entidades regionais e locais.

O artigo 20, a seguir transcrito, como não poderia deixar de ser, fixa os limites por Poder e para o órgão ministerial.

Art. 20. A repartição dos limites globais do art. 19 não poderá exceder os seguinte percentuais:

I - na esfera federal:

a) 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da União;

b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;

c) 40,9% (quarenta inteiros e nove décimos por cento)(5) para o Executivo, destacando-se 3% (três por cento) para as despesas com pessoal decorrentes do que dispõe os incisos XIII e XIV do art. 21 da Constituição e o art. 31 da Emenda Constitucional nº 19, repartidos de forma proporcional à medida das despesas relativas a cada um destes dispositivos, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar;

d) 0,6% (seis décimos por cento) para o Ministério Público da União;

II - na esfera estadual:

a) 3% (três por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do estado;

b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;

c) 49% (quarenta e nove por cento) para o Executivo;

d) 2% (dois por cento) para o Ministério Público dos Estados;

III - na esfera municipal:

a) 6% (seis por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Município, quando houver(6);

b) 54% (cinqüenta e quatro por cento) para o Executivo.

§ 1º Nos Poderes Legislativo e Judiciário de cada esfera, os limites serão repartidos entre seus órgãos de forma proporcional à média das despesas com pessoal, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar(7).

§ 2º Para efeito deste artigo entende-se como órgão:

I - o Ministério Público;

II - no Poder Legislativo:

a) Federal, as respectivas Casas e o Tribunal de Contas da União(8);

b) Estadual, a Assembléia Legislativa e os Tribunais de Contas;

c) do Distrito Federal, a Câmara Legislativa e o Tribunal de Contas do Distrito Federal;

d) Municipal, a Câmara de Vereadores e o Tribunal de Contas do Município, quando houver;

III - no Poder Judiciário:

a) Federal, os tribunais referidos no art. 92 da Constituição;

b) Estadual, o Tribunal de Justiça e outros, quando houver.

§ 3º Os limites para as despesas com pessoal do Poder Judiciário, a cargo da União por força do inciso XIII do art. 21 da Constituição, serão estabelecidos mediante aplicação da regra do § 1º.

§ 4º Nos Estados em que houver Tribunal de Contas dos Municípios(9), os percentuais definidos nas alíneas a e c do inciso II do caput serão, respectivamente, acrescidos e reduzidos em 0,4% (quatro décimos por cento)(10).

§ 5º Para os fins previstos no art. 168 da Constituição(11), a entrega dos recursos financeiros correspondentes à despesa total com pessoal por Poder e órgão será a resultante da aplicação dos percentuais definidos neste artigo, ou aqueles fixados na lei de diretrizes orçamentárias.

§ 6º (VETADO)

É um dos dispositivos mais polêmicos da LRF. Alega-se afronta ao princípio da não vinculação de receitas tributárias, bem como, contrariedade ao princípio da separação dos Poderes. A primeira objeção não procede, à medida em que a norma em questão apenas fixa limites de despesas, não promovendo qualquer vinculação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, o que é vedado pelo inciso IV do art. 167 da CF.

A segunda objeção é bem mais séria. Aparentemente, a imposição de limites de despesas com pessoal para todos os Poderes, tendo em vista a autonomia orçamentária deles, conflitaria com o princípio federativo inserto no art. 2º da CF. Impõe-se sua interpretação conjugada com o art. 19. Se questionado esse artigo 20 teria que questionar, necessariamente, o artigo antecedente, que tem expresso fundamento no art. 169 da Carta Política. De fato, como exigir que a União limite suas despesas de pessoal ativo e inativo a 50% da receita corrente líquida, sem estabelecer percentuais para cada Poder? O orçamento fiscal da União compreende as dotações referentes aos três Poderes (§ 5º do art. 165 da CF), de sorte que, se há um limite global para a União, este deve ser repartido proporcionalmente entre os Poderes, considerando o percentual de participação de cada um deles e do órgão ministerial no bolo da receita pública. Outrossim, de nada adiantaria o Executivo ater-se ao seu percentual se outros Poderes não tivessem limites, implicando superação do limite global da União, que é de 50% (soma dos percentuais atribuídos aos três Poderes e ao Ministério Público). Só para citar, no âmbito municipal, cada vereador de São Paulo pode gastar, discricionariamente, até R$93.000,00 por mês, para remunerar 21 assessores de confiança, o que dá em média R$4.428,00 por assessor, ou seja, pouco menos que a própria remuneração do vereador. O exemplo fala por si próprio. Ainda que o Executivo municipal respeitasse o seu limite, o limite global poderia ser facilmente superado se não houvesse limite de despesas com pessoal, por parte do Legislativo. Não se pode confundir independência e harmonia com independência e autonomia. Em matéria de execução de despesas, função típica do Executivo, todos os Poderes e órgãos devem se submeter às normas uniformes da lei nacional. Cada Poder só é "soberano" no exercício de atribuição que lhe é própria.

