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Entre o ser e o dever ser: o curioso caso da Súmula 716

08/10/2009 às 00:00
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"Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e nem ninguém que não entenda" (Cecília Meireles).

Resumo: O artigo analisa a relação entre norma e realidade. Trata-se de um exame da prisão cautelar na perspectiva de um Estado Democrático de Direito e de sua proliferação nos dias atuais. Neste trabalho, também são apontados os graves problemas do sistema penitenciário, especialmente do Espírito Santo, utilizando, para isso, o relatório de visita ao Estado feito pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A partir disso, são apontadas as razões que motivaram a publicação da súmula 716, uma aparente incoerência que se justifica.


Introdução

Na ciência jurídica, freqüentemente nos deparamos com a seguinte questão: sociedade versus liberdade / coletivo versus indivíduo. Nesses momentos, devemos questionar até que ponto se justifica a limitação da liberdade individual em prol do bem comum. Quais são os critérios para contrabalançar esses dois valores? No direito penal, esse conflito é ainda mais evidente, já que as sanções punitivas são, em grande parte, privativas de liberdade. Por muito tempo, os Estados possuíram prerrogativas absolutas na condenação de indivíduos infratores do ordenamento estatal. Contudo, as transformações sociais possibilitaram uma mudança valorativa, de forma que, hoje, reconhecem-se princípios guiados, sobretudo, pelo paradigma da dignidade humana. Nesse sentido, nossa Constituição declara que vivemos em um Estado Democrático de Direito. Mas, afinal, o que isso significa? Viver em um Estado Democrático de Direito significa ter a segurança de que o Estado não agirá arbitrariamente, senão que estará limitado à lei e que possíveis abusos deverão ser investigados e punidos. Significa que o Estado deve respeitar o indivíduo. Pressupõe que entre Estado e indivíduo não haja relação de antagonismo, mas sim de cooperação. Nesse sentido, os governantes e demais administradores devem se preocupar em garantir direitos individuais e sociais, a fim de que possam ser criadas boas condições para o pleno desenvolvimento humano. Dessa forma, o ius puniendi estatal também deve respeitar garantias constitucionais tais como as previstas nos incisos XXXVII, XXXIX, XL, XLV, XLVI, XLVII, XLVIII, XLIX, L, LI, LIV, LV, LVI, LVII, LXI, LXII, LXV, LXVI, LXVIII do art. 5º da nossa Lei Maior [01].


A Norma

No Estado em que vivemos, portanto, a regra deve ser a liberdade e a prisão deve ser a exceção. A regra é que só haja punição após sentença condenatória irrecorrível. A exceção é que em alguns casos se permita a prisão antes que a sentença transite em julgado. São eles: prisão em flagrante (art. 301 e s. do CPP); prisão resultante de pronúncia (art. 282); prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão temporária (Lei nº. 7.960/1989). Inclusive, como vimos anteriormente, o inciso LVII do artigo 5º da nossa Carta Magna garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tais exceções não ofendem ao princípio anteriormente mencionado uma vez que a prisão cautelar é decretada com base em um juízo de periculosidade e não de culpabilidade [02]. Nesse sentido, para se decretá-la, faz-se necessário verificar os requisitos de urgência e necessidade. Dessa forma, o artigo 282 do Código de Processo Penal determina que "À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão em virtude de pronúncia ou nos casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente".

O processualista Paulo Rangel distingue a ação do Poder Executivo e do Poder Judiciário [03]. Por um lado, tem-se a política de segurança pública do executivo, que através do policiamento pretende coibir crimes e zelar pela segurança. Por outro, tem-se a atuação do Judiciário. Não se pode pretender que a Justiça, a fim de compensar as falhas do executivo, decrete prisões provisórias de forma arbitrária. Os problemas relacionados à segurança pública devem ser solucionados na esfera do poder executivo, através de medidas repressivas (como o aumento do policiamento), mas principalmente por meio de medidas de cunho social, a longo prazo, que possibilitem uma maior integração social e o compartilhamento dos mesmos valores fundamentais.

Por conseguinte, para se decretar a prisão cautelar, devem estar presentes alguns pressupostos, tais como a existência de perigo social ou para o curso do processo se o acusado permanecer em liberdade, além de provas do cometimento do crime. Há, portanto, um rol taxativo que determina em quais casos poderá haver a prisão provisória, fora deles, a regra é a liberdade. Percebemos, portanto, que o jus puniendi do Estado encontra limitações em razão do respeito à liberdade humana. Essa é uma importante garantia constitucional que deve ser respeitada pelos poderes estatais, a fim de que os preceitos constitucionais anteriormente citados possam se concretizar na sociedade.


