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Momento processual adequado para inversão do ônus da prova no direito consumerista (art. 6º, VIII, CDC)

16/10/2009 às 00:00
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O Código de Defesa do Consumidor dispõe, no artigo 6º, VIII, que constitui direito básico do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.

Conforme se nota, na relação de consumo a inversão do ônus da prova não é automática, ou seja, para que tal fenômeno ocorra é necessária a presença de requisitos legais dotados de alto grau de subjetividade: ser verossímil a alegação do consumidor ou, ainda, ser este hipossuficiente.

Embora a legislação específica do consumidor estabeleça a regra de inversão do ônus da prova, criando critérios para tanto, nada dispõe sobre o momento processual em que o magistrado deverá decidir acerca da concessão desta benesse ao consumidor.

Exatamente com relação ao momento da inversão do ônus da prova é que a doutrina e jurisprudência apresentam calorosa discussão.

Uma primeira e majoritária corrente entende que a inversão do ônus da prova deve ser decidida no julgamento da causa, constituindo, assim, verdadeira regra de julgamento.

Neste sentido:

[...] o ônus da prova constitui regra de julgamento e, como tal, se reveste de relevância apenas no momento da sentença, quando não houver prova do fato ou for ela insuficiente.

Diante disso, somente após o encerramento da instrução é que se deverá cogitar da aplicação da regra da inversão do ônus da prova. Nem poderá o fornecedor alegar surpresa, já que o benefício da inversão está previsto expressamente no texto legal. [01] (g.n.)

O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou a questão, agasalhando o entendimento supra:

[...] Sendo a inversão do ônus da prova uma regra de julgamento, plenamente possível seja decretada em 2º grau de jurisdição, não implicando esse momento da inversão em cerceamento de defesa para nenhuma das partes [...]. [02] (g.n.)

No mesmo sentido: REsp 203225 (Relator Ministro Sávio de Figueiredo Teixeira); REsp 422.778 (Relatora Ministra Nancy Andrighi) e Resp 949000 (Relator Ministro Humberto Gomes de Barros).

Neste último (Resp 949000), embora tenha decidido o STJ que a inversão do ônus da prova constitui regra de julgamento, a decisão não foi unânime. Vejamos o interessante teor do voto vencido:

Conclui, sem dúvidas, que a inversão do encargo probatório é regra de procedimento. É que sua prática envolve requisitos (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor) que devem ser ponderados em cada caso concreto. Tenho convicção que o processo não pode ser armadilha para as partes e causar-lhes surpresas inesperadas. Ora, a inversão do ônus da prova é exceção à regra prevista no Art. 333 do CPC, segundo a qual ao autor incumbe a prova do fato constitutivo do respectivo direito e ao réu cabe a prova referente à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Logo, se o caso se enquadra na previsão do Art. 6º, VIII, do CDC, é preciso que o Juiz declare a inversão clara e previamente ao início da instrução. Do contrário, cria-se insegurança as partes, compelindo-se uma das partes a, eventualmente, produzir prova contra si próprio por ter receio de sofrer prejuízo decorrente duma inversão de ônus no momento da sentença. A meu ver, a tese de que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento não é compatível com o devido processo legal. A adoção dessa tese permite que o processo corra sob clima de insegurança jurídica, colocando ao menos uma das partes em dúvida sobre seus encargos processuais [03]. (g.n.)

Refletindo verdadeiro embate sobre o tema, encontramos, ainda na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entendimento completamente contrário ao adotado nos julgados anteriores, onde a inversão do ônus da prova é tratada como regra de procedimento (matéria de instrução):

[...] - A inversão do ônus da prova, prevista no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, como exceção à regra do artigo 333 do Código de Processo Civil, sempre deve vir acompanhada de decisão devidamente fundamentada, e o momento apropriado para tal reconhecimento se dá antes do término da instrução processual, inadmitida a aplicação da regra só quando da sentença proferida. [...]. [04] (g.n.)

No mesmo sentido: REsp 598620 (Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito); REsp 662608 (Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa).

Também com entendimento que se trata de regra procedimental, segue a doutrina:

[...] por consistir numa regra de procedimento com força capaz de alterar a distribuição usual da carga probatória, em respeito ao princípio maior da ampla defesa, imprescindível que sua aplicação seja previamente anunciada, inclusive dando ciência ao demandado do ponto controvertido sobre o qual o ônus será invertido. [05] (g.n.)

Rizzatto Nunes, em claras palavras, defende que o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara a fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento. [06] (g.n.)

