Apesar das declarações dadas a imprensa pelo Dr. Everardo Maciel, Secretário da Receita Federal ("Elisão fiscal é coisa de contribuinte esperto", "Elisão é contra a isonomia"), em defesa do projeto de lei que resultou na lei complementar 104 de 10.02.2001, seu texto não nos parece esdrúxulo, nem prejudicial ao contribuinte, se interpretado de forma sistemática com o resto da lei modificada, a lei 5.172/66, o Código Tributário Nacional e o resto do ordenamento jurídico.
A LC 104, cognominada de lei contra a elisão fiscal ou lei contra o planejamento tributário, não retirou, nem poderia tê-lo feito, o direito do contribuinte de buscar a forma menos onerosa de pagar os seus tributos.
Vige no sistema jurídico o que Victor Ucmar, jurista italiano que há pouco visitou Salvador, o princípio da autotributação. Ao contrário do que ocorria no Império, no Estado de Direito cabe ao povo, através dos seus representantes no Parlamento, nas Casas Legislativas, a autorização para que seja retirado do seu patrimônio particular a parcela chamada tributo e a dimensão dessa retirada.
Esse, o conteúdo do princípio da legalidade tributária (v. art. 5º, II e 150, I da CF). A tributação representa uma exceção ao princípio maior, o da propriedade privada, postulado fundamental do regime da livre iniciativa, pelo qual nossos constituintes de 88 optaram (v. art. 170, III e 173 caput da CF).
Por isso, se fala, em direito tributário, no princípio da estrita legalidade ou da tipicidade cerrada. Toda a hipótese do fato, nos seus vários aspectos, as pessoas envolvidas, a base de cálculo e a alíquota de qualquer tributo têm que estar minuciosamente previstas em lei, sob pena dele não poder ser exigido.
É que só o Poder Legislativo tem o poder de dispor, da propriedade privada (v. art. 48, I da CF). Nunca o Poder Executivo, que tem interesse na arrecadação, cada vez menor para cobrir os objetivos estatais.
Logo, não fazem sentido as expressões emitidas pelo Dr. Everardo.
Ao contribuinte cabe o dever de pagar o tributo, conforme a lei, que é um texto, que para ser aplicado merece interpretação. Elisão é um expediente utilizado pelo contribuinte para atingir um impacto tributário menor, em que se recorre a um ato ou negócio jurídico real, verdadeiro, sem vício no suporte fático, nem na manifestação de vontade, o qual é lícito e admitido pelo sistema jurídico brasileiro.
É um proceder legalmente autorizado, que ajuda a lei tributária a atingir a sua finalidade extrafiscal, quando presente. Diferente da evasão fiscal, são utilizados meios legais na busca da descaracterização do fato gerador do tributo. Pressupõe a licitude do comportamento do contribuinte. É uma forma honesta de evitar a submissão a uma hipótese tributária desfavorável.
Na evasão fiscal, o contribuinte busca, antes ou depois da submissão a uma hipótese tributária desfavorável, um modo de mascarar seu comportamento de forma fraudulenta. Aí é diferente e cabe a Receita utilizar todas as suas prerrogativas de função administrativa para evitar o ilícito.
Nada obsta, por exemplo, que uma empresa que trabalhe com uma matéria prima importada, excessivamente tributada, descubra uma outra matéria substituta, com classificação fiscal diferente, que, quando importada, pagará menos imposto de importação. E que evite com tal comportamento um maior impacto tributário sobre a sua economia. Ganha a empresa e ganha o consumidor.
A LC 104/01, nesse aspecto, introduz no art. 116 do CTN o seguinte parágrafo único: "A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária" (grifo nosso).
Dissimular é ocultar, encobrir. Uma hipótese de evasão fiscal. É a figura que mais costuma ser confundida com elisão fiscal, mas guarda diferenças. Na simulação tem-se a pactuação de algo distinto daquilo que realmente se almeja, com o fito de se obter vantagem. Uma verdade aparente (jurídica) encobrindo uma verdade real, que não é claramente perceptível.
Não duvidamos da boa intenção da Receita Federal em propor e do Congresso Nacional em aprovar mais essa regra, a fim de evitar a burla ao Fisco. É preciso, contudo, saber separar o joio do trigo. A rigor, mesmo antes dessa regra, a Receita, já vinha, legitimamente, praticando a desconsideração de atos e negócios jurídicos fraudulentos com arrimo no art. 102 do Código Civil e 118 do Código Tributário Nacional.
Não concordamos, portanto, com a versão noticiada por alguns jornais de que a lei da elisão fiscal mantém brechas. O que ela mantém jamais poderia ser expurgado.