A Realidade

Contudo, o plano da faticidade tem, constantemente, entrado em contradição com esses princípios. Preceitos constitucionais têm sido freqüentemente desrespeitados. Pode-se dizer que isso ocorre com habitualidade não só na esfera penal como também em outras áreas. Há, porém, uma diferença fundamental. Todos, em geral, concordam que o racismo é prejudicial à formação de uma sociedade pluralista e harmônica, concordam que os investimentos estatais em educação e saúde são insuficientes e que a gestão pública precisa de uma maior eficiência. Todos, abstratamente falando, também acreditam que o Estado deve se esforçar para resolver esses problemas com urgência. Todavia, quando se trata de direito de presos, não acontece o mesmo. Ainda que as pessoas concordem que prisão superlotada e perdas de direitos também seja um problema grave do nosso país, são indiferentes e até mesmo contribuem para a perpetuação dessa realidade. Isso pode ser facilmente verificado quando ocorre um crime de grande repercussão social. Há, nesses momentos, intenso clamor popular no sentido de se aplicar a lei com maior rigidez, de se prender antes do julgamento. Não se lembra, nessas horas, do quadro penitenciário do país ou mesmo dos direitos e garantias constitucionais. Esse é um dos maiores problemas atuais que deve enfrentar a Justiça criminal. De um lado, o dever-ser, as normas e, de outro, a realidade associada ao clamor popular que apesar de pedir por justiça, está na verdade, colaborando para o desrespeito às normas e, portanto, para o cometimento de injustiças. Não queremos aqui discutir sobre o conceito ou possíveis conceitos de justiça. Mas, fato é que esse clamor popular tende a ser mais um sentimento de vingança do que a realização de alguma forma de justiça e o Direito não pode, de forma alguma, compactuar com isso. Nesse sentido, são válidas as palavras do presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes quando diz que "Quem lida com a vida política sabe que é muito fácil engendrar acusações respaldadas pela opinião pública. Dependendo da história que se conta, a opinião pública aplaude até linchamento. Julgamento se faz é com contraditório. Não se faz em bar" [04][05].

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Embora a prisão provisória deva ser exceção em um Estado Democrático de Direito, na realidade penitenciária de nosso país, ela vem se proliferando. Isso agrava ainda mais os problemas crônicos de nosso sistema penal tais como superlotação carcerária, ausência de condições mínimas de vida nas prisões, perda de direitos, abuso de autoridades, deficiência nos atendimentos médicos, psicológicos e jurídicos, tratamento desumano destinado à população carcerária, mistura de presos de diferente periculosidade, morosidade da Justiça, mau acompanhamento da situação processual dos condenados, excesso de prazo nas prisões provisórias, dentre muitos outros.


Espírito Santo

"Entendo que o paciente se encontra em prisão processual e, não havendo acórdão transitado em julgado, ele não iniciou regime algum de cumprimento de pena. Quando iniciar, terá que se submeter à internação em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, como está expresso na letra "b" do §1º do art. 33 do Código Penal. Só depois de cumprir um sexto da pena, nesse regime, é que poderá pleitear, submetendo-se ao exame que está sendo proposto agora, o regime aberto".

Há, contudo, posições divergentes que aceitam a concessão de progressão de regime ainda durante a execução da prisão provisória. Nesse sentido, temos novamente o HC_72565 com o posicionamento do Ministro Maurício Corrêa: "No caso específico o paciente foi preso preventivamente no dia 29.11.1993, e a condenação se deu no dia 12.12.94. Portanto, ficou mais de um ano em prisão preventiva. Indago: a culpa é do réu, ou do Estado, ou do mecanismo judiciário? Ou são os prazos, os procedimentos, que tornam tardo, lento o julgamento? Essa é a responsabilidade, evidentemente, do Estado. Por isso não posso apenar o acinte por deficiências inclusive do mecanismo judiciário". Nesse mesmo Acórdão, também se posiciona o Ministro Sepúlveda Pertence: "A prisão decorrente de decisão condenatória recorrível – quando admitida, conforme o entendimento majoritário do STF (e não obstante a presunção constitucional de não culpabilidade), independentemente da demonstração de sua necessidade cautelar – constitui verdadeira execução provisória da pena que não se deve efetivar em regime mais severo que o da eventual condenação definitiva. (...) não se pode, paradoxalmente, submeter o condenado, antes do trânsito em julgado, a regime mais gravoso, mais severo, do que aquele a que ele ficará sujeito depois de transitar em julgado a condenação, em função de meras conveniências administrativas ou dificuldades administrativas de gerir a execução da pena".

Esse problema foi parcialmente resolvido com a aprovação da súmula 716 em 24/09/2003, que assim dispõe: "Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória". A súmula se aplica a casos em que já há uma sentença condenatória, sobretudo se já houver transitado em julgado para a acusação. Havendo uma sentença que estabeleça o tempo de pena a ser cumprido, vislumbram-se duas possibilidades: A primeira é que o tempo decorrido de prisão provisória já preencha o requisito objetivo para a progressão de regime (1/6 para crimes comuns e 2/5 para crimes hediondos). A segunda possibilidade é que o preso, ainda em prisão provisória, a cumpra no regime menos severo fixado na sentença, se este for o caso. Assim, por exemplo, se o regime fixado na sentença condenatória for o semiaberto, não há razão para que o preso provisório permaneça em regime fechado, aguardando o trânsito em julgado. Há, contudo, problemas em relação à sua incidência: Será aplicada quando ainda houver pendência de recurso para a acusação ou ainda quando o recurso tiver efeito suspensivo? Poder-se-ia interpretar a súmula extensivamente e de forma analógica também conceder a presos provisórios outros incidentes de execução, como trabalho externo, saída temporária ou ainda o livramento condicional? Percebe-se, portanto, que a publicação da súmula não eliminou todos os problemas relativos à questão. Pelo contrário, ainda se faz necessário uma melhor precisão de seu real alcance.