Toda essa dificuldade existe porque a Federação Brasileira é atípica. resultou de um movimento centrífugo, e não, centrípeto como ocorreu os Estados Unidos da América, o que explica o centralismo acentuado. Por outro lado, existem contradições derivadas da Carta Política de 1988. A Constituição foi elaborada para agasalhar o regime parlamentar, mas acabou prevalecendo, no último instante, o regime presidencialista. Daí o fortalecimento do Parlamento em detrimento das atribuições do Presidente da República. Como se isso não bastasse, há uma tendência de o princípio da independência e harmonia dos Poderes evoluir para o de independência e autonomia, aumentando o exercício de funções atípicas desses Poderes. Se essa tendência continuar poderemos ter três Estados dentro do Estado Federal Brasileiro. Para o Executivo firmar-se como tal só falta instituir o contencioso administrativo, pois, já detém o poder ilimitado de legislar por meio de Medidas Provisórias. Outros Poderes, também, estão exercitando, com relativa intensidade, as atribuições típicas do Executivo. Gerir recursos financeiros não se harmoniza com a missão de legislar, nem com a de julgar, pois é próprio do Executivo. E mais, os Chefes dos três Poderes podem convocar as Forças Armadas para garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem como prescreve o art. 142 da CF, apesar de a Carta Política atribuir ao Presidente da República o seu comando supremo (art. 84, inciso XIII). No confronto entre os Poderes, pergunta-se, a convocação de qual deles deve atender as Forças Armadas? Todas essas peculiaridades dificultam o controle concentrado da gestão financeira da Administração Pública em geral, através de uma lei de vocação nacional e constituem óbices que comprometem a governabilidade. Caberá ao STF, como guardião da Carta Magna, dar a última palavra sobre a constitucionalidade ou não do dispositivo sob comento, sendo certo que em sede de liminar na ação direta de inconstitucionalidade foi negado o pedido de suspensão dos efeitos do citado art. 20 por seis votos a cinco (Adin nº 2.238-5, Rel. Min. Ilmar Galvão; Requerentes: Partido Comunista do Brasil e outros, j. 11-10-2000).

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Parece-nos fora de dúvida, contudo, que o exercício de funções típicas do Executivo por qualquer dos Poderes submete-o à observância das mesmas normas que o Executivo deve cumprir.


NOTAS

1. No âmbito do Município de São Paulo, desde a década de oitenta, existe um limite de despesas com o funcionalismo para efeito de reajuste salarial. Esse limite que era de 58% da receita corrente passou para 40% a partir do advento da Lei nº 11.722, de 13-02-95.

2. A exclusão, do limite global da União, das despesas decorrentes da convocação extraordinária do Congresso Nacional não deixa de ser uma forma de manifestação do privilégio de quem tem o poder de legislar.

3. As despesas decorrentes de condenação judicial do período de competência são incluídas nos limites, conforme prescreve o § 2º.

4. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

5. Na verdade, o limite do Executivo federal é de 37,9%, pois 3% referem-se às despesas com pessoal ativo e inativo do Distrito Federal e de ex territórios de Amapá e Roraimã, conforme disposições aí referidas.

6. Apenas os Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro possuem Tribunal de Contas, recepcionados pela Carta Política de 1988, que vedou a criação de novos Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais (§ 4º do art. 31).

7. Cabe ao Poder Executivo fornecer os dados sobre a receita líquida dos períodos mencionados.

8. Na realidade, o TCU não é órgão do Legislativo Federal. Apenas tem como uma de suas funções a de auxiliar o Congresso Nacional no controle externo da execução orçamentária. O mesmo acontece em relação aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios.

9. A Constituição Federal de 1988 veda o Município de criar Tribunal ou Corte de Contas, mas não proibe o Estado de instituir Tribunal de Contas dos Municípios para apreciar e julgar especificamente as contas dos Municípios baseados em seu território.

10. Os percentuais de acréscimo e de redução, ao que tudo indica, foram estabelecidos aleatoriamente, pois, até hoje, ao que saibamos, nenhum Estado instituiu Tribunal específico para apreciar e julgar contas dos Municípios.

11. São os chamados duodécimos (1/12 da verba orçamentária pertencente aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Público) que o Executivo deve entregar até o dia 20 de cada mês. Resta inexequível esta norma que determina a entrega dos recursos financeiros com observância dos percentuais definidos no caput, pois não existe e nem pode existir dinheiro carimbado para uso específico. Qualquer controle só poderia ser a posteriori.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1354. Acesso em: 29 mar. 2024.

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