Segundo esta corrente, a qual comungamos, há grande diferença da distribuição probatória constante no Código de Processo Civil em relação àquela instituída na lei consumerista (art. 6º, VIII, CDC). Isto porque, o artigo 333 do Código de Processo Civil é suficientemente claro e taxativo ao dispor, nos litígios que fogem da relação de consumo, que ao autor fica o ônus de provar o fato constitutivo do seu direito (inciso I); ao réu, cabe comprovar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II).

Sabe-se, de plano, por uma simples análise dos pólos do litígio (autor e réu) e da natureza dos fatos (constitutivos, extintivos, modificativos ou extintivos), o que cada parte deve comprovar. Não há nenhum critério valorativo a ser enfrentado pelo magistrado para distribuição do ônus da prova. O critério é único, objetivo e legal, o que dispensa qualquer manifestação do magistrado acerca da distribuição do ônus probandi.

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Já na legislação consumerista, conforme já explanado neste texto, há prévio critério valorativo a ser enfrentado (verossimilhança e/ou hipossuficiência). Isso tudo sem falar na discussão que invariavelmente é travada acerca da existência/inexistência de relação de consumo no litígio, o que, via de regra, se localiza em uma zona cinzenta.

Verifica-se, portanto, que está presente o alto grau de subjetividade na decisão acerca da inversão do ônus da prova, devendo o consumidor superar requisitos (verdadeiros obstáculos) para, enfim, saber qual sistema probatório enfrentará. Ao fornecedor não é diferente: este precisa saber qual regime será adotado no processo em que atua.

Em outras palavras: por se tratar de critérios subjetivos, jamais as partes saberão, com completa veemência, se é caso de inversão do ônus da prova ou não, ou seja, jamais saberão como se posicionar com relação à prova dos fatos.

Somente por esse motivo é que se mostra inadmissível dar conhecimento às partes sobre essa questão apenas no momento da sentença, sob pena de abrir grande espaço para ocorrência de surpresas processuais.

Como se sabe, o vocábulo surpresa é totalmente indesejado no devido processo legal e em nada contribui para a busca da verdade, segurança jurídica, qualidade das decisões judiciais e, principalmente, ao devido processo legal.

Podemos afirmar, nesta toada, que caberá ao juiz, no curso do processo, decidir acerca do preenchimento dos requisitos estabelecidos pelo CDC para inversão do ônus da prova. Somente após superada essa discussão é que poderá ser aberta a instrução probatória, pois é a partir de então que as partes saberão exatamente quais fatos lhe incumbem realizar a prova.

Somente a título de reforço da argumentação, cumpre frisar que o artigo 130 do Código de Processo Civil estabelece que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

Verifica-se que mencionada norma, de forma brilhante, visa coibir a realização de diligências inúteis e protelatórias, em verdadeira busca de celeridade e economia processual, sem, contudo, abrir mão de um justo, ordenado e devido processo legal.

Ora, na relação de consumo não pode ser diferente: cabe ao juiz, em obediência ao seu dever de impulso oficial, conduzir e determinar, no momento adequado, as provas necessárias à instrução do processo. Isso tudo deve ser feito em decisão saneadora, cabendo ainda ao magistrado fixar os pontos controvertidos, sanear o processo e determinar a produção da prova (§§ 1º e 2º do artigo 331, CPC).

Portanto, diante de todo o exposto nesta singela apresentação, com o devido respeito às inúmeras e bem fundamentadas posições em sentido contrário, entendemos que a inversão do ônus da prova é matéria de instrução (de procedimento), devendo ser analisada no curso do processo, de preferência antes mesmo da abertura da fase instrutória, de forma a permitir que as partes produzam as provas de forma segura, com plena ciência do que efetivamente devem comprovar, sob pena de causar enorme insegurança jurídica àqueles que participarão de um litígio sem ao menos saber quais encargos lhe competem, o que é odioso ao sistema e fere o devido processo legal.


Notas

  1. LOPES, João Batista. A Prova no Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 24/62 (capítulos de 2 a 9). Material da 1ª aula da disciplina Prova, Sentença e Coisa Julgada, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual Civil – IBDP e Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG.
  2. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EDcl no Ag 977795 / PR. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Data do Julgamento: 23.09.2008.
  3. STJ. REsp 949000 / ES. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Data do Julgamento: 27.03.2008.
  4. STJ. REsp 881651 / BA. Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa. Data do Julgamento: 10.04.2007. Votação Unânime.
  5. Revista de Processo, R.T., São Paulo, nº 138, agosto de 2006, págs. 287/288.
  6. NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 155.
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Sobre o autor
Bruno Januário Pereira

Advogado em São Paulo. Bacharel pela Faculdade de Direito da Alta Paulista. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Instituto LFG e IBDP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Bruno Januário. Momento processual adequado para inversão do ônus da prova no direito consumerista (art. 6º, VIII, CDC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2298, 16 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13703. Acesso em: 28 mar. 2024.

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