Conclusão

A partir da realidade atual, chega-se à conclusão de que a prisão provisória tem tido, em muitos casos, sua finalidade alterada. Legalmente, ela é exceção e decretada apenas em situações específicas. No entanto, ela vem sendo utilizada como forma de se atender ao clamor popular, evitando a sensação de impunidade, ou ainda como uma forma de compensar as falhas da segurança pública. Assiste-se, portanto, a um ameaçador cenário de proliferação da prisão cautelar que tem sacrificado princípios constitucionais e ameaçado a liberdade humana. Dada essa situação, o STF aprovou, em 2003, a súmula 716 que, à primeira vista, parece um contra-senso. Como, afinal, aplicar as normas referentes à execução penal se ainda não há trânsito em julgado? Como começar a executar a pena, se o direito de punir do Estado ainda não pode ser exercido plenamente? Vislumbram-se,

porém, duas razões que a justificam: uma legal, relacionada ao parágrafo único do artigo 2º da LEP, e outra que poderíamos chamar de convencional ou valorativa. O princípio da não-culpabilidade, adotado por nossa Constituição, tem por escopo proteger o réu contra possíveis abusos do Estado. Se, no entanto, neste caso, ele for aplicado de maneira absoluta, produzirá o efeito contrário. A nosso ver, a súmula 716 é problemática em alguns aspectos e paliativa, contudo, absolutamente necessária uma vez que não seria correto submeter o preso provisório (cujo juízo de culpabilidade é menor) a condições piores do que as que ele estaria sujeito caso estivesse cumprindo a pena propriamente dita. Como salientou o Ministro Maurício Corrêa, a lentidão do Estado não pode agravar a situação dos que estão submetidos ao seu julgamento.

A súmula 716, portanto, tornou-se necessária devido à realidade de proliferação de prisões provisórias e sérias deficiências no sistemas Judiciário e Penitenciário. Essas são as verdadeiras causas do problema que devem ser combatidas. Assim, esse entendimento sumular, que resolve problemas de forma imediata, deve vir acompanhado de medidas mais profundas e a longo prazo, se realmente se quer resguardar os princípios constitucionais e se preservar um Estado Democrático de Direito, pois este, nunca está pronto e acabado, mas deve, pelo contrário, ser construído à cada dia, à cada decisão jurisprudencial e à cada atuação dos poderes executivo e legislativo.


Notas

  1. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado (...); XLVI – a lei regularizará a individualização da pena (...); XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, b) de caráter perpétuo, c) de trabalhos forçados, d) de banimento e) cruéis; XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; L – às presidiárias serão asseguradas condições que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVI – são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos; LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito final da sentença condenatória; LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência de família e de advogado; LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Há ainda outros incisos desse mesmo artigo 5º da Constituição Federal que também se aplicam ao direito penal.
  2. Paulo Rangel. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007, pg. 583.
  3. Idem nota 2.
  4. Encontrado em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,mendes-julgamento-nao-pode-ter-base-na-opiniao-publica,381801,0.htm.
  5. Nesse sentido, destacamos o papel da mídia na contemporaneidade e sua relação com o Direito. A professora e juíza Mônica Sette Lopes (Juristas e Jornalistas, impressões e julgamentos. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008) distingue o julgamento feito pela mídia e o julgamento da Justiça. O primeiro é realizado de forma rápida, para se atender a dinâmica dos meios de comunicação. Por isso, não leva em consideração a defesa do acusado. Já o último, deve levar em consideração o contraditório e a ampla defesa, logo, se prolonga por mais tempo. O problema é que o primeiro, o julgamento feito pela mídia, acaba influenciando na atividade de funcionários da Justiça, colocando em risco direitos e garantias constitucionais.
  6. Relatório de visita ao Espírito Santo.
  7. Relatório de visita ao Espírito Santo.
  8. Execução Penal, 5ª ed., São Paulo, p. 283.
  9. STF, 16.06.95, Rio Grande do Sul, segunda turma, relator: Ministro Marco Aurélio.
  10. STF, 30.08.96, Alagoas, Tribunal Pleno, relator: Ministro Sepúlveda Pertence.
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Sobre a autora
Rafaela Lete Aguiar

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista de iniciação científica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Rafaela Lete. Entre o ser e o dever ser: o curioso caso da Súmula 716. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2290, 8 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13639. Acesso em: 24 nov. 2024.

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