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Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito.

A Lei Maria da Penha

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08/10/2009 às 00:00
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A Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.

Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A construção jurídica dos direitos da mulher; 3.O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher; 4. As noções de igualdade e discriminação; 5. A ratio das ações afirmativas e a Lei Maria da Penha; 6. As ações afirmativas adotadas pela Lei Maria da Penha; Epílogo.


1. Aspectos introdutórios

A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana, como das estruturas de poder que a partir dela se formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: "a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência".

No direito internacional, a guerra de conquista somente foi efetivamente proscrita no início do século XX; [01] em meados do mesmo século convivíamos com possessões coloniais [02]; e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade; [03] não sendo demais realçar que, até então, a denominada "legítima defesa preventiva", tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não freqüentara os anais dos tribunais internacionais.

No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, "todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros." [04] O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.

Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia entre ricos e pobres, somente admitindo a participação política dos primeiros, não dos últimos. [05] Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão da guerra de secessão, quase levando ao fim a Federação, [06] como, ainda no Século XX, ensejava calorosos debates em torno da política segregacionista de alguns Estados-Membros. [07]

A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (v.g.: na Roma antiga, todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sócio-cultural podem ser consideradas discriminatórias com o evolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.

Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material. Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, também denominada "Lei Maria da Penha", [08] com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1ª) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2ª) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.


2. A construção jurídica dos direitos da mulher

A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia, (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão, e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita seja alcançado um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais. O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo, "não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vóis sois um em Cristo Jesus" (Gálatas, 3: 28). Samuel Pufendorf (1632-1694), por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também defendeu a igualdade dos homens na natureza. [09] Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.

Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que "não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do que o homem." [10]

O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.

O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets. [11]

Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que "a disciplina de conflitos do art. 15, § 1º e § 2º (2ª frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em contraste com o art. 3º, § 2º, da GG". [12] Em 8 de janeiro de 1985, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as "Disposizioni Sulla Legge in Generale", que antecediam o Código Civil e, até a entrada em vigor da Lei nº 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado), disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais [13] e patrimoniais [14] entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido, acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela lei nacional do pai. [15] O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença nº 71/1987, reconheceu que "as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade", não podendo destoar da Constituição. [16] Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da "Disposizioni Sulla Legge in Generale", por violar o princípio específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges [17] e o princípio geral da igualdade perante a lei. [18] Na sentença nº 477/1987, o Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 20 das referidas Disposições. [19]

No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para Declaração Universal dos Direitos Humanos; [20] e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada, em 1933, na VII Conferência Internacional Americana, realizada em Montevidéu, [21] (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada, em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, [22] e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX Conferência Internacional Americana. [23] No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979, [24] e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001. [25]

Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.

A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranqüilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.

O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.

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3. O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher

Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e morais. [26] Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de "ordem suprema do Estado". Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que permitam a sua tutela e garantia. [27]

Não é por outra razão que o constitucionalismo contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que "todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo...". A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que "em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo" (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo, que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.

O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza..."), [28] (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art. 5º, I – "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações...") [29] e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II – "... nos termos desta Constituição"). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (v.g.: art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, a e b). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.

Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.


4. As noções de igualdade e discriminação

No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição humana reconhecida. [30] Nessa linha, a existência de referenciais de análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada conseqüência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma, e proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e conseqüência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.

A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a "essência igualitária", legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, o seu art. 179, XIII, com inegável plasticidade, dispunha que "a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue".

A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do Século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, a estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, "a lei proíbe tanto o rico, como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar".

A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a "doutrina do impacto desproporcional" ("disparate impact doctrine"), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke Power Co. [31] A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo argüida a ilicitude do "teste de inteligência" utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o "teste de inteligência", conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo "’congelar’ o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado."

Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem a sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (v.g.: as mulheres e os afrodescendentes).

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito.: A Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2290, 8 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13626. Acesso em: 10 mai. 2024.

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